Natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, Virgílio Lima Santos*, filho de Jurandir Lima Santos* e Maria Bouvier*, não demorou para se reconhecer como homossexual. Na verdade, sua família descobriu antes mesmo dele e não fazia questão de poupá-lo, impondo restrições na tentativa de alterar sua orientação sexual.
— Desde criança tenho vários trejeitos, e sempre era punido por meus pais por não seguir o que me era imposto.
Virgílio foi uma criança emotiva e de choro fácil e sofrera bastante por isso.
— Eu ouvia frases do tipo ‘vou te dar motivo para chorar’. Também me forçavam a engrossar a voz, senão era agredido por isso.
Os pais de Virgílio se separaram por volta de seus 12 anos. Com o pai fora de casa, o garoto teve a liberdade de verdadeiramente ser quem era.
— Minha mãe foi mais liberal, deixando meu irmão e eu experimentar coisas, como deixar o cabelo crescer e escolher as próprias roupas.
No entanto, Maria fazia questão de que os filhos mantivessem o vínculo com a parte mais conservadora da família. Apesar da aceitação visual na adolescência, a palavra gay — ou demais termos relacionados à homossexualidade — não eram mencionados nem por ele nem pelos pais. Virgílio, na verdade, nunca teve a chance de se assumir gay.
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No final de 2014, Virgílio, a mãe, o irmão e a tia Jaqueline viajaram para um acampamento de verão, em Curitiba. Lá, Virgílio pretendia encontrar um conhecido. Há meses, ele mantinha amizade com um rapaz de Curitiba por meio de um aplicativo de relacionamento. Contudo, Virgílio não contou a ninguém sobre o amigo virtual. No auge de seus 17 anos, sem nunca ter beijado, ele teria sua primeira chance de viver essa experiência.
William Araújo*, estudante de Geografia, natural de São Luís do Maranhão, era rechonchudo e tinha um sotaque marcante. A atração entre eles, iniciada pelo aplicativo, materializou-se para a vida real. Entre passeios às escuras pelo acampamento, Virgílio não somente deu o primeiro beijo, mas também perdeu a virgindade com William.
Entre tanta felicidade e descoberta sexual ao estilo Me Chame Pelo Seu Nome, Virgílio não percebeu, mas estava sendo observado atentamente. Sua tia Jaqueline notou o romance veranil, mas manteve a informação para si mesma. O verão acabou, Virgílio e William se separaram e a família voltou para o Rio Grande do Sul.
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Ainda em férias, a rotina de Virgílio e de sua família não havia voltado ao normal. Durante as primeiras semanas de 2015, almoços e lanches da tarde eram compartilhados entre familiares. Sem poder estar perto de William, a relação de Virgílio voltou a ser virtual. O contato físico não existia mais e o máximo de intimidade que ambos conseguiam ter era por chamadas de vídeo. A calmaria, contudo, estava com os dias contados.
Virgílio ainda estava certo de que ninguém havia notado o seu romance no acampamento. Porém descobriu da pior forma que a história havia se alastrado: ele iria morar com seu pai. Sua tia, que não tinha ressalvas com o fato dele ser gay, achou que os demais iriam reagir do mesmo modo. Mas se enganou.
A notícia não poderia ser pior, pois apesar do tempo, Virgílio ainda não havia esquecido do comportamento abusivo do pai durante sua infância. Com a mudança, a família esperava uma diferença no comportamento do garoto.
— Meu pai me fez prometer que eu teria contato com mulher.
Inicialmente, a convivência com o pai e Elizabete, sua madrasta, foi árdua.
— Apesar dos nossos embates, ele não havia mudado em nada. Um dia, ele ameaçou me espancar. Mas eu esclareci que ele poderia me bater o quanto quisesse que minha orientação sexual se manteria.
O pai não respondeu nada, mas Virgílio suspeita que a indignação de Jurandir poderia ter tido um desfecho bem mais sério.
— Depois da briga, eu fui tomar banho e ele invadiu o banheiro sorrateiramente. Quando notei, chamei a atenção dele e ele saiu. Não tenho certeza do que iria fazer, mas ao sair do banheiro, notei ele diferente. Parecia criança quando faz algo errado e tenta esconder. Pode ser paranoia minha, mas eu acho que ele ia tentar tirar a minha vida.
Longe da família materna, o alicerce de Virgílio foi sua madrasta que, apesar de não confrontar o marido, ajudava o enteado, fazendo o possível para evitar atritos.
— Ela também achava que a minha homossexualidade era apenas uma fase, porém, não agia como ele.
Ao longo de meses, a convivência foi se atenuando, apesar de longe do ideal. Todavia, mediante ao estresse familiar e as dificuldades de convivência, o namoro virtual de Virgílio e William não perdurou. O pai foi o maior incentivador para o fim da relação.
— Ele me pressionava para terminar com William. Enfatizava que ele iria acabar me traindo e eu nunca ficaria sabendo. Além disso, meu pai tinha desprezo pelas ações sociais realizadas por William. Ele nunca citou diretamente, mas sei que ele não gostava do fato dele ser de esquerda.
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Dois mil e quinze terminou e a estadia de Virgílio com o pai também. A família entendeu que, independentemente de onde ele morasse, iria continuar sendo homossexual. Intervenção nenhuma iria mudar isso. Mais complacente, mas não totalmente redutível, Jurandir havia se conformado com o filho gay.
— No final, tudo bem que eu fosse homossexual. Mas teria de me tornar rico ou pelo menos diretor de alguma grande empresa. Segundo ele, essa era a única forma de eu ser respeitado no mundo.
De volta à casa de sua mãe, Virgílio não encontrou mais percalços e pode viver em paz com sua orientação sexual. Por fim, Maria havia até se arrependido de obrigar o filho a morar com o pai. Apesar do retorno pacífico, a família recomendou que Virgílio buscasse orientação psicológica — ao que ele descobriu ser portador da Síndrome de Asperger, condição que afeta a percepção de mundo do indivíduo e seu comportamento social.
Desde então em tratamento, Virgílio optou por estudar psicologia cognitiva, área responsável pelos processos neurológicos que motivam determinados comportamentos. A respeito de seu passado, Virgílio admite as sequelas, e não hesita em revisitar lembranças amargas.
— Eu caminho de um modo estranho e conciso por receio de andar rebolando e apanhar por aí. Mas meu passado me moldou a ser quem sou hoje. Foi estranho crescer ouvindo que eu estava quebrado e que precisava ser consertado. Eu perdoei meu pai, porém não esqueço o que ele fez. Também perdoei minha mãe. Ela foi a única que conseguiu mudar com o tempo e hoje me ama da mesma forma que sempre me amou. Minha história me incentiva a ser aquele profissional no ramo da psicologia que vai dizer: ‘você não está quebrado’.
*nomes fictícios
Crédito da ilustração: Kate Scarpi
Capítulo do livro: Gay Demais Para Ser Levado a Sério