Construção do imaginário do mito Raul Seixas

publicado na Ed_04_jul/set.2017 por

Em vida, impactou pessoas com suas letras irônicas e melodias simples. Em morte, arrasta multidões de admiradores, fãs clubes, colecionadores, covers, passeatas que realizam inúmeros tributos em sua homenagem. Mas, o que faz o fã criar o imaginário de Raul Seixas que o fez se tornar um mito?

Podemos analisar por meio das seguintes frases dos fãs entrevistados:

“Raul abriu portas para mim de uma forma geral de vida. Se tratando de estudo, disciplina e humildade.”

“Ninguém quer colocar a cara a tapa, ninguém faz o que o Raul fazia.”

“O que mais me chama a atenção na obra de Raul é o rock and roll. O rock and roll é recheado de músicas de fora do país. O que é nacional não é classificado como rock and roll, mas o Raul sim e ele me permitia isso, cantar e entender o que eu estava cantando.”

“O Raul foi um portal e um oráculo com perguntas e respostas e eu entrei neste oráculo e estou até hoje amando, escutando e estudando.”

“O Raul te leva a referências literárias e musicais. Você aprende muito escutando e estuda muito sendo fã de Raul, além de se divertir com isso.”

“O Raul tem muita importância no cenário brasileiro. Ele tem uma obra muito valiosa. O conteúdo, a poesia, o protesto. Ele pensava lá na frente e muita coisa do que ele falou lá atrás está acontecendo.”

“O Raul conseguia falar da censura sem atacar a censura. Ele era inteligente, era poeta, era filósofo, ele tinha rock, tinha baião, tinha xaxado, tinha samba, música caipira, tinha rock and roll, tinha rockabilly, tango, bolero… Ele mesclava tudo isso. Ele não ficava na mesmice. Hoje se você pega um CD de qualquer cantor e não muda nada, só a letra. E o Raul conseguia ter tudo isso em um disco só. Além de tudo isso, a verdade e a loucura dele é o que chama atenção.”

Com os depoimentos, pode-se compreender um pouco mais quais os motivos de algumas pessoas terem se tornado fãs de Raul Seixas. É mais ou menos pela percepção de cada um que foi criado o imaginário do artista, utilizando como base a sua própria obra.

Raul Seixas foi um artista diferente de todos da sua geração e apesar de o Brasil ter tido alguns artistas importantes, são poucos os que conseguem fazer um trabalho como o do roqueiro da Bahia ou algo parecido nos dias atuais.

Ciclo social

Se tornar fã de qualquer coisa pode te trazer amizades com os mesmos interesses. Com os fãs de Raul Seixas, as coisas não foram diferentes. Pelo contrário. Com Raul, um pouco disso começou com os fã-clubes. A loja do Raul Mania na Galeria do Rock foi um ponto de encontro, o Raul Rock Club tinha caixa postal para o recebimento e troca de cartas, além da carteirinha oficial e você conhecia pessoas nos shows de covers ou até mesmo na passeata depois do seu falecimento. Mas, foi com o início da internet que as coisas ficaram ainda mais fáceis para uma maior afinidade entre os fãs.

Fóruns, grupos no msn, comunidades do orkut, facebook, e whatsapp. Os grupos foram se adaptando conforme a tecnologia, apesar do afastamento de pessoas que eram do movimento a mais tempo dando espaço para pessoas novas que foram surgindo.

Para Rafael Galfano, o raulseixista é um ser social que gosta de estar junto com outros raulseixistas. “A passeata é hora do nosso culto quase religioso. Culto à obra e o artista. A importância é muito grande porque é a hora do raulseixista se libertar dele mesmo, colocar a sua personalidade ali no tempo espaço que é dele”, afirmou ele.

