A era de Ultron (O protagonismo das cidades)

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Título original: Comunicação, subjetividades e cenário urbano: o protagonismo das cidades na história em quadrinho “A era de Ultron

Resumo: O presente artigo visa estudar os impactos subjetivos e sociais das cidades retratados na novela gráfica “A era de Ultron” (BENDIS; HITCH, 2014). Parte-se da ideia defendida por Ferrara de que a cidade é mediação e construção de sentido. Objetivando apresentar uma reflexão sobre o olhar do observador/leitor, propõe-se observar a cidade como processo mediativo instável demonstrado por meio de acontecimentos urbanos baseados em catástrofes tanto físicas quanto subjetivas causando assim uma determinada interação. As cidades imprimem uma condição relacional de estruturas e mediações trazendo complexidades diferentes da natureza e da sua relação com o homem. O “desafeto” e o “trágico” são impressões usadas para propor uma investigação da cidade e de sua destruição como empatias simbólicas intencionadas pelo olhar do espectador ou participante. Busca-se demonstrar, sobretudo, que as demasiadas cenas de destruição, nos largos horizontes da produção de quadrinhos, denotam uma maneira de nos afastarmos da crítica ou do aprofundamento relacional com o externo, com aquele mundo que realmente deve ser vivenciado e negociado, este podendo ser tanto a cidade e seus escombros quanto as formas subjetivas de viver e ou sociabilizar o seu entorno.

Palavras-chave: Ultron; Comunicação; Subjetividade; Mediação; Urbanidade.

Abstract: This article aims at studying the subjective and social impacts of the cities portrayed in the graphic novel “The Age of Ultron” (BENDIS, HITCH, 2014). It originates from Ferrara’s thesis that the city is mediation and construction of meaning. Aiming at presenting a study on the observer’s /reader’s perspective, the article is an examination of the city as an unstable mediation process demonstrated through urban events based on both physical and subjective disasters, causing a particular interaction. Cities create complex conditions of structures and mediation with their citizens that are different from that between humans and nature. The “disaffection” and “tragic” are impressions used in order to propose an investigation of the destruction of the city’s symbolic empathy. We try to demonstrate, above all, that too many scenes of destruction, in the broad horizons of comic production, denote a way of moving away from criticism or deepening of our relationship with the external -the very world that really must be experienced and mediated- which can be both the city with its debris and the subjective ways of living and/or socializing with its surroundings.

Keywords: Ultron; Communication; Subjectivity; Mediation; Urbanity.

As metrópoles queimam.
Atravessá-las significa andar entre escombros, por áreas industriais abandonadas e periferias perigosas.
(DI FELICE, 2009, p.19)

Na tradição do pensamento ocidental de quem produz e de quem consome histórias em quadrinhos comerciais, as relações entre personagem e cenários urbanos, presentes na maioria dos enredos, sempre se desenrolou sob um escopo no qual a cidade evolui para o desgaste/destruição e a personagem evolui para a sublimação. De fato, as histórias em quadrinhos representam, na maioria das vezes, a consolidação do pensamento antropocêntrico. Em outras palavras, a centralidade das atuações e dos interesses do homem sempre obscurecerá os interesses sobre os ambientes.

A Era de Ultron confirma a história da linguagem quadrinhesca de caráter eminentemente urbano, destacando, nesse panorama, as potencialidades comunicativas e cognitivas desse meio.

No percurso proposto, cabe ressaltar que o urbano, fruto das relações cognitivas homem – cidade nos traz um caráter de personificação sensível comparada. A obra de Aluisio de Azevedo, O Cortiço[1], exemplifica como a personagem essencial daquela literatura corrobora todos os trajetos e evoluções das personagens que frequentam esses lugares. São figuras de construção do cotidiano que influenciam e são influenciadas à própria face do cortiço. Em A era de Ultron, a destruição das cidades e do sentido urbano que a novela detém, rebate, em termos imagéticos e narrativos, na moral daqueles que habitam (população) e daqueles que policiam (heróis) tal sistema.

