“A gente é uma resistência, porque nós somos os que não têm”

publicado na Ed_02_jan/mar.2017 por

São Bernardo do Campo é um município pertencente à Região do Grande ABCD (que inclui ainda Santo André, São Caetano do Sul e Diadema), e fica a aproximadamente 22 km de São Paulo. Como qualquer outra cidade, também possui artistas de rua. Porém, em São Bernardo, os artistas não têm nenhum apoio da prefeitura, muito menos leis ou decretos que regularizem a profissão e, por conta disso, os que moram na região são obrigados a vir com sua arte e trabalho para as ruas de São Paulo.

Um desses artistas é o músico Fernando Machado, de 39 anos e mais de dez de carreira, conhecido como Chapéu Wave Harmônica. Fernando nasceu em São Bernardo, onde mora atualmente, mas, por não ter oportunidades para exercer sua profissão nas ruas da cidade, se apresentava na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, zona Oeste de São Paulo, conhecida por receber grande diversidade de artistas de rua. Fernando é músico profissional formado em canto lírico pelo Conservatório Musical de São Caetano do Sul e já ganhou alguns prêmios, como a medalha João Ramalho, destinada a pessoas que contribuem significativamente com o município de São Bernardo. Trabalha cantando e tocando gaita pelas ruas. Aprendeu sozinho, quando ganhou o instrumento por acaso, de um rapaz que passava na rua. Desde então não parou de tocá-la.Sua mãe é ninguém menos que Amelinha, cantora de rádio nos anos 1960, ganhadora de festivais de música.

Conheci Fernando por meio do site Artistas na Rua, dedicado ao mapeamento dos artistas de rua da cidade de São Paulo. O site foi criado em 2012 por Celso Reeks, em parceria com a SPTuris (São Paulo Turismo). Lá, é possível que os artistas de rua se cadastrem, informando o dia, horário e local de suas apresentações, bem como visualizar um mapa da cidade de São Paulo com as apresentações e manifestações artísticas. Também é possível encontrar informações, notícias e curiosidades voltadas aos artistas de rua, bem como leis e decretos que regulamentam a profissão. Minha ideia inicial era convidar Fernando para participar do livro, eu acompanharia seu trabalho durante alguns dias. Após conversarmos brevemente, recebi seu convite para uma reunião de artistas de rua que ocorreria em São Bernardo na mesma semana do meu contato, em setembro de 2016. Topei na hora. A reunião era a primeira organizada pela Comissão de Cultura e Arte de São Bernardo do Campo, criada pelos próprios artistas de rua.

— Vai ser uma comissão dos artistas de rua que estão pedindo uma gestão cultural. Nós vamos ouvir o clamor: o que o artista de rua precisa? Quais as leis para eles? Os artistas também precisam pagar suas dívidas.  É muito difícil viver da rua. O artista de rua sofre muito porque não tem apoio nenhum. Se ele se machucar, pronto: ele vive de gorjeta… Nós temos que ter o apoio da prefeitura. É por isso que eu estou fazendo uma reivindicação.

Fernando disse também conhecer muitos artistas que se apresentam nos faróis de São Bernardo, inclusive, malabaristas de outros países, como Argentina e México, que acabam parando em albergues. A vida de um artista de rua nem sempre é fácil, o trabalho autônomo e ainda não reconhecido tem seus altos e baixos.

— Eu sofri, sofro até hoje, e posso dizer que eu vivo entre o céu e o inferno. Acredito que é assim com todo artista de rua. Um dia você ganha aplausos fantásticos, você é querido, todo mundo quer te pagar um almoço, é tratado como um rei; no outro dia você toca, às vezes para ninguém e nem 10 centavos faz no seu chapéu. É muito delicada a situação. O artista só quer se apresentar e passar seu chapéu, viver da sua arte, e aqui em São Bernardo nós não temos espaço para isso.

