— Pois seja! — disse Antônio, tomando coragem — V. S. pode ir, mas não cuspa, não fume e não coma nessa casa. Eu não vou.
— Acompanhas-me até a porta?
— Até à esquina. Ficarei de alcateia. Sanin e Ojô são capazes de me acabar com a vida.
A vida de Antônio é uma vida, sob todos os títulos, preciosa, e naquele momento ainda o era mais, porque a sustentava eu.
Refleti e concordei.
— Está direito, ficas à esquina.
Chovia a cântaros. Antônio, sem guarda-chuva, metido num capote que lhe ia até aos pés, acendia constantemente um charuto, que apagava.
— Mas, que é esse Sanin, afinal?
— Um feiticeiro danado!
— Mas babaloxá, babalaô, traficante?…
— Babalaô, não senhor. Para ser babalaô é preciso muita coisa.
Só de noviciado, leva-se muito tempo, anos a fio, e a cerimônia é dificílima. Quando um iniciado quer ser babalaô, tem que levar ao babalaô que o sagra dois cabritos pretos, duas galinhas-d’angola, duas galinhas da terra, dois patos, dois pombos, dois bagres, duas preás, um quilo de limo, um ori, um pedaço de ossum, um pedaço de giz, dois gansos, dois galos, uma esteira, dois caramujos e uma porção de penas de papagaio encarnadas.
– É difícil.
– E não é tudo. Tem que levar também um quilo de sabão da costa, que se chama ochê-iluaiê, e não entra para o ibodo-iffá ou quarto dos santos sem estar de roupa nova e levar na algibeira pelo menos 200$000. O futuro babalaô fica sete dias no ibodô, onde não entra ninguém para não ver o segredo.
– O segredo?
– O segredo é um ovo de papagaio. V. S. já viu um ovo de papagaio?
Nunca! É difícil. E quem vê um ovo desses arrisca-se a ficar cego. O ovo em africano chama-se éiu, o papagaio, odidé. É o ovo que guardam dentro de uma cuia ou ybadu. O iniciado fica inteiramente nu, senta-se na esteira, e o velho babalaô indaga se é de seu gosto fazer o iffá. Se a resposta for afirmativa, lavam-se quarenta e dois caroços de dendê com diversas ervas, e nessa água o babalaô novo toma banho. Depois raspa-se-lhe a carapinha, guardando-a para o grande despacho, pinta-se-lhe o crânio com giz e faz-se a matança.
— Todos os animais?
— Todos caem ao golpe das navalhas afiadas, o sangue enche os alguidares, escorre pela casa, mas ninguém sabe, porque lá dentro, de vivos, só há os dois babalaôs e o acólito. O primeiro sacrifício é para exu. Mistura-se o sangue do galo com tabatinga, forma-se um boneco recheado com os pés, o fígado, o coração e a cabeça dos bichos; metem-se em forma de olhos, nariz e boca quatro búzios e está feito o exu. Em seguida esfaqueiam-se os outros bichos, sacrificando aos iffá. O novo babalaô recebe na cabeça um pouco desse sangue, o acólito ou ogibanam amarra-lhe na testa uma pena de papagaio com linha preta, e, assim pronto, o novo matemático fica seis dias aprendendo a prática de alguns feitiços temíveis e rezando aos odu jilá.
“Os iffá são dezesseis: — eidi-obé, ojecu-meigi, jori-meigi, uri-meigi, ôrosê-meigi, nani-meigi, obará-meigi, ocairá-meigi, egundá-meigi, osé-meigi, oturá-meigi, oreté-meigi, icá-meigi, eturáfan-meigi, achemeigi e ogio-ofum. No fim dos sete dias juntam-se os ossos, as cabeças, os pés dos animais com os restos de comida, a pena de papagaio do jovem professo, as ervas dos serviços anteriores, coloca-se tudo num alguidar para jogar onde o opelé disser, no mar, num lago, em qualquer rio. O iniciado é quem leva o alguidar, sem perder a razão, e canta no trajeto três cantigas…”
Estávamos no largo do Capim. A chuva era tanta que nos obrigara a recolher a um botequim qualquer, e Antônio, já sentado, bebendo vinho do Porto e acendendo pela trigésima vez a horrenda ponta do seu charuto, preparava-se para entoar as maviosas cantigas. Chegou mesmo a perpetrar uma, a segunda, a mais curta.
O-ché-iturá a narê praquê
Abá gun-nem-gum gebo
Ouri ôcú ou-myn-nan
Essé ouxy-cá gô-xê-nan ló nan.