O enredo ainda nos aporta uma profundidade dialética entre antropocentrismo e ambiente urbano ao ponto de que a salvação, as descobertas, as soluções estão canalizadas aos heróis da trama. Na verdade, para termos uma perspectiva cognitiva mais ampla sobre a contribuição das cidades nos quadrinhos, devemos abrir mão de todo o contexto heroico. O heroísmo é o grande ponto que obscurece ou, em outras palavras, não permite olharmos o objeto urbano com absoluta sensibilidade.

Partindo desse pressuposto, existem criadores, críticos e pesquisadores que debruçam verdadeiramente sobre o meio comunicativo que as cidades produzem, impulsionando linguagens que abordam, sobretudo, as subjetividades sensíveis por meio do cotidiano urbano, desprendendo-se de toda e qualquer personificação heroica caricata.

Trazendo à tona as implicações da vida moderna, Will Eisner, quadrinista norte-americano, difunde um “pensar criativo” sobre as grandes cidades, em suas obras: “Um Contrato com Deus e outras histórias de cortiço” (1978); “O edifício” (1987); “Nova York, a grande cidade” (1986); “Cadernos e tipos urbanos” (1995); “Pessoas invisíveis” (1993) e “Avenida Dropsie” (1995). Will Eisner também contribuiu com o relevo da sensibilidade (como inovação) aos compromissos técnicos dos quadrinhos:

Eisner foi o primeiro a utilizar quadros “silenciosos”, sem balões, para enfatizar as emoções dos personagens, concentrando a atenção em expressões faciais finalmente trabalhadas. Ele tratou de assuntos considerados impensáveis para revistas em quadrinhos de jornal da época: maus tratos de cônjuges, auditorias fiscais, desgraças e corrupções urbanas (HIRSCH, s/d, p. 3 apud BORGES, 2012, p. 31).

O uso de elementos urbanos é utilizado para dar proximidade às diferentes formas de vida, da afetuosidade à sobrevivência, que é uma prática constante nas obras de Eisner. Em Um Contrato com Deus e outras histórias de cortiço, por exemplo, é narrada a história de inquilinos de um antigo cortiço localizado no número 55 da Avenida Dropsie, Bronx, Nova York. A história é baseada no entrelaçamento de quatro contos cujo foco é as inúmeras tragédias do dia a dia. Essa maneira de narrar o urbano, por meio dos pequenos acontecimentos do cotidiano, transfigura o espaço de acordo com as ocorrências, e nos oferece uma reflexão desvinculada do heroísmo, inserindo no centro da cena as subjetividades.

Ao partir do pressuposto de que as obras de Eisner nos oferecem um olhar primeiramente subjetivo para alcançarmos um diálogo com as cidades, por meio da decifração de emoções, problemas e situações públicas, se estabelece o início de uma perspectiva complexa, ou seja, de que o homem pode lançar grandes entendimentos e reflexões acerca das cidades.

Eisner nos propicia a esperança de localizar um trajeto para o entendimento coerente sobre as mediações dos lugares, fruto de uma compreensão tecno-artística dos variados detalhes que um cenário urbano nos transmite.

Nesse sentido, percebe-se que nós deixamos marcas nas cidades, ao ponto de que elas se transfiguram de acordo com os nossos princípios: religiões, ocupações, guerras, midiatização. A cidade é o espelho de nossos feitos e de nossas esperanças. Uma vez inserido no cenário urbano, após o tempo de estranheza e de adaptação, o homem é configurado para conquistar os seus objetivos sob novas condições, além disso, também é papel das cidades causar a transfiguração de quem surge para usufruir dela e vice-versa:

Localizada no centro do mediterrâneo, Palermo é uma cidade de antiquíssima fundação. Os fenícios a habitavam entre os séculos VIII e VII a.C. Os normandos a escolheram como capital do seu grande reino e, todos os povos que a colonizaram, nela deixaram marcadas profundas pegadas. No interior do seu velho mercado, percebem-se os cheiros, os sabores e a organização do suk árabe. No seu centro histórico, um dos maiores da Europa, as ruas e os becos reproduzem o formato de letras do alfabeto árabe. (DI FELICE, 2009, p. 89).

