Nós dependemos do Feitiço.
Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o indiscutível valor do Feitiço, do misterioso preparado dos negros.
É provável que muita gente não acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas não há ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca a indolência malandra dos negros e das negras. É todo um problema de hereditariedade e psicologia essa atração mórbida. Os nossos ascendentes acreditaram no arsenal complicado da magia da Idade Média, na pompa de uma ciência que levava à forca e às fogueiras sábios estranhos, derramando a loucura pelos campos; os nossos avós, portugueses de boa fibra, tremeram diante dos encantamentos e amuletos com que se presenteavam os reis entre diamantes e esmeraldas. Nós continuamos fetiches no fundo, como dizia o filósofo, mas rojando de medo diante do Feitiço africano, do Feitiço importado com os escravos, e indo buscar trêmulos a sorte nos antros, onde gorilas manhosos e uma súcia de pretas cínicas ou histéricas desencavam o futuro entre cágados estrangulados e penas de papagaio!
Vivi três meses no meio dos feiticeiros, cuja vida se finge desconhecer, mas que se conhece na alucinação de uma dor ou da ambição, e julgo que seria mais interessante como patologia social estudar, de preferência aos mercadores da paspalhice, os que lá vão em busca de consolo.
Vivemos na dependência do Feitiço, dessa caterva de negros e negras, de babaloxás e iauô, somos nós que lhe asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma amante atriz. O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhe; explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maître-chanteur, assassino, larápio, fica sempre impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.
Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à Estrada de Santa Cruz.
Os pretos, alufás ou orixás, degeneram o maometismo e o catolicismo no pavor dos aligenum, espíritos maus, e do exu, o diabo, e a lista dos que praticam para o público não acaba mais. Conheci só num dia a Isabel, a Leonor, a Maria do Castro, o Tintino, da Rua Frei Caneca; o Miguel Pequeno, um negro que parece os anões de D. Juan de Byron; o Antônio, mulato conhecedor do idioma africano; Obitaiô, da Rua Bom Jardim; o Juca Aboré, o Alamijo, o Abede, um certo Maurício, ogan de outro feiticeiro – o Brilhante, pai macumba dos santos cambindas; o Rodolfo, o Virgílio, a Dudu do Sacramento, que mora também na Rua do Bom Jardim; o Higino e o Breves, dois famosos tipos de Niterói, cuja crônica é sinistra; o Oto Ali, Ogan-Didi, jogador da Rua da Conceição; Armando Ginja, Abubaca Caolho, Egídio Aboré, Horácio, Oiabumim, filha e mãe de santo atual da casa de Abedé; Ieusimin, Torquato Arequipá, Cipriano, Rosendo, a Justa de Obaluaei, Apotijá, mina famoso pelas suas malandragens, que mora na Rua do Hospício, 322 e finge de feiticeiro falando mal do Brasil; a Assiata, outra exploradora, a Maria Luiza, sedutora reconhecida, e até um empregado dos Telégrafos, o famoso pai Deolindo.
Toda essa gente vive bem, à farta, joga no bicho como Oloô-Teté, deixa dinheiro quando morre, às vezes fortunas superiores a cem contos, e achincalha o nome de pessoas eminentes da nossa sociedade, entre conselhos às meretrizes e goles de parati. As pessoas eminentes não deixam, entretanto, de ir ouvi-los às baiucas infectas, porque os feiticeiros que podem dar riqueza, palácios e eternidade, que mudam a distância, com uma simples mistura de sangue e de ervas, a existência humana, moram em casinholas sórdidas, de onde emana um nauseabundo cheiro.
Para obter o segredo do feitiço, fui a essas casas, estive nas salas sujas, vendo pelas paredes os elefantes, as flechas, os arcos pintados, tropeçando em montes de ervas e lagartos secos, pegando nas terrinas sagradas e nos obelês, cheios de suor.
— V. S., se deseja saber quais são os principais feitiços, é preciso acostumar-se antes com os santos – dizia-me o africano.
Acostumei-me. São inumeráveis. As velhas que lhes discutem o preço em conversa até confundem as histórias. Em pouco tempo estava relacionado com Exu, o diabo, a que se sacrifica no começo das funçanatas, Obaluaiê, o santo da varíola, Ogum, o deus da guerra, Oxóssi, Eiulé, Oloroquê, Obalufã, Orixá-agô, Exumaré, Orixá-ogrinha Aíra, Orominha, Ogodô, Oganju, Baru, Orixalá, Bainha, Dadá, Percuã, Coricotó, Doú, Alabá, Ari e as divindades beiçudas, esposas dos santos — Aquará, Oxum-gimoun, Aiá-có, a mãe da noite, Iansã, Obiam, esposa de Orixalá; Orainha, Ogango, Jená, mulher de Eloquê; Io-mao-já, a dona de Orixaocô; Oxum de Xangô e até Obá, que, príncipe neste mundo, é no éter hetaira do formidável santo Ogodô. Os fetiches contaram-me a história de Orixá-alum, o maior dos santos, que aparece raras vezes só para mostrar que não é de brincadeiras, e eu assisti às cerimônias do culto, em que quase sempre predomina a farsa pueril e sinistra. Diante dos meus olhos de civilizado, passaram negros vestidos de Xangô, com calça de cor, saiote encarnado enfeitado de búzios e lantejoulas, avental, babador e gorro; e esses negros dançavam com Oxum, várias negras fantasiadas, de ventarolas de metal na mão esquerda e espadinha de pau na direita. Concorri para o sacrifício de Obaluaiê, o santo da varíola, um negro de bigode preto com a roupa de polichinelo e uma touca branca orlada de urtigas. O santo agitava uma vassourinha, o seu xaxará, e nós todos em derredor do babaloxá víamos morrer sem auxílio de faca, apenas por estrangulamento, uma bicharada que faria inveja ao Jardim Zoológico.
