A juíza agredida que virou notícia

publicado na Ed_03_abr/jun.2017 por

Meu telefone tocou na noite anterior à entrevista que faria com a juíza Tatiane Moreira Lima. Do outro lado da linha estava sua secretária avisando que a magistrada me receberia no dia seguinte, às 16h30, uma sexta-feira em que a juíza não realiza audiências, apenas trabalhos internos e atendimento à imprensa.

Cheguei ao Fórum do Butantã com bastante antecedência. Na recepção havia apenas um guarda e uma recepcionista. Ele pediu para que eu abrisse a bolsa e fez a revista. Dispensada para passar pela porta com detector de metais, minha entrada foi liberada. Na recepção informei que tinha hora agendada com a juíza Tatiane Moreira Lima, da Vara da Violência Doméstica. A recepcionista indicou o caminho que me pareceu um pouco confuso, era a primeira vez que eu estava ali e o prédio era enorme, então ela gentilmente se prontificou a me levar até a sala.

Assim que passei pela catraca perguntei se a recepcionista estava trabalhando no dia em que a juíza foi feita refém. Ela disse que sim. Conforme andávamos, ela descrevia os fatos. Fizemos o mesmo trajeto que Alfredo José dos Santos, o homem que tentou assassinar a juíza Tatiane, e pelo caminho não tinha nenhuma mancha ou marca deixada pelo diesel e pelas chamas do atentado à juíza. O homem que tentou atear fogo nela chegou ao fórum na quarta-feira, 30 de março de 2015, por volta das 14h. Alfredo tinha audiência agendada com a magistrada. Aparentava estar nervoso e portava uma mochila cheia de garrafas contendo diesel, gasolina e explosivos. Quando chegou à recepção o guarda pediu para ele abrir a mochila. José se aproximou como se fosse passar pela revista, mas driblou o segurança e saiu correndo em direção às escadas.

Ao subir os primeiros degraus, pegou as garrafas cheias de gasolina e despejou na escada. O guarda tentou impedi-lo. Alfredo sacou  da mochila uma bomba e jogou na direção do segurança.. O guarda teve os dois braços queimados gravemente. Em seguida, o incendiário tentou pôr fogo na escada encharcada pela gasolina, mas não teve sucesso. Então, subiu correndo para o lance seguinte que dava acesso ao primeiro andar, onde se localiza a sala de audiência da juíza.

Então jogou gasolina nos degraus e dessa vez conseguiu atear fogo. As chamas impediram os seguranças de alcançá-lo. Um dos guardas chegou a atirar na direção dele, mas não acertou. O agressor havia estado lá e conhecia bem o caminho até o gabinete. Sabia também que não teria problemas em driblar os poucos seguranças que estariam no Fórum.

Seu objetivo era fazer da escada em chamas uma barreira para impedir a passagem da segurança. As chamas, de fato, pareciam uma enorme parede de fogo. Ele invadiu o gabinete da magistrada sem dificuldades.

Como no dia do ataque, tal qual o dia em que a entrevistei — três meses depois do atentado — não havia nenhuma escolta na entrada da sala ou no corredor de acesso à sala da juíza. Feito o breve trajeto da recepção até o gabinete, acompanhada pela recepcionista, bati na porta que estava aberta. Pedi licença e entrei. Na sala de audiência, uma secretária que parecia atualizar algum processo no sistema e uma mulher que conversava com a magistrada.

Demorei um pouco para reconhecê-la, havia mudado a cor dos cabelos. No dia do atentado ela estava loira e agora seus cabelos eram castanhos. O comprimento era o mesmo, médio, na altura dos ombros. Apresentei-me e disse que tinha agendado horário com a juíza.

— Oi Andréia, sou eu! Aguarda um minutinho que já te atendo! Aceita um café?! — disse ela bem entusiasmada do fundo da sala.

Aceitei o café. Para minha surpresa, fui servida pela própria juíza. Ela aparentava ser bem mais jovem pessoalmente. E muito elegante. Seu gabinete, amplo. Nas paredes laterais, enormes estantes repletas de livros, vários de Aikido, arte marcial japonesa. No fundo da sala, as mesas onde acontecem as audiências. Não havia resquícios do atentado, sem manchas no chão ou nas paredes.

Deparei-me com uma pessoa bem calma, que usa um tom de voz suave para falar. Muito convicta. Algumas vezes, ao falar, batia com a mão, de forma suave, sobre a mesa, para reforçar o quanto tinha certeza.