A passagem de Di Felice aborda um sentido de transitoriedade nas relações homem e cidade, não por menos o autor deixa de lado os quesitos de transfiguração e remodelação, sobretudo a condição que as cidades impõem e são impostas por seus participantes. Borges evidencia que, nas obras de Eisner, é explícita a ocorrência da transfiguração: “A cidade equipara-se, então, a uma selva, despertando em seus habitantes um instinto de sobrevivência e formas de comportamento que são respostas ao seu habitat, tornando-os criaturas do meio” (BORGES, 2012, p. 34).

Chegamos ao ponto em que a proximidade é a causa da permanente transfiguração das cidades. Devemos ir além da cidade como unidade ou adensamento para que possamos significá-la. A cidade é molde de significados:

[…] por um lado, a cidade não é pura construção e, por outro lado, sabe-se que não é organismo espontaneamente desenvolvido, ao contrário, é representação de complexas dimensões onde se misturam imagens e sensações que podem esconder ou revelar a cidade. (FERRARA, 2008, p. 43).

É perceptível que estamos lidando com um modo sensível de entender as cidades. Ao mesmo tempo em que há interação, entendê-la ou significá-la torna-se um acompanhamento quase intangível, na medida em que o sujeito, como parte da relação, não sabe significar o próprio valor de suas informações emitidas. A pichação pública pode ser um grande objeto de interação desse mote. Ao ser impressa em muros, fachadas, portões, o “picho” instiga a circularidade comunicativa da cidade, podendo ser uma válvula de ignição de mediações.

Do ponto de vista das histórias em quadrinhos, em específico, A era de Ultron, devido ao seu impacto visual, a destruição das cidades é uma maneira, talvez duvidosa, de manter a circularidade comunicativa. Calcular o valor de tal impacto nos leva a uma sobriedade dos acontecimentos subjetivos das personagens e do processo evolutivo do enredo.

[…] a cidade é, ao mesmo tempo, objeto comunicativo e sujeito da sua própria interação que nela se desenvolve: entre as duas possibilidades podemos salientar a dimensão do seu ambiente mediativo e observar nuances e nexos que se estabelecem entre meio, mídia e interação. Considerando-se uma elementar estrutura comunicativa observa-se que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a cidade não pode dispensar o código que a mobiliza, está a mercê daqueles impactos que a transformam e a levam a explosivas alterações. (FERRARA, 2008, p. 43).

Ora, se a cidade está participando de todas as pontas do sistema, as alterações citadas por Ferrara podem ser atribuídas ao que sentimos ou, ainda, ao que desejamos.

Quando é colocado que exista um “alívio” massificado ao ver uma cidade sendo destruída sob várias possibilidades e dimensões, abrimos mão do sentimento de culpa criado por nós quando não conseguimos visualizar, muito menos compreender, a experiência urbana como consequência do nosso modus operandi de cotidiano. Logo, sentir-se aliviado em ver uma cidade devastada se traduz na libertação do homem em não precisar, pelo menos na ficção, interrogar a complexidade de suas relações com a cidade e com o urbano.

Essa trajetória pode abrir ou incitar uma maneira de funcionalismo urbano, em que temos apenas uma noção sobre os acontecimentos, sem a necessidade de ir além, isto é, de investigar o complexo. Nós fazemos parte das mediações urbanas ao mesmo tempo em que significá-las não é pratica da nossa dinâmica cultural.