“Eu tenho muito orgulho de dizer que eu sou raulseixista e que por conta do Raul eu fiz um circulo de amigos antigos que mantenho contato atualmente quase todos os dias pelo whatsapp. Eu tive amigos também lá quando tinha 18 anos em um grupo do msn que havia na época. O Sylvio Passos nomeou como “Komuna Raulseixista”, depois se tornou “Komuna Raulseixisticka” e hoje denominamos como “Komuna” com grupo no whatsapp. Ali, o que tinha de ligação com Raul Seixas era discutir música, eventos, , quem tem o maior acervo, quem sabe mais, quem fuça, etc. Então, esse grupo na internet serviu para me interligar no universo,“ contou a fã Laura Furlan.

Com o passar do tempo, o tipo de fã foi mudando. O fã de Raul de antigamente era aquele que corria atrás dos discos para conhecer a obra do artista, ficava esperando a música tocar no rádio e aguardando a estreia do clipe na TV. Hoje em dia com a internet, essas coisas acabaram se perdendo e todo o conteúdo tornou-se fácil de encontrar, fazendo com que as pessoas não tenham tanta curiosidade de pesquisar a fundo, como era antes.

O jovem raulseixista de hoje não é mais apegado a coisas materiais. Discos, compactos e livros, pois ele tem acesso a tudo pela internet e pelo celular. Como ele tem tudo isso fácil, tem menos interesse e não é instigado a buscar o conhecimento mais profundo de antes da era da internet. Na minha época você tinha que ler os livros para entender, ouvir os discos para ter acesso. O novo raulseixista gosta mais de festa. Gosta de ir aos shows de covers, de ir à passeata, socializar no facebook e nos grupos do whatsapp. Porém, a impressão que eu tenho é que ele tem menos leitura, menos acervo cultural para conhecer a força da obra do Raul, seus conteúdos e seus significados. Eu acho que o raulseixista, que veio dos anos 80, chega aos anos 90 com a internet, mas ele continua buscando. Isso o raulseixista de fato. Hoje em dia não vejo mais uma galera tão apegada. Não há necessidade de fazer parte de um fã clube. Está tudo muito fácil. Esse tipo de fã antigo do Raul não existe mais e vai dar lugar a outro tipo mais fugaz e mais raso”, desabafou o fã Rafael.

Além de grupo de amigos, o Raul já uniu muitos casais que se encontraram por causa desse gosto em comum. Ou casais que aprenderam a gostar juntos de sua música. Um destes casais é a Márcia Fernandes e o Thiago Brito, juntos desde 2009.

“Eu sou de natural de Porto Alegre (RS) e desde os cinco anos já ouvia Raul Seixas através do meu pai. Raulzito fez parte de toda minha vida. Eu passei ouvindo profundamente suas músicas e estudando suas letras durante muitos anos. Sempre foi algo inseparável da minha forma de viver. Perto de seu aniversário de morte eu sabia que muitos fãs se encontravam em muitas partes pelo Brasil para homenageá-lo… E eu sonhava com isso também, de um dia encontrar pessoas que o amam como eu.

Em 2008, com a internet já em alta, decidi participar do orkut. Quando entrei, fiz um perfil com o nome de “Marcinha Seixas”, para então poder ter contato com pessoas apaixonadas pelo Raulzito. Eu participava de muitas comunidades sobre o Raul e lá eu encontrei muitos amigos que conservo até hoje, que me encorajaram a participar da passeata de 2009, a qual eu aguardei ansiosamente por meses, sempre em contato diário com muitas amigas e amigos, especialmente com uma pessoa que se chamava “Brito Seixas”. Ele era um menino apaixonante que apesar de bem mais jovem que eu, me transmitia toda a paz de que um dia eu sonhei. E em particular era muito como eu, pois apesar de muito fã, ele também não bebia ou usava qualquer tipo de droga.

Depois de muitas conversas, Brito disse que eu poderia ficar na casa dele e conhecer sua família no dia da passeata. No dia 21 de agosto de 2009, às 9h05 da manhã, ele me aguardava no aeroporto de Guarulhos, conforme combinamos. Além de viver aquela emoção e energia indescritível da passeata eu me via ao lado de alguém que eu gostava e queria congelar o tempo para nunca mais sair de seu lado.