Em nossas conversas sobre as dificuldades na cidade onde mora, Fernando acabou me enviando um áudio, via mensagem de celular, de Silvio Luna, conhecido também como Laranjinha, outro músico local.

— Meu nome é Silvio Luna, tenho 30 anos de música em São Bernardo e eu nunca passei tanta dificuldade em fechar projetos na cidade nesses últimos quatro anos. Abandonaram a gente, abandonaram os artistas do ABC, de São Bernardo principalmente. Para ter uma ideia, eu tive propostas de trabalho para o Departamento de Cultura de uma cidade no interior, perto de Minas Gerais, só porque eles ficaram sabendo do trabalho que eu faço já há tantos anos em São Bernardo.

No dia da reunião, após uma viagem de duas horas, desço do trólebus na mesma rua onde aconteceria a assembleia e começo a procurar o local. Era noite de uma sexta-feira muito fria.

A poucos passos do ponto onde desci, na esquina, encontrei o endereço. Era um comitê que continha muitas faixas, cartazes e músicas sobre a candidatura de Orlando Morando (PSDB) à prefeitura da cidade.  Surpreendi-me, uma vez que essa reunião, a princípio, só contaria com a presença de artistas de rua e não de políticos.

Havia duas mulheres na porta anotando os dados das pessoas que iam chegando. Uma delas, Carol, era também a organizadora da reunião, junto com Fernando. Elas já sabiam que eu iria, anotaram meu telefone e e-mail e me deram um papel para colar na roupa com o meu nome escrito, além de um adesivo do candidato a prefeito. A reunião era sobre os interesses e reivindicações dos artistas de rua, mas era também em prol da candidatura de Morando, que prometia incentivo à arte e à cultura de São Bernardo, a revitalização de praças e museus e a implantação de Fábricas de Cultura na região, oferecendo aulas de dança, música, teatro, circo etc. Segundo Fernando, São Bernardo nunca teve um político que se preocupasse ou incentivasse o trabalho dos artistas de rua, e por esse motivo grande parte estava apoiando o candidato. Fernando, inclusive, tinha se encontrado com o político e apresentado propostas.

O evento estava previsto para começar às 20 horas e atrasou cerca de dez minutos. Presentes estavam alguns artistas de rua e grupos culturais da região, como a Associação Cientifica e Cultural Paleontos, que trabalha com exposições voltadas à área de paleontologia, e a Associação Federativa da Cultura e Cultos Afro-brasileiros (AFECAB), cujas integrantes, incluindo a presidente Maria Emília Campi, usavam vestimentas típicas das religiões afro-brasileiras, como turbantes e saias longas e brancas.

Maria Emília fundou a associação em 2010 para promover os costumes afro-brasileiros e a cultura tradicional africana, desmitificando o desrespeito e intolerância. Também estavam lá a candidata a vereadora Maria de Santana, que é cadeirante e tem alguns projetos para a inclusão social das pessoas com deficiência; e o presidente e fundador do Instituto de Arte do Brasil (iARTES), de São Paulo, Ttoni Philippi, que trabalha há 18 anos com capacitação de pessoas com deficiência na área artística, promovendo a inclusão social.

— Estou aqui pela causa, que é a cultura, arte e a inclusão. A deficiência está na cabeça do ser humano.

Ao final da reunião, o livro Em alto e bom som — Sensibilização Pela Arte, lançado pelo iARTES, foi distribuído para todos que estavam presentes. O local era uma espécie de galpão, com cadeiras de plástico organizadas em forma de fileiras. Reunião em local improvisado, mas de grande importância para os participantes. Quando todos escolheram seus lugares e se acomodaram, Fernando abriu o encontro.

— Boa noite. Eu gostaria de agradecer a todos que vieram para a nossa primeira reunião da Comissão de Arte e Cultura de São Bernardo do Campo, em que vamos tratar dos assuntos voltados para o artista de rua da nossa cidade; no caso, nós. Todos sabem o quanto é difícil viver da arte aqui e o quanto precisamos nos unir para que nossa voz seja ouvida. Essa é a nossa primeira assembleia, uma ouvidoria e apresentação de projetos.

