Aos 75 anos, Zé Mário é um contador de histórias irresistível. Com um sorriso que transparece simpatia e um olhar profundo que reflete sua experiência, o ex-treinador de equipes como Botafogo, Goiás e Internacional, além de clubes como o Kashima Antlers do Japão e clubes de futebol árabe, consegue misturar suas vivências pessoais com análises críticas sobre as mudanças no jogo, especialmente com a influência dos técnicos estrangeiros. Com um discurso acessível e repleto de exemplos práticos, Zé Mário destacou não apenas os desafios que essa troca de conhecimento representa, mas também como ele se tornou uma referência em táticas e metodologia no futebol.
Quando o assunto é a crescente presença de técnicos estrangeiros no Brasil, Zé Mário não se esquiva. Ele se mostra preocupado com a situação atual dos treinadores brasileiros e demonstra bastante desapontamento: “O problema que está acontecendo com o treinador brasileiro é muito grave. Não é só uma luta pelo futebol; é uma questão de dignidade”, afirma, com a voz firme. Ele tem uma opinião clara: os técnicos brasileiros são subestimados. Ele lembra que trabalhou no exterior contra treinadores famosos da Europa e sempre teve sucesso. Para ele, os treinadores brasileiros são uns dos melhores.
Mas essa crença não vem sem desafios. Zé Mário revela que os treinadores brasileiros frequentemente enfrentam prazos apertados e uma pressão imensa. Ele explicou que, ao assumir um time, o técnico não lida apenas com os jogadores, que já são muitos – cerca de 30 atletas –, mas também com uma comissão técnica inchada. É muita gente para gerenciar. 60, 65 pessoas sob sua responsabilidade em pouquíssimo tempo. Essa dificuldade é ampliada pelo fato de que, muitas vezes, os treinadores não têm a oportunidade de conhecer seus jogadores de forma mais profunda, e brincou: “A gente não conhece nem nossa família direito, imagine um time todo.”
Aparentando certa decepção, Zé Mário comentou que para ele os técnicos estrangeiros têm a vantagem do tempo. Eles podem perder três ou quatro jogos e ainda ficam meses à frente do time, enquanto o treinador brasileiro é demitido após três partidas ruins. O treinador brasileiro não tem uma rede de segurança como eles têm. Ele também menciona a discrepância nas rescisões contratuais, onde os técnicos estrangeiros muitas vezes recebem multas milionárias que os garantem por um bom tempo, enquanto os brasileiros lidam com condições muito menos favoráveis.
Para ele, o futebol brasileiro é mais técnico e o estrangeiro mais físico. Essa realidade traz à tona a necessidade de adaptação ao ambiente em que se trabalha. Quando você chega a um novo clube, você precisa respeitar a cultura do lugar, as características do jogador, e isso leva tempo. Zé Mário defende que é fundamental entender que cada país tem seu estilo, e isso deve ser considerado.
O equilíbrio entre a técnica e físico é um dos debates que continuam moldando o futebol nacional, mas a visão de Zé Mário, pautada por décadas de experiência e reflexões sobre o jogo, é um lembrete de que, por mais que as novidades estrangeiras sejam bem-vindas, não podemos perder de vista o que sempre fez do futebol brasileiro algo tão especial.
Em relação ao trabalho com preparadores físicos é taxativo: “Eu não deixo ninguém fazer a programação para mim. Aprendi a fazer isso no Botafogo e nunca mais deixei outro fazer. É uma questão de responsabilidade. Quem cai sou eu, então quem faz sou eu”. Para ele, a técnica deve vir antes da parte física. “O físico é secundário. O que precisamos é de aprimoramento técnico. O jogador precisa de orientação específica para sua função.”
Ele conta que prefere ser ele mesmo a definir a programação de treinos, lembrando de quando treinou o time do Botafogo em 1982 e 1983. Para ele, há um grande foco no lado técnico em comparação ao físico. E não se trata apenas de uma questão técnica, mas de responsabilidade.
Essa postura, que pode parecer controladora à primeira vista, reflete a preocupação de Zé Mário com o que realmente importa dentro de campo: a técnica. Ele enfatiza que, antes de correr, o jogador precisa saber o que fazer com a bola nos pés. De nada adiantava ter o físico de um atleta olímpico se o jogador não soubesse como posicionar o corpo ou como finalizar corretamente. E é categórico ao afirmar que cada atleta precisa de uma orientação específica para sua função. O essencial era entender que a técnica precisava vir antes do preparo físico, pois era ela que realmente fazia a diferença dentro de campo.