Dia 23 de agosto, meu aniversário, já havia comprado passagem de volta para o Sul, mas acabei voltando na semana seguinte e nunca mais nos separamos! Acabei me mudando para São Paulo. Nós montamos um estúdio de tatuagem chamado Novo Aeon e temos um casal de filhos maravilhosos de seis e cinco anos. A Scarlet, nome da segunda filha de Raul Seixas, e o Raul em homenagem ao próprio Raulzito”, contou Márcia sobre sua história com seu marido Thiago Brito.

Rafael Arruda também conheceu a sua esposa em um tributo á Raul Seixas em São Paulo. “Eu conheci minha esposa Renata Orosz num show do Paulo Mano no bar Dimitri, da Rua 13 de maio. Lembro-me que foi na semana do aniversário de morte do Raul. Ou seja, havia muitos tributos naquela semana e no mesmo dia teria show do Roberto Seixas no Café Aurora. Segundo ela, iria ao show do Roberto, mas mudou de ideia e foi no Paulo Mano mesmo. Nos conhecemos, namoramos, noivamos e casamos. Em nosso casamento tocaram várias músicas do Raul. Hoje temos uma filha que se chama Rebeca de dois anos que também já curte o ídolo.
O mais engraçado é que eu e ela íamos aos mesmos lugares, porém não nos vimos antes, até aquele show”, completou ele.

A Geração da luz

Para muitos admiradores, ser apenas fã de Raul Seixas era pouco. Muitos deles se sentiram no dever de homenagear o seu ídolo dando o seu nome aos seus filhos.

A maioria dos fãs de Raul Seixas que tem um filho homem acaba dando o nome da criança de Raul. Como foi o caso dos entrevistados Carlos Bigode, Mariluz, Rafael Galfano, Márcia Fernandes e Penna Seixas, além de tantos outros casos por ai. Penna Seixas, um dos principais covers do Raul, não se contentou em colocar o nome de seu filho apenas de Raul, como registrou a criança com o nome de Raul Seixas e passou por problemas com a família da mãe da criança e com a Justiça.
“Na época, eu estava saindo com uma menina e ela acabou engravidando. Quando nasceu o menino eu fui visitar. Ela estava internada no hospital do Grajaú e o pai dela, que não gostava de mim, me proibiu de ir conhecer o meu filho. Ele dizia que eu era louco e maconheiro e não me deixou entrar. Mas eu comecei a falar para todo mundo “nasceu o meu menino, nasceu o Raul Seixas.”
Na mesma semana eu estava na oficina trabalhando com as minhas motos e o pai dela chegou lá, pedindo os meus documentos para registrar a criança. O pai dela, seu Joaquim, disse que o nome da criança seria Joaquim Francisco, inspirado nele e meu pai, em homenagem aos dois. Eu falei que não era nada disso e que o nome da criança seria Raul Seixas. Eles saíram de lá sem os meus documentos.

Quando a mãe saiu do hospital, fui para meu apartamento em que ela estava. Cheguei falando que se eles não me deixassem entrar ia dar problema. Afinal, o apartamento era meu. Quando eu cheguei lá eu vi o Raulzinho. Peguei ele e sai correndo para o cartório. Tinha acabado de inaugurar um cartório em Capão Redondo.
Cheguei e falei pro meu amigo que trabalhava lá que era o meu Raulzinho e que ele podia registrar. Inventei que a mãe dele tinha abandonado o menino na porta de casa e sumido e que a família do Raul já tinha autorizado. Mas não tinham autorizado não, só depois que ligaram para confirmar se eles me conheciam mesmo e ficou ok.  Quando eu fui lá deixar o menino para a mãe de novo já tinha três viaturas me esperando e toda a família dela achando que eu havia sequestrado o menino. Eu disse para o policial: ‘A criança tá aqui, eu só fui registrar. Tá aqui a certidão de nascimento e o nome dele é Raul Seixas’. Ela pegou a certidão de nascimento e rasgou. O pai dela ficou louco. Veio para cima de mim com uma faca e eu tenho essa marca no braço até hoje.

Eles tentaram mudar o nome dele em seguida, mas não conseguiram. A minha sorte é que eles não foram ao mesmo dia. Se fossem em um período de 24h, conseguiriam promover a alteração. Foi ai que começou o processo.