A não introdução do sujeito observador, no cenário, parte de suas próprias ações, logo, não nasce a necessidade de pensar o observado e, consequentemente, experiencializar o urbano. Nos quadrinhos e no cinema, ainda é grande o distanciamento do sujeito observador e o externo fictício. Ao contrário do mundo real, o observador potencializa a sua sensibilidade ocupando o lugar como um ator interveniente, ele mesmo busca a qualidade de ser no mundo através da estrutura por ele observada, logo, isso não é uma tarefa simples de ser apreendida e trabalhada.

Ao se deparar com uma situação de calamidade urbana, o observador de quadrinhos ou o espectador de cinema, ao mesmo tempo em que experiencializa o fato, produz, desse acontecimento comunicacional,[2] uma fonte de incomunicabilidade. Se o alívio é peça fundamental para escapar das interpretações complexas dos cenários urbanos, sua incomunicabilidade é o destino do pensamento. O alívio é a barreira no trajeto que não nos leva à verdade do objeto comunicado. Essa verdade é navegante e nunca será investigada em sua essência, já que os processos de incomunicabilidade fazem parte (cada caso com as suas devidas proporções) de todo e qualquer trajeto dos meios comunicantes.

Nesse movimento, o estudo da cidade enquanto meio comunicante, é “o meio é a pele da cidade” esta que, é marcada pelos “materiais, formas, volumes e implantações”, (FERRARA, 2008). Combinando este movimento, com a permanente evolução técnica, temos as essências do espaço edificado como potência de cidade.

Os meios ajudam a transmitir trocas simbólicas que influenciam na subjetividade e na própria escrita da cidade. Nessa intensa via de mão dupla, no entre janelas e portões, no andar nas calçadas, no atravessar a rua, ao mesmo tempo em que se constroem as representações simbólicas nasce a incomunicabilidade das essências: “[…] os meios desenham a história da cidade através dos suportes da construção e criam um ambiente que pode estimular ou impedir a comunicação que constitui seu cotidiano que, banal, não atrai a atenção científica”. (FERRARA, 2008, p. 45).

Justamente o sentido do produto final, ou seja, ser ou ter uma espessura banal na realidade, nos faz crer que, em algum nível dos processos, naturalmente, algo foi colocado de lado na transmissão, fazendo com que seja estruturada uma forma de costume no qual a massa não necessita estar atualizada sobre todo o mapeamento relacional que a cidade emana, porque o produto final está em nossa carne, funcionando como cotidiano, logo, aqui está o fruto do banal.

Portanto, o alívio de presenciar uma cidade destruída é estratégia de permanência do sujeito no amorfo. Ao assistir ou observar, não nos vemos como analista de resultados, muito menos oferecer promessa de solução. Do ponto de vista massificado, o homem está mais para peça funcional do que para fator de ignição cognitiva, estabelecido nos processos estruturais tanto com a cidade real, quanto com as cidades representadas na ficção de histórias em quadrinhos.

A Era de Ultron – Descrição da História

 A novela gráfica A era de Ultron (2014) é uma história paradoxal, limitada em formato mensal, publicada pela Marvel Comics que envolve o retorno de uma inteligência artificial chamada Ultron que tem o objetivo de conquistar e destruir os habitantes do planeta Terra.

A proposta da trama é evidenciar que a evolução tecnológica, na aparência de um robô, se rebelou contra a humanidade e superou todas as formas de defesa possíveis do mundo. Por conseguinte, no primeiro capítulo, em que a trama realmente se abre para os leitores, torna-se evidente o impacto dessa inteligência artificial, já que se visualiza o estado das cidades no decorrer da história. Nova York, São Francisco, Londres aparecem em ruínas flamejantes. Neste ponto, podemos enunciar que o acontecimento maior do enredo supõe um clímax inicial, objetivando a apreensão dos leitores para além da mera audiência.