Fernando, então, se apresentou, contando sua trajetória e a luta de todo artista de rua para ser reconhecido profissionalmente. O cantor conduziu toda a reunião, dando voz também a outros artistas que quiseram se manifestar. Aos poucos, foram relatadas as dificuldades: não recebem nenhum incentivo ou apoio da prefeitura, tampouco do governo; quando tentam conversar com o secretário de Cultura, mal são ouvidos e não têm sequer a chance de tocar em festivais locais como o aniversário da cidade, uma vez que a prefeitura contrata músicos de fora. O problema foi levantado pela cantora de forró pé-de-serra Bernadete França:

— Eu moro aqui em São Bernardo há mais de 30 anos. Aqui, em toda a minha trajetória, eu fiz somente três shows. Ano passado, eu fiz oito shows pela prefeitura de São Paulo e aqui eu não fiz nenhum. Não que eles não me conheçam, eles me conhecem, eles têm meus CDs. Eu pergunto para eles: “qual é a proposta para este ano?”, e eles dizem que não têm dinheiro, mas contratam músicos de São Paulo para tocar aqui. Eu cansei de pedir, eu não procuro mais. Fiquei sabendo da reunião de hoje, quando vi o comitê, e decidi entrar. Quero trabalhar aqui onde eu moro e mostrar a cultura nordestina. Estou indo para a França cantar Luiz Gonzaga, porque lá eu tenho mais chances do que aqui na minha cidade.

Em outro momento da reunião, o locutor e diretor artístico da rádio Transamérica, Sergio Fialho, que trabalha em São Paulo, mas mora em São Bernardo, apresentou sua proposta para a área artística na cidade.

— Concordo que São Bernardo e a região do ABC, é muito carente de arte e comunicação. Conheço muitos radialistas que saem daqui e gastam duas horas de viagem para trabalhar em São Paulo. O que eu quero fazer em São Bernardo é trazer uma nova opção de trabalho para os jovens, com capacitação na área de comunicação. Por conta disso, eu montei um estúdio particular de rádio para dar aulas, onde eu também recebo alguns CDs de músicos para ouvir.

Um dos objetivos da reunião era também discutir e apresentar propostas para o meio artístico da cidade, bem como sua relevância e o que poderia ser feito. Por isso, uma das organizadoras andava entre os participantes perguntando se eles tinham algum projeto artístico para São Bernardo. As folhas com as respostas seriam repassadas para Fernando, responsável por encaminhar tudo a Orlando Morando. Ali, foi constatado que muitos artistas da região não se conhecem, então foi proposta uma espécie de mapeamento semelhante ao Artistas na Rua, que existe em São Paulo.

No final da reunião, Fernando apresentou seu amigo, o músico Wagner Fulco, que mora nos Estados Unidos e é produtor de nomes como o cantor Snoop Dogg. Wagner veio especialmente para a assembleia:

— Estou aqui porque eu acredito que seja muito importante essa reunião. Espero que vocês possam implantar arte e cultura na cidade e que São Bernardo vire exemplo para outras localidades do Brasil. Acho que vocês estão no caminho certo para fazer isso acontecer.

Depois de mais alguns discursos, a reunião acabou, mas meu trabalho de reportagem estava só começando. Nas minhas andanças pela Região Metropolitana, também estive em Suzano, onde encontrei problemas semelhantes quanto à desvalorização e falta de reconhecimento dos artistas, tanto por parte da prefeitura quanto dos moradores.

— O que a gente quer é um espaço para fazer nosso trabalho. A prefeitura tem como ceder esse espaço, mas falta boa vontade. Nós só queremos isso.