O treinamento é algo que o incomoda profundamente. Ele critica a prática excessiva dos exercícios em campo reduzido, argumentando que isso limita a criatividade dos jogadores. Para ele, futebol não se resume apenas a toque de bola e correria, e o que realmente importa é quem consegue fazer o gol. Ele cita um clássico carioca como exemplo, onde um time teve 80% de posse de bola, mas acabou perdendo por 2 a 0, ilustrando o reflexo de um estilo de jogo que, segundo ele, está sendo mal ensinado. Aplicar as táticas europeias no Brasil nem sempre vai respeitar as características dos jogadores brasileiros.
O conhecimento no futebol é outro ponto mencionado por Zé Mário. Ele afirma que sempre foi um estudioso e fez diversos cursos ao longo de sua carreira. No entanto, ele acredita que é essencial aplicar esse aprendizado de uma forma que faça sentido para o futebol brasileiro. Ele recorda que, ao trabalhar com preparadores e treinadores estrangeiros, sempre fez questão de impor suas próprias regras. Para ele, é fundamental que seja ele quem dá as ordens, garantindo assim que não ocorram mal-entendidos ou confusões durante o trabalho.
A preocupação com o futuro do futebol brasileiro é evidente. Ele reconhece os grandes desafios, mas acredita firmemente na capacidade dos treinadores brasileiros de se adaptarem e se destacarem. Para ele, o futebol brasileiro é repleto de criatividade e talento, e o que realmente falta é tempo e respeito para que esses profissionais possam realizar seu trabalho de forma eficaz. Ele reforça a necessidade de valorizar o que já existe no país, ao mesmo tempo em que se deve aprender a lidar com novas influências, mas sem perder a essência que sempre caracterizou o estilo brasileiro de jogar.
A conversa flui como um bom jogo de futebol, repleta de toques de sabedoria e experiência. A história de Zé Mário é a história de muitos que, assim como ele, acreditam que o futebol brasileiro ainda tem muito a oferecer e, com a mistura certa de tradição e inovação, pode continuar a brilhar.
Com a intensidade de quem vivenciou diferentes culturas no futebol, ele observa que o futebol europeu desenvolveu uma técnica avançada, mas muitas vezes essa mecanização sufoca a criatividade. Comparando com o Brasil, ele acredita que, enquanto na Europa surge um ídolo a cada cinco anos, o futebol brasileiro, em sua essência, sempre produziu vários protagonistas em um único ano. Para ele, a diferença é evidente.
Ele menciona nomes como Cristiano Ronaldo e Luís Figo, grandes jogadores, mas acredita que nem eles atingiram o nível de ícones como Eusébio que jogou pelo Benfica e pela Seleção Portuguesa nos anos 60. No Brasil, Zé Mário vê o Neymar como um talento de destaque, mas lamenta que, após ele, não haja muitos outros despontando. Segundo ele, o treinamento moderno, com um foco exagerado nas táticas que aliena o verdadeiro talento brasileiro, está prejudicando o desenvolvimento dos jogadores.
Para Zé Mário, o futebol sul-americano sempre foi sobre técnica, criatividade e o momento do jogo. Ele acredita que o drible é essencial, mas a finta é o que faz a magia acontecer, quando o adversário é enganado e o jogo muda de direção. Lembra com carinho de Garrincha, um mestre em deixar os marcadores completamente confusos, e lamenta que, nos campeonatos brasileiros atuais, já não se veem jogadores com o mesmo potencial para se tornarem os melhores do mundo.
Essa homogeneização das práticas de treinamento é algo que o preocupa profundamente. Ele acredita que até os 16 ou 17 anos, a prioridade deveria ser o lazer, a diversão em campo, porque é assim que se cria o amor pelo jogo. Para ele, o foco precoce na preparação física e na estruturação profissional é um erro, pois estão forçando os jovens a treinarem como adultos muito cedo, o que vai contra a celebração da técnica e da alegria que caracteriza o futebol sul-americano.