Está sendo mais uma vez colocado ao público uma hecatombe que força o pensamento do leitor a significar o acontecimento como possibilidade de realidade em algum momento vivido de sua própria história.

Análise Iconográfica Bidimensional

 Antes de adentramos nas cenas escolhidas para a análise como visualidades impactantes, faz-se necessário mostrar que a proposta de análise navega em duas frentes. Vamos interrogar, via imagens, quais são os efeitos dos cenários dentro da trama e de que maneira o impacto influencia a própria evolução da história.

Em uma segunda perspectiva, trataremos a maneira como o observador ou leitor da história em quadrinho pode reagir, sob o ponto de vista de pensar o urbano, perante as cidades destruídas. Tal abordagem poderá ampliar os horizontes de pesquisa a fim de nos separarmos do fato de cidades destruídas serem objetos de análise das audiências, do capitalismo e do espetacular. Devemos nos ater no modo em que os cenários urbanos influenciam a nossa capacidade de mediação com o mundo externo – outro à natureza.

Do ponto de vista da proposta que o enredo nos traz, observamos que as cidades, como cenários de destruição, não significam algo totalmente externo ou desvinculado do homem.  Pelo contrário, o sentimento de desolação e de falta de esperança dos sobreviventes do enredo se alinha perfeitamente com a cena urbana devastada. Logo, podemos perceber nessa relação, homem – cidade – destruição, uma proposta de sensibilidade do ente em relação ao externo. Não se trata, aqui, de uma ação comunicativa homem e natureza, mas sim de uma forma sensível de tentar uma sincronia mediática entre sujeito e cidade.

Bem sabemos que Nova York é uma metrópole que espelha e absorve a maioria dos acontecimentos globais e, dessa forma, movimenta-se. Ela também é fonte inspiradora de novas tendências em variados campos, tais como: inovação, estética, show businnes, estruturas organizacionais, estratégias urbanas etc. Quanto mais a cidade chama atenção para as variadas formas de ser e estar, mais o seu poder simbólico torna-se referência para o mundo, assim, é derradeira uma cidade como Nova York transformar-se em alvo de audiências pelo seu caráter de circularidade de efeitos.

O papel dos veículos de comunicação de massa incluindo nesse ínterim as histórias em quadrinhos é tratar a imagem da cidade como mídia e usá-la como processo comunicativo: “A imagem é, portanto a primeira forma de comunicação entre a cidade e o usuário através dos seus ícones /símbolos que, justapostos ou não, são a primeira forma inteligível da arquitetura como código cultural”. (FERRARA, 2008, p. 46).

No caso das histórias em quadrinhos, a estratégia popular de quem escreve e produz tais ficções entende que não há melhor cenário para ser usado, como palco das infinitas batalhas entre o bem e o mal, que as cidades-metrópoles. A presença incessante da imagem das cidades, nas histórias em quadrinhos, em geral, é um fato crescente no qual escritores chegam a esgotar o sentido delas como estrutura estática. Por fim, surge a urgência de abordar as perspectivas falibilistas da cidade por meio da exponibilidade[3] da mesma.

A partir disso, o cenário começa a se transfigurar, ao ponto de se tornar parte do movimento:

Enquanto fruição, a imagem está relacionada à paisagem da cidade. Nesse caso, paisagem não é cenário, ao contrário, é agente de uma dinâmica cultural que, enquanto mídia, elimina as dimensões perceptivas que distinguem visualidades para atuar como controle de um modo de ver programado à distância pelos veículos de comunicação de massa […] (FERRARA, 2008, p. 47).

Esse modo de ver programado colocado por Ferrara em plena fruição de leitura é uma maneira de influenciar a observação. Vejamos, a partir de agora, de que maneira os quadros da história em quadrinho, A Era de Ultron transformam a sua maneira de leitura e abordagem por meio dessa dinâmica cultural programada:

Figura 01

Descrição: Depois de uma longa noite combatendo o crime convencional em Nova York, Peter Parker (Homem Aranha) entra em sono pesado no seu apartamento. Na manhã seguinte, a cidade está sob ataque de Ultron. Fonte: BENDIS, M. Brian & HITCH, Brian. A Era de Ultron: livro um. São Paulo: Panini Comics, janeiro/2014.