O autor da declaração é o malabarista Luiz Ficco, 21 anos, que me encontrou na Praça João Pessoa, a poucos metros da estação de trem com sua bicicleta e uma enorme mochila nas costas que guardava as claves para fazer malabares e a gasolina para suas apresentações de pirofagia, espécie de malabarismo com tochas acesas. Ficco costuma se apresentar no farol sobre um monociclo criado por ele. O artista é malabarista, palhaço e artesão há cerca de três anos. Nasceu e mora em Suzano, onde trabalha nos faróis com seus amigos do grupo Somos 13.

Andamos até chegar à prefeitura de Suzano. No caminho, pergunto sobre a rotina de trabalho nos faróis.

— No fim do mês é sempre pior porque as pessoas estão sem dinheiro. O começo do mês para nós é melhor, a galera dá uma atenção diferente.

A prefeitura ocupa grande área, e numa praça que serve de estacionamento e local de encontro dos moradores, sentamos no famoso escadão para que Ficco pudesse arrumar seus instrumentos de trabalho. Enquanto conversávamos, Vitor, outro integrante do Somos 13, chegou para encontrá-lo, pronto para mais uma tarde nos faróis.

— Isso aqui que você está fazendo com a gente é o nosso cotidiano. A gente vem, conversa, toca alguma coisa, treina, e é isso que me faz querer ficar aqui. A gente se junta nessa praça todos os dias para treinar, mas fazemos isso aqui porque não temos nenhum lugar apropriado onde nós possamos ficar.

Os dois jovens disseram não receber nenhum incentivo ou apoio por parte da prefeitura, que se nega a atendê-los, alegando falta de verba, alguém responsável ou espaço.

— Eles recusaram todos os projetos que enviei, sem ler. Eu colocava o projeto e o cara falava que não tinha verba para isso, e eu dizia: “mas você nem leu, eu não estou pedindo verba, eu preciso de um espaço, qualquer espaço”. Aí diziam que a prefeitura de Suzano não tem espaço. Toda vez é assim. Sempre vão arrumar alguma desculpa. Se a gente falar que quer conversar com o prefeito, a primeira coisa que vão dizer é que a gente não pode subir lá.

A ideia dos malabaristas é ter qualquer espaço onde possam executar suas atividades artísticas, dar aulas, reunir mais artistas, enfim, promover arte e cultura, principalmente para crianças e jovens. A cidade é grande, com muitos artistas de rua que não se conhecem. Um espaço apropriado certamente chamaria a atenção dos demais. Vitor, inclusive, pesquisou alguns lugares que são da prefeitura e que poderiam funcionar como uma oficina cultural, mas que estão abandonados, ocupados por moradores de rua ou por usuários de drogas.

— Nossa ideia é ter um espaço perto da estação porque qualquer pessoa pode chegar, por ser de fácil acesso. Ter uma ocupação aqui facilitaria muito para fazermos mais eventos e não ficar dependendo de moeda no farol.

Um dos eventos que são realizados em Suzano é o Bagunçarte: os malabaristas se reúnem na Praça João Pessoa, com outros artistas de rua, e fazem um espetáculo circense a céu aberto. Todas as sextas-feiras, uma grande faixa com o nome do evento é pendurada na praça onde o espetáculo começa sempre às 19 horas.

Ficco é o idealizador e organizador do evento. Os artistas arrecadam verba através do chapéu ou por meio de rifas que sorteiam quadros de pintores amigos e latas recicladas com grafites para decoração, por exemplo. Tudo é improvisado. Os taxistas da praça fornecem tomadas para ligar som e luz — uma só tomada serve para ligar uma parafernália. O dinheiro recebido é investido em novos eventos.

— Às vezes, eu levo a Bagunçarte para outras cidades também, como Jundiaí e Praia Grande, com a mesma proposta de um cabaré circense, um espetáculo feito a chapéu. O tempo todo eu deixo bem claro para a galera que a contribuição é o que me mantém e mantém o projeto vivo. A gente é uma resistência, porque nós somos os que não têm. Suzano não tem nenhum ponto cultural, e nós somos o ponto cultural. Onde a gente está, acontece. Se nós pararmos, tudo isso acaba.