Esta apavorada oração significa: sabão da costa serve para resguardar-se a gente do rei que come urubu e limo da costa. Nós, se comermos limo ou urubu pelo pé, hoje mesmo morreremos. Ele não defende filho como filho.
— Mas, o Sanin?
— V. S. não quer aprender mesmo? Deixe o Sanin. Está chovendo tanto!
— O Sanin é ou não um sábio?
— É malandro.
— Ainda melhor.
Quando saí, de dentro do botequim, Antônio esticou a mão.
— Orum-mi-lá ború ibó, ie, ibó, ibó, xixé!
Negro amável!! Com aquele seu gesto sacerdotal, dizia-me:
— Satisfaça ao Deus que faz tudo e tudo entorta, amém!
Abri o guarda-chuva e respondi já de longe.
— Ibó-xixé!
Sanin mora agora na casa do famoso Ojô, o diretor social da feitiçaria. A casa de Ojô fica na Rua dos Andradas, quase no começo, com um aspecto pobre e um cheiro desagradável. Quando batemos, a chuva rufava em torno um barulho ensurdecedor. Não nos responderam. Batemos de novo. Alguém decerto nos espiava.
Afinal abriu-se a rótula e uma mulher apareceu.
— Baba Sanin?
— Não está.
— Venho mandado por um conhecido. Sem receio.
— A casa é de Emanuel…
— Ojô, sei bem. Foi o Miguel Pequeno que me mandou.
De novo a rótula fechou. A mulher ia consultar, mas não demorou muito que voltasse abrindo de esguelha e dizendo misteriosamente.
— Entre.
A sala tinha areia no assoalho, os móveis consertados indicavam que Ojô vive bem. Numa cadeira um fato branco engomado, e mais longe o chapéu de palha atestava a presença do feiticeiro.
— Então Sanin?
— Vem já.
Pouco tempo depois, apareceu Sanin, de blusa azul e gorro vermelho, o tipo clássico do mina desaparecido, andando meio de lado, com o olhar desconfiado. O pobre-diabo vive assustado com a polícia, com os jornais, com os agentes. Para o seu cérebro restrito de africano, desde que chegou, o Rio passa por transformações fantásticas. É um malandro, orgulhoso do feitiço e com um medo danado da cadeia. Fora decerto quase à força que aparecera, e só muito lentamente o pavor o deixou falar.
— Baba Sanin, o Miguel Pequeno mandou-me aqui para um negócio muito grave. Baba tem uns feitiços novos.
— Não tem…
— Eu sei que tem. – Abri a carteira, uma carteira de efeito, como usam os homens da praça, enorme, com fechos de prata. – Não tenha medo. Se o Baba não me faz o trabalho, estou perdido. É a minha última esperança.
— Que trabalho?
Revolvi as notas da carteira, devagar, para mostrá-las, tirei um papelzinho e misteriosamente murmurei:
— Aqui tem o nome dela…
Na cara do feiticeiro deslizou um sorriso diabólico:
— Aha! Aha… Está bom.
— Sanin, eu tenho fé nos santos, mas os outros feiticeiros não dão volta ao negócio.
— Você vai acabar. Olhe, pode contar…
Tudo neste mundo é esperança de dinheiro, de felicidade, de paz, e tanto vive de esperança o feiticeiro que a dá como as pobres criaturas que com ele a vão procurar.
Sanin começou a falar dos feitiços dos outros, lembrou-se dos seus aos bocados, e em pouco, com a esperança de ganhar mais, fazia-me revelações.
Cada feiticeiro tem feitiços próprios. Abubaca Caolho, o alcoólico da Rua do Resende, tem o ibá, cuia com pimenta-da-costa e ervas para fazer mal. Quando se fala do ibá, diz-se simplesmente: o feitiço do Abubaca. Gia, cabeça de pato com lesmas e o cabelo da pessoa, é uma descoberta de Ojô e serve para enlouquecer. Quem quer enlouquecer o próximo arranja ou falsifica a obra de Ojô.
— Mas Baba Sanin, como é que sabe tudo isso?…
— Então, não aprendi? Eu sei tudo.
E, como sabe tudo, dá-me receitas. Fico sabendo, sem pasmo, sentado numa cadeira, que giba de camelo com corpo de macaco e um cabrito preto em ervas matam a gente e que essa descoberta é do celebrado João Alabá, negro rico e sabichão da Rua Barão de São Félix, 76. Não é tudo. Sanin faz-me vagarosamente dar a volta ao armazém do feitiço. Eu tomo notas curiosas dessa medicina moral e física.