Na imagem acima, vemos uma sequência em que, nos primeiros quadros, o herói está vestido de urbano, ou seja, chegou em casa tarde por causa de seus afazeres infinitamente acumulados de um dia normal, como todas as outras pessoas que vivenciam o mesmo ambiente. Ao acordar, se depara não com uma invasão alienígena ou uma rebelião de robôs, mas sim com a transfiguração da cidade por meio da destruição. O impacto de presenciar a cidade sendo devastada é extremamente maior do que uma invasão de robôs porque a destruição está no entendimento comum dos possíveis acontecimentos. Se a cena inicial fosse descrita com robôs voando sobre a cidade, o entendimento sobre o acontecimento seria prejudicado do ponto de vista da recepção do fato, uma vez que pode causar certo estranhamento. Em outras palavras, o entendimento total sobre um acontecimento é mais rápido e impactante quando ele lhe atinge na carne, na familiaridade com as coisas.

Nas sequências dos quadros, vemos o acontecimento pelos olhos do herói, causando exatamente o impacto da transfiguração da cidade. A partir disso, podemos enunciar que o acontecimento mais importante é a remodelação da cidade frente aos olhos do observador, este que é tanto o herói quanto o leitor.  Essa remodelação torna-se importante na medida em que no último e maior quadro da imagem só conseguimos ver o herói na cena (canto inferior esquerdo) após o vislumbre da cidade sendo remodelada.

A partir disso, a cidade começa a tomar conta dos próximos quadros da história como um protagonista ou objeto de suma importância para o entendimento da trama.

Figura 02

Descrição: Ultron devastando o subúrbio de uma metrópole. À esquerda da imagem, a destruição de uma igreja, ação simbólica que pode remeter à soberania da tecnologia sobre instituições seculares. Fonte: BENDIS, M. Brian & HITCH, Brian. A Era de Ultron: livro um. São Paulo: Panini Comics, janeiro/2014.

Observem que, nessa cena de quadro único, Ultron começa a se tornar uma ameaça quase onipresente. Nesse sentido, remetendo-nos a um contexto histórico dos heróis de quadrinhos, o que assola todos é o fato de ser impossível estar em todos os lugares para salvar quem quer que seja; aí está a limitação humana dos heróis. Na maioria das vezes, eles são criados ou seus enredos se prolongam por causa de mortes não solucionadas, ou ainda para esclarecerem acontecimentos que estão fora do seu alcance.

Ao contrário disso, Ultron é um vilão absolutista, quando se trata de metrópoles e tecnologia, ele está em todos os lugares, logo, temos a aplicação da onipresença da destruição.

Figura 03

Descrição: Cidade da Califórnia após o ataque de Ultron. Fonte: BENDIS, M. Brian & HITCH, Brian. A Era de Ultron: livro um. São Paulo: Panini Comics, janeiro/2014.

Após a invasão da cidade, o contexto da trama sofre uma guinada direcionada para as vivências subjetivas. Na cena acima, a personagem Viúva Negra percorre os escombros da cidade sob um tom nostálgico. Não se observa nenhum tipo de busca a sobreviventes ou a vontade de contra-atacar o inimigo, mas sim ações que estariam no cotidiano normal de qualquer herói. Ao contrário, o movimento inicial e mais importante foi entender o que aconteceu com o cenário, ou seja, é necessário, primeiramente, tentar compreender a transfiguração do externo para, assim, retomar um possível cotidiano de normalidade.