— Doutora, tenho aqui algumas perguntas. Para começar quanto tempo a gente tem, só para eu saber?

— É critério seu. Até as sete da noite eu estou aqui .

— Critério meu?  Ah, então vamos lá! Onde a senhora nasceu? A senhora é de São Paulo?

Eu sou de Campinas. Nasci e me criei lá. Fiz faculdade na PUC, de Direito. E aí sempre com enfoque no concurso público. Eu sempre quis prestar concurso público, sempre quis a carreira pública. E comecei a estudar e acabei passando primeiro na Petrobras. Depois de formada morei um tempinho no Rio de Janeiro e continuei estudando. E logo em seguida voltei porque fui aprovada aqui na magistratura. Então, morei uns dois anos no Rio depois vim para São Paulo novamente. Aqui em São Paulo assumi a magistratura em 2007, em janeiro. Em quatro de Janeiro de 2007, tomei posse. Primeiramente fui substituta em Jundiaí. Então, trabalhei ali naquela região, depois fui para Francisco Morato. Aí me titularizei. A primeira Comarca foi Cerquilho, que também é no interior, perto de Tatuí, perto de Tietê. Por isso, mudei de Jundiaí para Itu. Acabei morando lá. Nessa época eu já conhecia meu marido e a gente casou. Ele morava e trabalhava em São Paulo, eu trabalhava em Cerquilho.

— Ele é magistrado também?

Ele é Promotor de justiça. Aí era o meio do caminho. Itu era o meio do caminho para gente. Então ele viajava 200 quilômetros todo dia. E eu viajava 120. Trabalhava, ia e voltava, ia e voltava. Chegou uma hora que a gente, cansado de estrada, fomos para São Paulo. A família dele é daqui de São Paulo. Aí em 2011 eu vim e atuei um ano na Vara da Infância e da Juventude de São Miguel Paulista, cidade de dois milhões de habitantes na região do extremo Leste de São Paulo.

— Periferia.

— Muito pobre. Assim, muita violência, eu trabalhei com a questão da criança.

— Nossa!

— Criança abusada, criança estuprada, maus-tratos, grupos de irmãos em extrema vulnerabilidade. Eu fazia o acolhimento delas e trabalhava com abrigos. Foi aí que desenvolvi mais a capacidade de me mobilizar. Eu ia no abrigo, visitava as crianças, ia no hospital, eu tinha muito essa questão de sair. Eu não gostava só desse trabalho do gabinete. E depois de lá, em 2012, eu vim para cá — Fórum do Butantã.

— A escolha depende da sua decisão?   

— Inicialmente sim.

— A senhora que escolhe onde trabalhar?

Quando você passa no concurso, no cargo de Juiz substituto, você escolhe uma região de acordo com sua classificação. No final, quem passa por último não tem muita opção, vai para lugares mais distantes.

— A senhora atua aqui há quatro anos, praticamente o tempo que existe o Fórum?

Praticamente. O Fórum foi entregue em setembro de 2011. Eu vim para cá em julho de 2012.

— A senhora estudou em escola pública ou particular?

Estudei em escola pública até a oitava série.

— Era boa aluna?

Era. Eu sempre fui. Aí no colegial eu fui pra uma escola particular e depois acabei passando no vestibular e fazendo faculdade particular.

— A senhora ou alguma pessoa próxima passou por algum caso de violência doméstica?

Tem a moça que trabalha em casa. Eu falo, não adianta só trabalhar na Violência (referindo-se à Comarca em que atua) tem que viver a violência! Não tem como fugir, estou 24 horas aqui no trabalho, né? E aí chego em casa e a moça que trabalha foi agredida pelo companheiro. E já há alguns anos. E eu tentei dissuadi-la e aí ela acabou o relacionamento, graças a Deus, se separando do agressor e indo morar sozinha com a filha. Ela faltava às vezes ao trabalho, ou chegava com o rosto todo machucado.

— É uma missão?

— Não uma missão, mas é um sacerdócio. Então eu falo assim: Deus sempre me colocou o destino; ou seja lá o que for nessas questões. O primeiro lugar em que eu trabalhei como substituta foi em Francisco Morato, o pior IDH do Brasil, praticamente. Lá eu vi os piores casos de violência, da minha carreira toda, vi pessoa que era morta e arrancada a língua, o pai que matava a mãe na frente do filho e ficava com o cadáver dois dias dentro de casa, na noite de Natal. Então assim, tinha casos bem violentos, sempre fui designada pelo destino, ou não, para essas áreas onde tem essa atuação social e eu gosto muito de trabalhar com gente, com coisa social.

