A fruta, estopim da ignorância

publicado na Ed_04_jul/set.2017 por

Fabiane pega sua bicicleta, confere as frutas e a Bíblia, no interior da cesta. Uma das crianças descalças e sem camisa chama atenção da dona de casa. Ela caminha em direção a ela, chutando pedregulhos da calçada. Os olhares serenos de Fabiane, naqueles poucos segundos, passaram a admirar o garoto sem nenhuma outra intenção, além de simplesmente olhar. A dona de casa que se preparava para pedalar desce da bicicleta e vasculha a cesta tentando arrancar uma banana do cacho. Fabiane sempre foi amorosa com crianças. A moça, ainda curtindo a nova aparência, costumava cuidar dos filhos de suas vizinhas enquanto essas trabalhavam durante as tardes.

Andando, o garoto já está bem próximo de Fabiane. Ao passar por ela, recebe a banana oferecida por ela.

Na outra mão da moça está a Bíblia Sagrada. O menino retribui o generoso ato com um sorriso; ela sorri de volta.

O gesto de bondade não foi bem interpretado pela mãe do garoto que presenciou toda a cena da outra esquina.

— É ela! – A voz alta saí entre os dentes e lábios secos pintados com batom cor-de-rosa.

A criança olha em direção ao som. É a sua mãe que grita enquanto aponta o dedo para Fabiane. O menino assustado larga a fruta e corre em direção à sua progenitora. A testa da dona de casa franzi. Era possível notar o semblante de dúvida no rosto parcialmente coberto pelos cabelos curtos e cor de fogo. Uma mulher que passava por trás de Fabiane dá um tapa em sua cabeça. O que estava acontecendo? O que elas querem? O que eu fiz? Eram perguntas que martelaram em sua mente.

— Pega! – Uma segunda voz feminina gritou de dentro do bar. E até hoje não se sabe de quem partiu essa primeira ordem do ataque.

Rapidamente, curiosos se aproximavam de Fabiane. Os comentários daquele momento era de que a mulher dos cabelos curtos era a mesma daquela “bruxa” procurada em postagens no Facebook.

Chutes e socos foram desferidos em seu corpo e rosto por homens e mulheres da comunidade. Fabiane tentava se esquivar das agressões, mas foi em vão. Qualquer tentativa de entendimento ou questionamento sobre o que estava acontecendo ali já era algo impossível. Sem qualquer direito de defesa, Fabiane cai no chão. Neste momento, já são cerca 30 pessoas a cercá-la, entre agressores e sádicos curiosos.

Os rumores de que ela seria a sequestradora de crianças só aumentavam. Apenas uma minoria, sem sucesso, se colocava contra o ataque.

O fato de a vítima estar sem condições de reação parecia alimentar a barbárie. Mais pessoas se aproximavam do tumulto, que já contava com mais de 150 pessoas. Algumas queriam agredir; outras gravar vídeos com o celular. Fabiane está sentada na rua de terra, ao centro da roda de tortura. De mãos atadas, implorava para que parassem. Um homem surge com um pedaço de pau acerta com força a cabeça de Fabiane. Ela cai de bruços. Outro agressor amarra as mãos e os pés da moça com fios de energia de eletrodomésticos. Com os braços imobilizados acima da cabeça, a esposa de Jaíson agora passa a ser arrastada pela rua. O corpo dela passa por cima da terra seca batida e dos pedregulhos que vão machucando e cortando ainda mais seu corpo. Durante o trajeto macabro, um homem atinge sua cabeça com o pneu de uma bicicleta. Um quilômetro depois, a crueldade já reúne uma multidão de cerca de mil pessoas. Cada agressão à Fabiane levava os espectadores à euforia.

Do ouro lado da comunidade, a Polícia Militar era acionada pelos moradores assustados com a tamanha selvageria. Mas antes da chegada dos agentes da polícia, o corpo de Fabiane foi jogado em um córrego. Muito debilitada e sem conseguir falar, ela parecia estar morta.

Com dificuldade, após cerca de três horas, a polícia e os agentes do Corpo de Bombeiros conseguem atravessar a multidão exaltada. Eles se aproximam do corpo da moça. A vítima foi ainda socorrida e internada em estado de saúde grave na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Santo Amaro, o principal centro de hospitalar do Guarujá. Mas Fabiane não resistiu aos ferimentos e morreu 36 horas após o ataque.

Para a psicanalista Tábata Romani Hernández, nós somos seres agressivos, mas aprendemos a esconder isso. A cena vista pela mãe do garoto, que precipitou a tragédia, vai além do arquétipo da sedução através da fruta, como uma alusão a desenhos animados de bruxas e feiticeiros que assistimos durante a infância.

O ser humano tem a necessidade de encontrar pontos de descarga da raiva e do ódio. Este sentimento adquirimos desde a infância e falta apenas uma brecha, uma oportunidade, durante a vida para extravasá-lo.

Fofocas e boatos são, de certa forma, um modo de o ser humano descarregar a violência interna e reafirmar sua postura condizente com os ditames da sociedade. Pois, teoricamente, se ele repudia um comportamento é porque ele não faz.

Na frase do criador da psicanálise, Sigmund Freud, “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”, fica claro que a agressividade do outro também de quem faz a fofoca.

Morte, sexo e questões morais sempre foram os temas considerados tabus para a população. Publicações sobre agressões despertam mais atenção dos internautas e são muito compartilhadas em comparação com outros assuntos.

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Crédito da imagem: CC0 Public Domain

Capítulo do livro “O linchamento de Fabiane Maria de Jesus

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