Ora, se na realidade já é complexa a tentativa de entender as mediações urbanas que nascem com o tempo, e que é transmitida na carne, e da carne para as paredes e corredores e dos corredores para o modo de vida das pessoas, apresentar esse contexto no plano fictício e propiciar uma tragédia verossímil com o mundo vivido, como a novela gráfica O Edifício[4] de Will Eisner, é o grande gancho de ajuda subjetiva para termos uma visão mais apurada das situações corriqueiras ou, ainda, das situações mais imprevisíveis. O impacto da não compreensão (do inusitado) de ver algo sendo destruído reflete a mesma falta de percepção das construções sociais em sua volta. Dessa maneira, a cena acima nos remete a indagações, ou seja: se não conseguimos compreender a totalidade da cidade como objeto final de ressonâncias vividas, temos de destruí-las para captarmos a sua essência? A imagem da cidade torna-se ameaçadora na medida em que a não compreendemos?

Considerações finais

Estudar as cidades é uma tarefa complexa, assim como distinguir de que maneira elas influenciam a trajetória da sociedade. Em meio aos ajuntamentos simbólicos que podem ser encontrados na novela gráfica A era de Ultron, podemos identificar o alívio como simbologia do inusitado, da incompreensibilidade, do deixar de lado a importância da sua presença, o alívio está em estado latente, seja ele no fruto de mediações na construção social do urbano ou na destruição, no adensamento espacial da cidade.

O alívio não está nas ferramentas conceituais e gráficas de representação das histórias em quadrinhos, ele se encontra no momento do inusitado, no momento do impacto quando se observa o estranho, aquilo que foi imaginado mais nunca aconteceu. O consumo simbólico da destruição das cidades alimenta o espetacular e, ao mesmo tempo, pode habilitar um funcionalismo na maneira de pensar o objeto, quando ele está baseado em estratégias de mídia.

Ver a destruição como alívio coloca “panos quentes” na perspectiva de pensar o espaço, os territórios e a mediação homem e cidade. A tarefa de pensar o mundo além do homem foge da cena. O antropocentrismo histórico pode ajudar a restringir, quase que naturalmente, profundidades mediativas entre homem e cidade. Conceber o alívio de ver uma cidade destruída (em linhas subjetivas e ficcionais, nas histórias em quadrinhos ou no cinema) por qualquer motivo, é o fenômeno que não nos deixa ir além da complexa ideia de pensar a comunicação das coisas.

Está lançado um olhar sobre as cidades das histórias em quadrinhos, nesse ínterim, está posta uma força emblemática direcionada ao imaginário social, uma força de movimento sobre a cidade. A imagem da cidade destruída, para quem vive a experiência urbana, pode dissipar signicamente o pensamento ao mesmo tempo que isso se torna essencial para compor a leitura dos cenários.

Pressupõe-se que podemos pensar a comunicação da cidade pelas histórias em quadrinhos comerciais, enxergá-las não apenas por dentro, mas desvendar suas operações sígnicas a partir da destruição, e ver como se corrobora a interação com o observador. Historicamente, as cidades são modeladas pelo homem e o homem é remodelado pelo urbano, o efeito de tais correspondências como a transfiguração sistêmica do externo em relação ao interno e vice-versa deve ser motivo de atenção para todos que convivem ou pesquisam as comunicações dos espaços.

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1983.
BENDIS, M. Brian & HITCH, Brian. A era de ultron: livro um. São Paulo: Panini Comics, janeiro/2014.
______. A era de ultron: livro dois. São Paulo: Panini Comics, fevereiro/2014.
______. A era de ultron: livro três. São Paulo: Panini Comics, março/2014.
______. A era de ultron: livro quatro. São Paulo: Panini Comics, abril/2014.
______. A era de ultron: livro cinco. São Paulo: Panini Comics, maio/2014.
BORGES. M. Santana. Comunicando a cidade em quadrinhos: do narrar ao fabular nos romances gráficos de Will Eisner. 2012. 223 p. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, São Paulo, 2012.
DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Anablume, 2009.
EISNER, Will. Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço. Tradução João Paulo Lian Branco Martins e Helcio de Carvalho. São Paulo: Brasiliense, 1995.
______. Nova York: a vida na grande cidade. Tradução Augusto Pacheco Calil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. A vizinhança: avenida Dropsie. Tradução e adaptação Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2009.
FERRARA, L. D’Alessio. Cidade: meio, mídia e mediação. Matrizes (USP. Impresso), v. 2, p. 39-53, 2008.
MARCONDES, F. Ciro (Org.). Dicionário da comunicação 2º. ed. São Paulo: Paulus, 2009.