— Como a senhora descreveria a mulher Tatiane Lima?

Olha, eu acho que atualmente eu estou multifuncional. Muitas funções e tem o lado mãe, que é muito presente, eu faço questão de estar muito presente na vida dos meus filhos, de brincar com eles. Inclusive estou aqui com a boca machucada porque meu filho me deu uma cabeçada ontem (risos).

— Ele é pequeno?

Ele é pequeno. Tem três anos e brincando de cosquinha ele quase acabou com minha boca. Eu tenho muita paixão pelo meu trabalho e eu também tenho um lado assim voluntário e assistencialista muito grande. Meu marido trabalha com as crianças. Meu marido é promotor da Vara da Infância e a gente tem um grupo de mães que se reúne para proporcionar alguns momentos para essas crianças… Então a gente leva para festa junina, a gente sai, a gente monta uma festa, a gente vai no abrigo, monta oficinas. Eu acho que é tanta coisa que eu acabo fazendo e me dá prazer, então é trabalhar no que eu gosto. Ter meus filhos, cuidar da minha casa e também fazer outras ações sociais.

— A senhora falou em Deus. A senhora tem uma crença, tem alguma religião ou alguma filosofia?

— Eu sou católica de formação, mas acredito em tudo que é de Deus. Eu acho que devemos fazer o bem sem olhar a quem. Acredito muito nessa questão de que o que você planta, você colhe.

— Qual o objetivo da senhora como magistrada?

— Eu acho que é fazer justiça, prestar uma boa atuação jurisdicional. Ser justa. Eu acho que basicamente é isso, fazer justiça. Nós somos seres humanos. Somos falíveis. Então, pode ser que, eu com certeza vou errar; em alguns casos erro. Pode ser que eu tenha condenado uma pessoa inocente. Pode ser que eu tenha deixado passar alguma coisa. Mas eu tento a cada dia fazer o meu melhor.

— Uma coisa curiosa, eu assumo minha ignorância: eu não sabia a origem da Lei Maria da Penha. Fiquei pasmada quando eu descobri que foi uma condenação dada ao Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Então, se não fosse isso, provavelmente a gente não teria a Lei?

Não. E a lei ganhou esse nome por conta da história da Maria da Penha, que foi a biofarmacêutica cearense que sofreu dois atentados. O primeiro foi a tentativa de feminicídio, como é tipificado. O agressor que também era uma pessoa instruída, falou que havia entrado um ladrão.

— Um professor universitário…

Sim, professor universitário. Ele falou que havia entrado um ladrão e disparado contra ela enquanto ela dormia. Ela ficou paraplégica e depois ele tentou eletrocutá-la. Então a violência que ela sofreu foi muito grande.

— E a demora do processo, foram 15 anos para condenar o marido.

— Ele cumpriu dois anos de prisão e já foi colocado em liberdade. Então isso demonstra como o Brasil engatinha nisso. O machismo extremo: e eu ouço aqui, é muito interessante que depois de você trabalhar alguns anos você começa a perceber o discurso dos homens que ficam no banco dos réus. Eles são extremamente controladores e se acham no direito de controlar a roupa que a mulher usa, com quem ela vai se relacionar, ou enfim, o que ela vai fazer, o que ela pode, o que ela não pode. Eles se sentem donos e possuidores da mulher.  E uma coisa nova que eu tenho percebido é na internet, nas redes sociais. Começam a ocorrer muitos casos de agressão em razão de Facebook e WhatsApp. Porque ele — agressor — vê que ela fez alguma coisa que ele não gostou e aí ele bate. Então, tem vários e vários casos em que ele agride porque ela postou alguma coisa. Porque ela fez alguma coisa.

— Eu estava lendo uma pesquisa onde afirmam que 89% dos homens que foram ouvidos por uma ONG conhecem a Lei Maria da Penha.

Conhecem e sabem que não podem agredir

— Na pesquisa, os que assumiram ter agredido uma mulher disseram que voltariam a agredir se acharem que é necessário. É assim mesmo que eles falam?

Sim. Aqui eles mudam um pouco o discurso. Interessante que na prática eles tentam dizer que a vítima primeiro os agrediu e eles tentaram repelir essa agressão usando a legítima defesa. Ou então tentam negar, não bati, não sei onde ela caiu, eu não sei onde ela se machucou. Eles negam. Muito pouco… poucos é que confessam a prática do crime e se mostram arrependidos.

