Lembro-me de como resolvi fazer a minha primeira visita ao aeroporto. Era 14 de junho de 2024, uma sexta-feira. Havia sido a minha primeira semana no emprego novo, absorvi muita informação em poucos dias, algo que sempre acontece quando nos inserimos em ambientes novos.
Era de manhã, peguei o meu café, sentei no sofá e abri o meu e-mail para ler as notícias da newsletter que assino. A segunda matéria era sobre um tema que não poderia faltar na seleção de notícias daquele dia: o alto número de refugiados que desembarcam no aeroporto pedindo asilo no Brasil.
As autoridades brasileiras não estavam conseguindo atender tantos pedidos de refúgio e o próprio sistema de registro apresentava falhas, atrasando ainda mais o serviço de reconhecimento de refúgio e fazendo com que os grupos ficassem acampados no aeroporto, até que recebessem uma resposta.
Mais de 360 imigrantes, a maioria da Índia e de países do continente africano, estavam em meio a situações precárias, dormindo na área restrita do Terminal 3, enfrentando infestação de piolhos, sarna e crises de ansiedade. Me parecia que o primo rico não havia preparado bem o quarto para as visitas.
Fiquei imersa no assunto, procurando mais e mais informações. Encontrei outra matéria com uma foto de um refugiado usando um tradutor para pedir ajuda à comissão de refúgio ao dizer “Estamos aqui nos últimos 10 dias. Quando sairemos?”
Precisava ver essa situação com meus próprios olhos. Sei que não poderia entrar na área restrita para entender melhor a situação, a não ser que enviasse ao menos 348 e-mails (que talvez fossem negados). Então, resolvi ser mais realista e simplesmente ir ao posto de atendimento aos migrantes.
Antes mesmo de chegar próximo ao local, notei a presença dos refugiados por meio de alguns vestígios de pedaços de cobertor deixados pelo chão. Havia algumas mulheres com lenços na cabeça, sentadas nos bancos que ficam ao lado do posto de atendimento. Elas falavam baixo, nem dava para tentar decifrar o que poderia ser, mas com certeza não era um idioma que eu entendia.
Me sentei próximo a elas em um dos bancos vazios. Fiquei diante de um grupo formado por mais ou menos quatro mulheres e uma criança, mais precisamente um menino que aparentava ter uns nove anos. Automaticamente elas ficaram desconfiadas ao notar minha proximidade, assim como o menininho, que chegou mais perto de uma mulher, que deduzi ser sua mãe, e cochichou algo.
Em meus primeiros minutos ali, o local me pareceu gelado, então imaginei o quão desconfortável deveria ser ficar naquele ambiente (por diversos fatores que vão além do frio). Eram pessoas que estavam tentando uma vida melhor, mas que estavam morando no aeroporto de um país com uma cultura totalmente diferente, enquanto aguardavam alguma resolução.
Percebi que os carrinhos de carregar as malas serviam como apoio para a construção de tendas em um canto mais escuro daquele espaço. Havia um carrinho em cada ponta e um cobertor estendido em cima, formando uma espécie de cabana.
Apesar de terem feito algumas cabanas, um homem dormia em um banco. Não tinha ninguém ali observando aquelas pessoas para saber se precisavam de algo ou para evitar que alguém fizesse mal a elas. Elas estavam sós.
Ninguém ao redor parecia se importar muito também. Duas mulheres passaram conversando sobre seu supervisor e agiram normalmente. Todos passavam por ali apressadamente, e apenas aquele grupo parecia ter tempo para esperar o quanto fosse necessário, mesmo que aquilo não fosse uma escolha deles.
Uma família alegre passou sem nem olhar para o lado e notar possivelmente a presença do pequeno grupo, no entanto, quando direcionei o meu olhar para aquelas mulheres silenciosas, percebi que havia outro menino saindo do pequeno acampamento. Mais uma criança.
Aparentemente todos estavam acostumados com aquele cenário, afinal, fazia semanas que os refugiados acampavam no aeroporto. Não tentei nenhum tipo de interação, pois percebi o desconforto que elas estavam passando, pois o objetivo delas definitivamente não era estar ali.
Continuei acompanhando as notícias durante os dias que seguiram. Ocasionalmente me perguntava sobre o destino daquele grupo. Será que elas conseguiram? Será que os meninos, finalmente, vão poder aproveitar sua infância, brincar e correr em um lugar melhor? Será que vivem em condições melhores agora? Espero que sim.
A essa altura do campeonato já estamos em 26 de agosto, basicamente um mês após a minha visita, e o número de pedidos de refúgio aumentou, chegando a 507 solicitações. Faz três dias que o Ministério da Justiça decidiu criar regras para evitar que algumas áreas de todos os aeroportos internacionais do país virem acampamentos de imigrantes.
Todo estrangeiro que chegar ao país precisa agora ter um visto de entrada, caso contrário, é obrigado a voltar ao seu país de origem ou então partir para o seu destino. A Polícia Federal descobriu que a maioria dos imigrantes usa o Brasil como um “pit stop”. Solicitam o asilo aqui, até conseguirem a liberação, como refugiados em países como Estados Unidos e Canadá.
Volto ao aeroporto pela segunda vez. Agora, já estamos em outubro e já se passaram quatro meses desde a minha primeira visita. Os noticiários não têm mais dado ênfase ao número de pessoas que aguardam o pedido de refúgio, o que me faz pensar que a situação já está “controlada”, mas preciso ver com meus próprios olhos. Vou direto ao local em que vi as mulheres de lenço da outra vez.
Não tem ninguém. Não há vestígios de cobertores pelo chão, não há cabanas, não há ninguém dormindo em bancos, não há crianças e não há mulheres de lenços. Fico aliviada. A única coisa que restou foram os bancos e o silêncio. Pelo menos aqui.
Crédito imagem da capa: Israel Dideoli
Capítulo 07 do livro-reportagem: Origens: o passado, o presente e o futuro do aeroporto de Guarulhos