Notas

[1] Clássico romance brasileiro que retrata a vida urbana no fim do século XIX. Ambientado no Rio de Janeiro, O cortiço traça um painel da sociedade brasileira, suas relações sociais, econômicas e de poder. Sob tom de denúncia, Azevedo, além de distanciar aquela visão fantasiosa presente no romantismo, insere o trabalhador de diferentes profissões como figura maior de visibilidade da trama. O enredo também conta com a apresentação e o conflito de classes, retratados sob dois ambientes diferentes, o cortiço de João Romão e o sobrado de Barão Miranda, configurando a presença de várias categorias sócio-econômicas.
[2]  Para Ciro Marcondes Filho (2009), o acontecimento comunicacional é um fenômeno que está na estrutura silenciosa do fato. A compreensão do acontecimento parte do encontro do plano individual e subjetivo com o plano estrutural da sociedade e a comunicação desse encontro só pode ser vista e estudada no momento, na presença, durante a sua recepção. Já o acontecimento mediático é o evento que amplia o trajeto do acontecimento comunicacional como produto final. Considera-se, o cotidiano, como ator maior que causa repercussão nos media. A destruição, o espetáculo, a mercadoria como fetiche, os escândalos são base de construção de significados para um fato ou evento se tornarem mediático. Segundo Ciro, “Para que um evento possa ser considerado um acontecimento, este deverá ser interpretado por um sujeito. Sendo assim, não basta apenas que algo de impacto aconteça, mas este acontecimento deverá ser percebido e interpretado por alguém como algo relevante”. A incomunicabilidade da coisa está quando os meios de comunicação se apropriam dos produtos do cotidiano e, segundo Günter Anders, “cria um mesmo mundo para todos; um mundo viciado nos mesmos temas, nas mesmas formas de ver, na mesma sensibilidade, nos torna todos congruentes”. É um possível processo de engessamento do pensar, ou seja, cria-se uma matriz mediática com circularidade restrita, traços do mundo vivido como estratégia de atenção e como produto final temos não mais um livre observador de filmes ou de quadrinhos, nós temos um funcionário do media que só pensa com o que lhe é oferecido, qualquer coisa além disso torna-se algo não necessário.
[3] Termo usado por Ferrara para potencializar a visualidade do objeto. No caso do universo de consumo, o objeto não é mais um produto, se transfigura e torna-se mercadoria. Exponibilidade do produto está originalmente alicerçado em estratégias de mercado. Do ponto de vista do quadrinho abordado, a destruição das cidades se faz mercadoria porque denota o regime da sedução, o impacto da destruição sem possibilidade de esperança torna-se cativante aos olhos do observador e tal ação pode ser canalizada para a produção audiovisual de uma série de devastações visando sempre à circularidade do lucro.
[4] Novela gráfica que aborda a existência de um determinado prédio situado em Nova York. A história mescla as trajetórias de quatro indivíduos: Monroe Mensh, um típico cidadão nova-iorquino, Gilda Green, uma bela mulher, Antonio Tonatti, um talentoso violonista e P.J Hammond um milionário. Todos são personagens trágicos cujo único ponto em comum é o fato de suas histórias estarem atreladas ao edifício, lugar onde todo o enredo se desenrola.

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