Zé Mário conta com convicção sobre a responsabilidade dos treinadores em preservar essa essência. Ele acredita que os jovens precisam de liberdade para explorar suas habilidades e desenvolver sua criatividade em campo, e expressa seu desejo de ver mais jogadores surgindo com o potencial para se tornarem os melhores do mundo. Essa é a visão de alguém que carrega uma paixão inabalável pelo futebol e pela formação de novos talentos.
É claro que Zé Mário não está sozinho nesse pensamento. Muitos técnicos, especialmente os brasileiros, têm se manifestado sobre a influência dos treinadores estrangeiros no estilo de jogo do país. Alguns técnicos estrangeiros, como Jorge Jesus e Abel Ferreira, têm deixado sua marca nos clubes brasileiros com táticas que muitas vezes contrastam com a abordagem tradicional sul-americana, levantando debates acalorados sobre o que realmente significa jogar futebol no Brasil.
Ao final das contas é fundamental respeitar as raízes do futebol brasileiro, que é vibrante, alegre e uma verdadeira arte. Ele espera que a nova geração de treinadores e jogadores compreenda isso e retome o caminho que fez do Brasil um celeiro de craques. Sua paixão pelo futebol e o desejo de resgatar a essência do jogo permanecem como guias para o futuro do esporte no país.
Com sua vasta experiência no Brasil e no exterior, ele reflete sobre os desafios enfrentados por técnicos trabalhando fora de seus países, especialmente no Brasil. Zé Mário relembra uma passagem nos Emirados Árabes, quando teve a chance de explorar a biblioteca da Federação Francesa de Futebol. Lá, ele comprou vários livros sobre o jogo e, empolgado com o novo conhecimento, decidiu aplicar tudo no clube em que estava.
Mas a reação dos jogadores foi bem diferente do que ele imaginava. “Eles simplesmente me olhavam, sem saber o que pensar!”, conta ele, rindo ao recordar a cena.
Essa experiência o fez perceber que não basta aplicar táticas de um lugar para outro sem considerar as particularidades de cada grupo. Cada país tem seu estilo próprio de futebol e seu tipo de treinamento. No Brasil, a técnica é prioridade, enquanto nos Emirados, as expectativas e a cultura são completamente diferentes. Isso o levou a um aprendizado importante: respeitar o desenvolvimento dos jogadores com quem trabalha. O que funcionava no Brasil nem sempre funcionava lá fora, e o contrário também era verdade.
Ele reconhece o impacto positivo de alguns treinadores estrangeiros no Brasil, como Juan Pablo Vojvoda no Fortaleza. O treinador argentino conseguiu, com tempo e planejamento, levar o time a disputar posições na parte de cima da tabela, algo inimaginável há alguns anos. Mas também levanta uma questão importante sobre a formação de novos talentos no Brasil: não se criam mais camisas 10, aqueles jogadores criativos que faziam passes geniais. Agora, até o goleiro é responsável por lançar a bola para a frente, algo que ele vê com preocupação.
Ele acredita que os jogadores precisam ser livres para se expressar e jogar de maneira criativa, e sente que essa liberdade está se perdendo. Para ele, o jogador de futebol deve ser um “moleque” dentro de campo, no melhor sentido da palavra. Ele precisa fazer jogadas bonitas, daquelas que fazem a torcida vibrar, e essa liberdade é crucial para o desenvolvimento do talento. Contudo, essa espontaneidade está sendo sufocada pela pressão por resultados imediatos, o que, segundo ele, tem um impacto direto no futebol brasileiro e na maneira como os jogadores são formados hoje em dia.
Zé Mário critica a atual estrutura de comando dentro dos clubes, apontando que o treinador brasileiro perdeu muito de sua voz de comando. Ele defende que o técnico deve ser o responsável pela equipe, sem dividir essa responsabilidade. E recorda uma experiência em que fez uma reunião com os jogadores para ouvir suas opiniões, e um preparador físico o alertou de que estava dividindo a hierarquia. Zé Mário concorda com essa observação, ressaltando que, no final das contas, quem deve tomar as decisões é o treinador.
Ao mesmo tempo que se preocupa com o futuro do futebol brasileiro, ele ainda acredita que há espaço para a criatividade e a técnica, desde que se respeitem as raízes do jogo. A esperança dele é que os novos treinadores e jogadores consigam encontrar esse equilíbrio, honrando a rica tradição do futebol no Brasil.