Ficco também recebe encomendas de artesanatos, faz eventos — como raves — em que usa pernas de pau, além de manter outro projeto (ufa!), o Circo Realejo, onde faz parceria com sua namorada, a bailarina Natasha Pessoa, com a mesma proposta de um espetáculo circense no qual o casal interage com o público. Diversos locais são palcos desse evento, como o Centro de Incentivo à Arte e à Música (CIAM), que promoveu o Festival 6 Continentes. O evento aconteceu no Carrão, zona Leste de São Paulo, quando algumas crianças, empolgadas, participaram da brincadeira e tiveram seus rostos pintados. A apresentação fazia parte do festival e ocorreu na rua, atraindo moradores da região e pessoas que passavam pelo local. Na ocasião, conheci Tatiana Mistieri, que quer levar a proposta de circo e teatro de rua para a periferia de Santo André.

— Eu quero mostrar para as crianças o que é um teatro, porque muitas nem sabem o que é isso. Também quero levar saraus para incentivar a leitura.

Os malabaristas de Suzano também têm de lidar com o preconceito de algumas pessoas que não conseguem entender o trabalho deles, tanto porque acham que não tiveram outra opção, como porque acham que eles não merecem receber por sua apresentação. Ficco alerta:

— Mal sabe a galera que eu tenho CNPJ e, se quiser, eu contrato quem está ali dentro do carro me olhando. Essa galera que não aceita não consegue entender esse momento que a gente tem aqui, agora. Nós queremos estar na rua, essa é a diferença.

O antropólogo Roberto DaMatta diz em seu livro A Casa e a Rua — Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil que esse preconceito pode ter surgido, em parte, pela maneira como enxergamos a rua. Aprendemos que a rua é um local profano, marginalizado, violento, carregado de significados e conceitos morais. Portanto, tudo o que leva o nome “rua”, em nossa sociedade, é visto como algo pejorativo, como as expressões “mulher de rua”, “vendedor de rua”, “morador de rua”, “moleque de rua”. Chamar esses artistas, portanto, de “artistas de rua”, embora atuem nelas, faz com que a carga negativa do significado da palavra afete diretamente o trabalho, legitimando o desrespeito.

Nem sempre a família entende a opção do artista. Vitor até hoje diz que seus pais não aceitam seu trabalho, que ao invés de estar nas ruas, ele deveria entregar currículos, pois tem uma filha de cinco anos e precisa pagar pensão, o que faz usando o dinheiro ganhado nos faróis e com a venda de artesanatos. Os pais de Ficco também não aceitavam sua opção artística nas ruas, mas hoje até apoiam o malabarista, que provou que consegue se manter.

— Os pais sempre pensam que a gente quer viver de moeda, não querem ver seu lado artístico realmente.

Saímos da praça e fomos para o farol da rua localizada atrás da prefeitura. Ali é o lugar onde os malabaristas costumam trabalhar e onde encontramos os outros integrantes do Somos 13, Lucas Lopes e David Goes, que começaram a treinar, jogando as claves e bolinhas para o alto. A imagem despertava curiosidade nas pessoas que passavam dentro dos carros e ônibus e de crianças que, do banco de trás, espiavam os malabaristas. Elas são as que mais se encantam, segundo Ficco.

— Uma vez estávamos fazendo farol e quando fomos passar o chapéu, uma mulher contribuiu com nossa arte e disse: “obrigada por fazer meu filho sorrir”. Aquilo me marcou. Tem criança que admira muito o artista, elas passam dando tchau, sorrindo, e isso é recompensador demais. Às vezes, a gente escuta uns comentários desagradáveis do tipo: “ah, vai trabalhar”, e ao mesmo tempo a gente escuta uns comentários como “nossa, obrigado”, “que show legal”, “sucesso”, “parabéns” etc. Então, uma palavra de vez em quando vale muito mais a pena do que um real, porque a pessoa dá um real achando que você é pedinte, com má vontade, e o outro não te dá um real, mas olha no seu olho e fala: “Deus te abençoe”.