Os africanos porém continuavam a guardar o mistério da preparação.
— Vamos lá – dizia eu – camarário, como é que faz para matar um cidadão qualquer?
Eles riam, voltavam o rosto com uns gestos quase femininos.
— Sei lá!
Outros porém tagarelavam:
— V. S. não acredita? É que ainda não viu nada. Aqui está quem fez um deputado! O…
Os nomes conhecidos surgiam, tumultuavam, empregos na polícia, na Câmara, relações no Senado, interferências em desaguisados de famílias notáveis.
— Mas como se faz isso?
— Então o senhor pensa que a gente diz assim o seu meio de vida?
E imediatamente aquele com quem eu falava descompunha o vizinho mais próximo – porque, membros de uma maçonaria de defesa geral, de que é chefe o Ojó da Rua dos Andradas, os pretos odeiam-se intimamente, formam partidos de feiticeiros africanos contra feiticeiros brasileiros, e empregam todos os meios imagináveis para afundar os mais conhecidos.
Acabei julgando os babaloxás sábios na ciência da feitiçaria como o Papa João XXII e não via negra mina na rua sem recordar logo o bizarro saber das feiticeiras de d’Annunzio e do Sr. Sardou. A lisonja, porém, e o dinheiro, a moeda real de todas as maquinações dessa ópera pregada aos incautos, fizeram-me sabedor dos mais complicados feitiços.
Há feitiços de todos os matizes, feitiços lúgubres, poéticos, risonhos, sinistros. O feiticeiro joga com o Amor, a Vida, o Dinheiro e a Morte, como os malabaristas dos circos com objetos de pesos diversos. Todos entretanto são de uma ignorância absoluta e afetam intimidades superiores, colocando-se logo na alta política, no clero e na magistratura. Eu fui saber, aterrado, de uma conspiração política com os feiticeiros, nada mais nada menos que a morte de um passado presidente da República. A princípio achei impossível, mas os meus informantes citavam com simplicidade nomes que estiveram publicamente implicados em conspirações, homens a quem tiro o meu chapéu e aperto a mão. Era impossível a dúvida.
— O presidente está bem com os santos — disse-me o feiticeiro — mas bastava vê-lo à janela do palácio para que dois meses depois ele morresse.
– Como?!
— É difícil dizer. Os trabalhos dessa espécie fazem-se na roça, com orações e grandes matanças. Precisa a gente passar noites e noites a fio diante do fogareiro, com o tessubá na mão, a rezar.
Depois matam-se os animais, às vezes um boi, que representa a pessoa e é logo enterrado. Garanto-lhe que dias depois o espírito vem dizer ao feiticeiro a doença da pessoa.
— Mas por que não matou?
— Porque os caiporas não me quiseram dar sessenta contos.
— Mas se você tivesse recebido esse dinheiro e um amigo do governo desse mais?
— O feitiço virava. A balança pesa tudo, e pesa também dinheiro. Se Deus tivesse permitido, a essa hora os somíticos estariam mortos.
Esse é o feitiço maior, o envoutement solene e caro. Há outros, porém, mais em conta.
Para matar um cavalheiro qualquer, basta torrar-lhe o nome, dá-lo com algum milho aos pombos e soltá-los numa encruzilhada. Os pombos levam a morte… É poético. Para ulcerar as pernas do inimigo, um punhado de terra do cemitério é suficiente. Esse misterioso serviço chama-se etu, e os babaloxás resolvem todo o seu método depois de conversar com os iffá, uma coleção de 12 pedras. Quando os iffá estão teimosos, sacrifica-se um cabrito metendo as pedras na boca do bicho com alfavaca de cobra.
Os homens são em geral volúveis. Há o meio de os reter per eternum sujeitos à mesma paixão, o effifá, uma forquilha de pau preparada com besouros, algodão, linhas e ervas, sendo que durante a operação não se deve deixar de dizer o ojó, oração. Se eu amanhã desejar a desunião de um casal, enrolo o nome da pessoa com pimenta-da-costa, malagueta e linha preta, deito isso ao fogo com sangue, e o casal dissolve-se; se resolver transformar Catão, o honesto, no mais desbriado gatuno, arranjo todo esse negócio apenas com um bom tira, um rato e algumas ervas! É maravilhoso.