Um método que utilizou quando treinava no Guarani em 2001 e 2002, quando incentivou os jogadores a lerem livros de autoajuda, é uma recordação de que, segundo ele, o futebol é muito mais do que apenas jogar, é pensar também na formação integral dos atletas. ele relembra que tinha de seis a oito livros circulando entre o elenco, e os atletas precisavam passar os livros de um para o outro. Essa prática ajudava não apenas no campo, mas também na vida dos jogadores.
Foram muitos momentos marcantes fora do Brasil, contato com diferentes culturas e estilos de jogo ao longo de sua carreira. Zé Mário conta que ficou impressionado com a disciplina que observou, especialmente em equipes europeias. Lembra de um jogo contra o Atlético de Madrid, onde, na hora do almoço, cada jogador tinha uma garrafa de vinho à frente, mesmo sabendo que a partida seria à noite. Ele ri ao pensar na diferença cultural, comentando que se isso acontecesse no Brasil, as pessoas provavelmente achariam que era maluquice.
A disciplina que se vê nas equipes europeias é algo que ele considera valioso, mas reafirma a importância de respeitar as características locais. No Brasil, o treino deve ser diferente, pois, aqui há um estilo mais solto que permite que a criatividade dos jogadores brilhe, enquanto que na Europa, tudo é mais tático e controlado, refletindo a essência única de cada lugar.
Essa essência do futebol brasileiro é algo que ele defende com fervor. O futebol é decidido em décimos de segundo, e cada metro quadrado do campo pode gerar mais de um milhão de jogadas diferentes. Essa criatividade e improvisação fazem parte do nosso DNA. Para ele, um bom treinador deve estar atento a esses aspectos e adaptar seu estilo às características dos jogadores que tem à disposição.
Sobre as lições que aprendeu com treinadores europeus que passaram pelo Brasil, ele destacou que muitos deles percebem que o que faz sentido em seus países nem sempre se encaixa na realidade brasileira. “Eles precisam se adaptar ao nosso jeito de jogar.”
A troca de aprendizados é fundamental hoje em dia. Antigamente, o futebol brasileiro exercia influência sobre o europeu como foi o Santos de Pelé vencendo muitos grandes clubes europeus como o Benfica de Eusébio, mas atualmente estamos mais na posição de absorver do que de ensinar, o que gera um certo desapontamento, pois, para ele, é crucial recuperar a essência de formar protagonistas, algo que sempre foi nossa especialidade.
Ao longo de sua carreira, Zé Mário conquistou títulos importantes, como a Copa do Rei na Arábia Saudita em 2004 e vice-campeonatos em competições nacionais, sempre se destacando por sua capacidade de adaptação. Sua passagem pelo Al-Riyadh (Arábia Saudita), onde chegou em uma fase difícil, é um exemplo disso. O time estava na sexta colocação e lutava para não cair, mas, em pouco tempo, conseguiu levar o clube à conquista de um título vencendo a Copa do Príncipe em 1994 derrotando por 1×0 o Al-Shabab. Ele acredita que o sucesso vem de entender a dinâmica do time e dos jogadores, e que a flexibilidade é essencial para obter bons resultados.
Diante de tantas histórias fica evidente a paixão e o profundo conhecimento que Zé Mário possui sobre o futebol nacional e internacional. Suas reflexões vão além das táticas e estratégias; elas tocam na essência do que significa jogar futebol no Brasil. A experiência dele, que abrange diversas culturas e estilos, traz à tona a necessidade de um equilíbrio entre a disciplina europeia e a criatividade brasileira.
Zé Mário expressou um desejo claro: ver retornar a valorização do jogador como artista dentro de campo, capaz de encantar e surpreender. E a valorização do técnico brasileiro. Ele sabe que, apesar das dificuldades e pressões do cenário atual, a nova geração de treinadores e jogadores tem o potencial de recuperar essa magia. E, ao lembrar que o aprendizado é um processo contínuo, fica a mensagem de que a adaptação e a troca de saberes são essenciais para o crescimento do futebol brasileiro. Com um brilho nos olhos, ele conclui que a essência do nosso jogo deve sempre prevalecer, celebrando a alegria e a criatividade que fazem do futebol uma verdadeira arte.
Crédito imagem da capa: Israel Dideoli
Capítulo 04 do livro-reportagem: Futebol sem fronteiras: A influência dos técnicos estrangeiros no cenário brasileiro