Enquanto os outros treinam, Ficco se prepara para se apresentar. Assim que o sinal fica vermelho para os carros, ele corre para o semáforo e várias claves são jogadas com maestria para o alto. As tochas são acesas, e algumas vezes ele enche a boca com querosene ou óleo diesel para cuspir no fogo, formando uma grande labareda. O querosene acaba machucando a gengiva e, em algumas ocasiões, ele cospe um pouco de sangue logo depois da apresentação. Os movimentos são precisos e ele tem que ser rápido para que dê tempo de passar o chapéu entre os automóveis. Volta para a calçada já com algumas moedas.

— Eu fiquei dez minutos no farol e recebi quinze reais. O trabalhador de carteira assinada fica um dia inteiro sentado em frente ao computador e recebe seis reais por hora e ainda vem criticar meu trabalho. Eu gosto de brincar, de me divertir no farol. Eu ganho minha vida ali, mas é minha diversão.

O malabarista começou a tomar gosto pela arte circense em Santa Catarina, quando conheceu pessoas que faziam malabares. No começo tudo era improvisado, com bolinhas feitas de bexiga e tochas com cabo de madeira. Só depois de algum tempo é que todos puderam comprar objetos profissionais, como as claves, que podem custar entre 40 e 130 reais. Lucas Lopes, um dos integrantes do grupo, conta:

— Material de circo é caro, e as minhas claves duram só seis meses.

Também há uma técnica para manusear as claves, que são as partituras semelhantes às de música: através de números se consegue montar truques ou sequências. Aprendi que malabarismo não é só lançamento de objetos. É giro, equilíbrio, dança contemporânea. Malabarismo é matemática.

Além da falta de reconhecimento da prefeitura, os malabaristas também enfrentam a truculência de guardas e policiais, muitas vezes causada por má informação e desconhecimento de leis que asseguram o direito da liberdade de expressão artística, como a Constituição Federal. Ficco conta que quando o grupo está em algum lugar treinando, a polícia ou os guardas chegam e pedem para que se retirem.

— Rola muita opressão, o policial vai vir aqui e não vai perguntar se você sabe da lei, porque ele acha que ele é a lei, então ele vai chegar com uma arma na mão e dizer: “vão embora”. Nós estamos em um espaço público que pode ser usado. Eu estou aqui manifestando a minha arte, qualquer um tem o direito de se manifestar das dez às vinte e duas horas sem quebrar nada, isso é lei. Há uns dias nós montamos um Slackline (fita de equilíbrio) entre as árvores, porque eu tenho um número em que eu a uso, e estava treinando. De repente, chegou a GCM [Guarda Civil Metropolitana] falando para eu desmontar. Ai eu perguntei quem tinha dado essa ordem, e ele não soube responder. Eu falei que não ia desmontar e nem parar de treinar, porque conhecia meus direitos.

Vitor arremata:

— Se a gente se une para fazer malabares aqui na praça eles não deixam, falam que a gente tem que procurar outro lugar, mas qual lugar se todos esses são públicos? Eles não deixam a gente ficar em lugar nenhum, é uma perseguição…

São Bernardo e Suzano enfrentam o mesmo problema que São Paulo enfrentava há alguns anos. Os artistas não têm apoio nenhum, tampouco incentivo, são ignorados e não são reconhecidos por seu trabalho. Em meio às reclamações, a principal, pelo que notei, é o direito de exercer a arte nas ruas, de forma organizada e regularizada.

Mencionamos São Paulo: no próximo capítulo narraremos a história de uma artesã que mora, por enquanto, na capital paulista, mas vive num bairro distante do centro, no Jabaquara.

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Crédito da fotografia: Luiz Ficco. Foto – Antônio Carlos

Capítulo do livroArtistas de rua além dos clichês

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