Para matar, ainda há outros processos. O malandrão Bonifácio da Piedade acaba um cidadão pacato apenas com cuspo, sobejos e treze orações; João Alabá conseguirá matar a cidade com um porco, um carneiro, um bode, um galo preto, um jabuti e a roupa das criaturas, auxiliado apenas por dois negros nus com o tessubá, rosário, na mão, à hora da meia-noite; pipocas, braço de menino, pimenta-malagueta e pés de anjo arrancados ao cemitério matam em três dias; dois jabutis e dois caramujos, dois abis, dois orobós e terra de defunto sob sete orações que demorem sete minutos chamando sete vezes a pessoa são a receita do Emídio para expedir desta vida os inimigos.
Há feitiços para tudo. Sobejo de cavalo com ervas e duas orações, segundo Alufá Ginja, produzem ataques histéricos; um par de meias com o rastro da pessoa, ervas e duas orações, tudo dentro de uma garrafa, fá-la perder a tramontana; cabelo de defunto, unhas, pimenta-da-costa e ervas obrigam o indivíduo a suicidar-se; cabeças de cobras e de cágado, terra do cemitério e caramujos atrasam a vida tal qual como os pombos com ervas daninhas, e não há como pombas para fazer um homem andar para trás…
— Mas para dar sorte, caro tio?
— Há mão de anjo roubada ao cemitério em dia de sexta-feira.
— E para tornar um homem ladrão, por exemplo?
— Um rato, cabeça de gato, ervas, o nome da pessoa e orações.
— E para fazer um casal brigar?
— Cabeça de macaco, aranha e uma faca nova.
— E para amarrá-los Wpor toda a vida?
O negro pensou, olhando-me fixamente:
— Um obi, um orobô, unhas dos pés e das mãos, pestanas e lesmas…
— Tudo isso?
— Preparado por mim.
Então Sanin fala-me dos seus feitiços. Sanin é poeta e é fantasista.
Sob a dependência de Ojô, quase seu escravo, esse negro forte, de quarenta anos, trouxe do centro da África a capacidade poética daquela gente de miolos torrados, as últimas novidades da fantasia feiticeira. Para conquistar, Sanin tem um breve, que se põe ao pescoço. O breve contém dois tiras, uma cabeça de pavão e um colibri, tudo colorido e brilhante; para amar eternamente, cabeças de rola em saquinhos de veludo; para apagar a saudade, pedras roxas do mar.
Quando lhe pagam para que torne um homem judeu errante, o preto prepara cabeças de coelho, a presteza assustada; pombos pretos, a dor; ervas do campo, e enterra em frente à porta do novo Ashaverus; quando pretende prender para sempre uma mulher, faz um breve de essências que o apaixonado sacode ao avistá-la.
Sanin é também mau — mas de maneira interessante.
Os seus trabalhos de morte são os mais difíceis. Sanin ao meio-dia levanta no terreiro uma vara e reza. Pouco tempo depois, sai da vara um maribondo e o maribondo parte, vai procurar a vítima, e não para enquanto não lhe inocula a morte.
O maribondo é vulgar à vista do boto vivo metido dentro de uma caveira humana; em presença do feitiço do morcego, a asa que roça e mata, a raposa e o lenço, e eu o fui encontrar pondo em execução o maior feitiço: baiacu de espinho com ovo de jacaré — que é o babalaô da água, baiacu que faz secar e inchar à vontade das rezas e domina as almas para todo o sempre.
—Mas por que você, um homem tão poderoso, não me queria receber?
— Porque andam a falar de nós, porque a polícia vem aí. Fizemos outro dia até um despacho no Campo de Santana com os dentes, os olhos de um carneiro, jabutis, ervas e duas orações para quem fala de nós deixar de falar.
— Mas por que um carneiro?
— Porque o carneiro morre calado. Foi o Antônio Mina quem fez o despacho e todos nós rezamos de bruços e todos nós demos para o despacho que custou cento e oitenta e três mil réis.
Então eu apanhei o meu chapéu, apertei a mão do fantasista Sanin.
— Pois fez mal, Baba, fez muito mal em dar o seu dinheiro, porque quem fala de vocês sou eu.
E como o negro aterrado abrisse a boca enorme, eu abri a carteira e o convenci de que todas as suas fantasias, arrancadas ao sertão da África, não valem o prazer de as vender bem.
Dinheiro, mortes e infâmia, as bases desse templo formidável do feitiço!
Crédito da imagem: CC0 Public Domain
Capítulo do livro: “Religiões no Rio”, seção “No mundo dos feitiços”. Obra de Domínio Público.