— Entendi. Agora vou tocar num assunto delicado, a agressão sofrida por você. Se fosse um juiz homem, o agressor agiria da mesma forma?

Certamente não. Porque é uma questão realmente de violência contra a mulher. Ele já havia tido uma audiência. Quando ele entrou, eu não sabia quem era. Era uma semana que eu não deveria ter vindo trabalhar, eu estava sem voz. Não consegui outro juiz para me substituir. E ele entrou pela porta, veio direto. Eu fiquei meio perdida e falei: pois não, senhor? Ele: eu sou o Alfredo José dos Santos e a senhora condena homens inocentes. Eu queria que a senhora dissesse, que reconhecesse que eu sou inocente. Eu não entendi o que estava acontecendo. Foi quando ele estourou a garrafa de vidro contendo uma substância inflamável, acho que era óleo diesel, um óleo queimado bem preto. Ele me jogou no chão, em cima dos cacos e eu falava não estou entendendo, de onde vem essa pessoa? Dentro do Fórum você não espera. E foi uma coisa muito interessante, porque assim tão surreal, tão inimaginável, nunca passou pela minha cabeça. Veja o perigo da ideia de que o agressor da violência doméstica é um agressor de menor potencial, não é um criminoso comum, como um homicida — eu já trabalhei em varas criminais comuns, quando há este tipo de réu a segurança é reforçada, ele entra com um monte de algemas, tem todo um cuidado. Agora, quando é violência doméstica as pessoas geralmente falam “ele é primário, ele é trabalhador”, e de fato é primário e trabalhador. Mas a gente esquece das outras pessoas que às vezes podem ter algum problema psiquiátrico, alguma coisa que tem todo um potencial e aí eu nem acreditava no que estava acontecendo. Eu só pensava: eu só preciso trabalhar. Na hora eu ficava pensando “eu preciso trabalhar, minhas audiências, como é que eu vou fazer?” E me concentrei o tempo todo. Felizmente ali na situação eu não conseguia nem pensar em família, marido, em nada.

— Qual era o grau do medo?

— Grande, com certeza. No início principalmente, porque eu fiquei alguns segundos, minutos, não sei dizer quanto tempo sozinha com ele aqui dentro da sala e ele apertava muito meu pescoço. Meio que passava isso na cabeça dele: eu vou matar ou não vou? E esses momentos eu acho que foram os mais perigosos. E depois, com certeza, o momento do isqueiro. As coisas que ele falava, eu percebi que estava em um surto, ele não estava num estado normal, porque ele falava coisas muito desconexas, que eu tirei um filho dele. Mas não era na verdade. Era um outro processo e ele não conseguia entender. Eu falava que não era, e ele falava que era. E aí eu percebi que chegou uma hora que eu falei: tirei mesmo, tirei o filho do senhor. E aí eu dizia “o senhor não é louco, o senhor é inocente”. Porque eu percebi que não tinha como negar, eu tinha que entrar na situação que ele estava e reconhecer. E…com certeza eu acho que, como ele já tinha vindo aqui anteriormente, já me conhecia, sabia quem eu era, ele sabia onde eu sentava. E ele sabia o caminho porque veio direitinho na sala. Se fosse um homem, com certeza ele não teria essa ousadia.

— Ele foi preso em flagrante, julgado?

Ele foi preso em flagrante e nesse processo eu sou vítima e o segurança aqui do Fórum é vítima. Ele responde agora por tentativa de homicídio. São dois por tentativa de homicídio. Porque ele jogou uma bomba próximo ao segurança, que ficou até queimado, e tentou me matar. Então esse processo é um processo que corre perante o Tribunal do Júri e tem duas fases: uma fase em que são ouvidas testemunhas, o réu na sala de audiência como essa e se o juiz entender que é caso mesmo de uma tentativa de homicídio, ele é pronunciado e vai ser julgado por jurados. Eu ainda tenho que ir a duas audiências, ao dia em que serei ouvida e o dia do plenário do Júri. O processo ainda está aguardando essas audiências.

— Pode demorar?

— Não tem uma data certa. Mas acredito que ainda esse ano tenha a primeira audiência, e talvez o julgamento vá pro ano que vem.

— Saindo um pouco desse episódio ruim: o que a senhora pensa sobre os movimentos feministas? Conhece algum?