Tudo isso durou até ele fazer 12 anos. O advogado deles alegava que a família do próprio Raul Seixas era contra. Mas a minha sorte é que me chamaram para fazer o filme e eu tive a oportunidade de conhecer a Kika e a Vivi Seixas. Eu já tinha comentado com o Sylvio Passos que, futuramente, eu precisaria dele para tentar pegar uma carta de autorização com elas. No dia da minha última audiência fiquei morrendo de medo, porque o meu Raul poderia ir lá e dizer se ele queria mudar de nome. Mas eu sou um pai presente. Naquele momento a gente precisaria ter aquela carta da Kika e eu liguei para o Sylvio Passos. Chorando de verdade, porque aparentemente, tudo estava acabado e eu ainda não tinha essa carta na mão e eu ia perder o meu Raul Seixas.

O Sylvio me falou que eu podia falar no nome delas no Fórum e eu provei que eu estava fazendo o filme do Raul, com a sua família e isso fez com que eu ganhasse. Hoje o Raul mora comigo e adora o nome dele. Ele adora Raul e é um menino educado”, contou Penna Seixas, sobre o caso. Ele e o seu filho Raul Seixas, participaram do Documentário: Raul, O início, o fim e o meio, lançado em 2012.

Covers

Cover, em português, é usado para falar do âmbito musical em referência a um autor ou intérprete na versão de outro músico. No caso de Raul Seixas, existem inúmeros que realizam interpretações de sua obra. A maioria dos tributos em homenagem ao artista é com shows de deles, que são os principais interpretes de Raul Seixas. Segundo o cover, Penna Seixas, são mais de 1.200 espalhados por todo o Brasil. “Eu tenho orgulho de ser um cover baiano do Raul Seixas, mas eu acho que quantos mais houver, melhor. Eu estou vivo hoje mas se eu morrer amanhã tem sim que haver outras pessoas para interpreta-lo no meu lugar” contou. Apesar da concorrência, para Paulo Mano, de São Paulo, existe espaço para todos que realizam um bom trabalho. “O trabalho de banda cover é muito difícil em geral porque você tem que dar o seu melhor. Eu percebo que tem muita gente querendo, mas pouca gente com capacidade. Você precisa ter o respeito e o carinho com o seu público, com o que você está fazendo. Espaço tem para todos desde que seja um trabalho sério”, destacou ele.

Nem todo público fã de Raul Seixas é a favor deste trabalho. Muitos preferem pessoas que interpretam da sua forma, sem se caracterizar como o próprio Raul Seixas e as opiniões são divididas. Adan Andrade, vocalista da banda Luar Asavessos, não é cover, e sim intérprete do trabalho do Raul. E segundo ele, não é necessário que haja essa divisão de público ou qualquer tipo de intriga. “Não sou cover, mas eu sei que este trabalho é importante. Se não houvesse um deles para cantar Raul por aí, essa nova geração não conheceria tanto. É fácil cantar “Nunca se vence uma guerra lutando sozinho”, e continuar criticando as pessoas dentro de um mesmo movimento. Ainda existem pessoas apontando o dedo dos outros e julgando quando deveria ser um movimento único. Eu não me identifico com o trabalho cover, mas, acho que todo fã que gosta de alguma coisa que você faz acaba levando adiante. Isso faz de você um percussor da sua época. E isso vale para qualquer um”, desabafou. “O Raul hoje virou um negócio e tá todo mundo querendo “mamar nessa teta”. Acham que é fácil e não é bem assim. Estão sugando bastante este nome e esta marca: Raul Seixas”, desabafou Paulo Mano. “Toda vez antes de cantar eu peço permissão ao Raul. Eu acho que todo cover deveria fazer a mesma coisa. Raul só existiu um. Raul Santos Seixas. Parecer com ele, nós, todos os covers, é só uma mera coincidência”, finalizou Penna Seixas.

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Crédito da imagem: n/a

Capítulo do livro “A Semente da Nova Idade

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