Há também feitiços porcos, o mantucá, por exemplo, preparado com excremento de vários animais e coisas que a decência nos salva de dizer; e feitiços cômicos, como o terrível xuxuguruxu…
Esse faz-se com um espinho de Santo Antônio besuntado de ovo e enterra-se à porta do inimigo, batendo três vezes e dizendo:
— Xuxuguruxu io le bará….
Para o homem ser absolutamente fatal, D. Juan, Rotschild,
Nicolau II e Morny, recolhi com carinho uma receita infalível; É mastigar orobó quando pragueja, trazer alguns tiras ou breves escritos em árabe na cinta, usar do ori para o feitiço não pegar, ter além do xorá, defesa própria, o essiqui, cobertura, e o irocó, defumação das roupas, num fogareiro em que se queima azeite de dendê, cabeças de bichos e ervas, visitar os babaloxás e jogar de vez em quando o eté ou a praga. Se apesar de tudo isso a amante desse homem fugir, há um supremo recurso: espera-se a hora do meio-dia e crava-se um punhal detrás da porta.
Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais de santo, têm escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do São Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais, os negros soletram o São Cipriano, à luz dos candeeiros…
O feitiço compõe-se apenas de ervas arrancadas ao campo depois de lá deixar dinheiro para o saci, de sangue, de orações, de galos, cabritos, cágados, azeite de dendê e do livro idiota. É o desmoronamento de um sonho!
Os feiticeiros, porém, pedem retratos, exigem dos clientes coisas de uma depravação sem nome para agir depois fazendo o egum, ou evocação dos espíritos, o maior mistério e a maior pândega dos pretos; e quase todos roubam com descaro, dando em troco de dinheiro sardinhas com pó de mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeças de pombo em salmoura para fortalecer o amor, uma infinita série de extravagâncias. Os trabalhos são tratados como nos consultórios médicos: a simples consulta de seis a dez mil réis, a morte de homem segundo a sua importância social e o recebimento da importância por partes. Quando é doença, paga-se no ato — porque os babaloxás são médicos, e curam com cachaça, urubus, penas de papagaio, sangue e ervas.
A polícia visita essas casas como consultante. Soube nesses antros que um antigo delegado estava amarrado a uma paixão, graças aos prodígios de um galo preto. A polícia não sabe, pois que alguns desses covis ficam defronte de casas suspeitas, que há um tecido de patifarias inconscientes ligando-as. Mas não é possível a uma segurança transitória acabar com um grande vício como o Feitiço. Se um inspetor vasculhar amanhã os jabutis e as figas de uma das baiucas, à tarde, na delegacia os pedidos choverão…
Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos folhetins de romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negros malcriados que bradavam.
— Bota dinheiro aqui!
Tive em mãos, com susto e pesar, fios longos de cabelos de senhoras que eu respeitava e continuarei a respeitar, nas festas e nos bailes, como as deusas do Conforto e da Honestidade. Um babaloxá da costa da Guiné guardou-me dois dias às suas ordens para acompanhá-lo aos lugares onde havia serviço, e eu o vi entrar misteriosamente em casas de Botafogo e da Tijuca, onde, durante o inverno, há recepções e conversationes às 5 da tarde como em Paris e nos palácios da Itália. Alguns pretos, bebendo comigo, informavam-me que tudo era embromação para viver, e, noutro dia, tílburis paravam à porta, cavalheiros saltavam, pelo corredor estreito desfilava um resumo da nossa sociedade, desde os homens de posição às prostitutas derrancadas, com escala pelas criadas particulares. De uma vez mostraram-me o retrato de uma menina que eu julgo honesta.
— Mas para que isso?
— Ela quer casar com este.
Era a fotografia de um advogado.
— E vocês?
— Como não quer dar mais dinheiro, o servicinho está parado. A pequena já deu trezentos e cinquenta.
Tremi romanticamente por aquela ingenuidade que se perdia nos poços do crime à procura do Amor…
Mas esse caso é comum. Encontrei papelinhos escritos em cursivo inglês, puro Coração de Jesus, cartões, bilhetes, pedaços de seda para misteres que a moralidade não pode desvendar. Eles diziam os nomes com reticências, sorrindo, e eu acabei humilhado, envergonhado, como se me tivessem insultado.
— A curiosidade tem limites — disse a Antônio, que desaparecera havia dias para levar aos subúrbios umas negras. – Se eu dissesse metade do que vi, com as provas que tenho!… Continuar é descer o mesmo abismo vendo a mesma cidade misteriosamente rojar-se diante do Feitiço… Basta!
— V. S. não passou dos primeiros quadros da revista. É preciso ver as loucuras que o Feitiço faz, as beberagens que matam, os homicídios nas camarinhas que nunca a polícia soube; é preciso chegar à apoteose. Venha…
E Antônio arrastou-me pela rua, do General Gomes Carneiro.
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Capítulo do livro: “Religiões no Rio”, seção “No mundo dos feitiços”. Obra de Domínio Público.