Eles são muito importantes para a mudança da cultura do machismo. Graças ao mestrado na USP comecei a pesquisar e a entender antropologicamente. A mulher ela é tida como inferior porque ela fica em casa, é mais frágil fisicamente, é criada para procriar e cuidar dos filhos e o homem para trabalhar, para sair, para gerar renda, para ocupar a área científica, para dominar e para trazer o provimento da casa. E esse homem sente que tem poder de dominação sobre essa mulher. E isso é a raiz toda: tem coisas de homem e tem coisa de mulher, tem coisas que a mulher pode e tem coisas que mulher não pode. Quem vai dizer o que ela pode e o que ela não pode num primeiro momento é o pai, e quando ela se casa é o marido. Então isso é uma cultura e os movimentos feministas foram os primeiros a lutar pelos direitos da mulher. O primeiro movimento foi nos EUA, pela luta do direito do voto e com esse direito o surgimento de outros.

— Um dado divulgado pelo Diagnóstico da Segurança Institucional do Poder Judiciário diz que o Brasil tem hoje 131 magistrados em situação de risco, mas eles não sabem precisar o número exato de mulheres. A senhora já tinha sofrido outro tipo de atendado, ou ameaça antes desse episódio em março?

— Não. Mas como eu trabalhei em Francisco Morato, região de extrema vulnerabilidade em que o PCC era muito forte, por algum tempo, não lembro quanto, andei com escolta. Porque eu tinha em julgamento um processo em que 15 réus quase invadiram a penitenciária para resgatar um preso que era um dos comandantes, preso importante. Eles tinham dentro da casa onde eles foram encontrados um mapa da penitenciária, roupa de agentes penitenciários, armas e  munição de grosso calibre. Era um processo muito sensível e o tribunal ofereceu, achou prudente me dar escolta por um tempo, enquanto eu estivesse julgando aquele caso. E, ao final, foi uma sentença que eu demorei muito tempo para fazer, mais de 50 laudas, todos condenados a penas altíssimas, eram vários crimes: porte de armas, as munições, eles tentaram matar os policiais quando a PM descobriu, foi bem complexo, então, nesse caso eu andei com escolta.

— Depois do incidente seu caso repercutiu. Para a senhora ter uma ideia, moro no Jardim Ester, bairro próximo ao Fórum. Passei em frente ao prédio minutos depois da invasão da sua sala e vi a grande movimentação. Pensei que seria alguma bomba. Jamais ia imaginar que alguém tinha entrado numa sala de audiência e que havia feito refém a juíza. Fui à internet pesquisar e até um blog do Piauí tinha publicado a notícia, repercussão gigantesca.

— Foi notícia também na Austrália, na Itália e na Índia, em vários países.

— A senhora recebeu algum convite para se candidatar a algum cargo político ou convite para se filiar a algum partido?

Não, não recebei nenhum (risos). E assim, não tenho o menor interesse. Porque eu acho que o meu trabalho é aqui, o meu ministério e esse. Meu sacerdócio é esse e é isso que eu gosto de fazer.

— A senhora já absolveu algum réu?

Com certeza, vários. Quando não tem provas, muitas vezes é uma ameaça. E tivemos casos em que a lesão ficou comprovada, mas não tinha sido causada pelo réu. São vários processos, a gente analisa caso a caso.

— Quais as penas previstas na Lei Maria da Penha? 

— As penas são de acordo com o crime. Ameaça: de um a seis meses de detenção, regime aberto; lesão corporal: de três meses a três anos de detenção em regime aberto. Esses são os principais.  Então o réu sempre vai cumprir em regime aberto. A vida dele continua do jeito que está. Vai ter algumas restrições, não pode frequentar bares, boates, locais de prostituição, não pode ficar fora de casa após as 23h, exceto para trabalho. E tem que comparecer mensalmente para justificar as atividades e assinar uma carteirinha no Fórum. São muito poucas as ações e não são fiscalizadas.

— A senhora tocou num ponto importante: muitas mulheres denunciam e mesmo assim são mortas pelos companheiros.

No Brasil são 13 mulheres mortas por dia

— Por que morre tanta mulher?

— A violência doméstica é um ciclo. Isso é um fenômeno estudado já há muito tempo e ela envolve três fases: a explosão, que é agressão propriamente dita, depois tem a fase da lua de mel; nessa agressor promete que vai parar de beber, vai na igreja e ela acredita. Então, ela resolve aceitá-lo de volta e depois começa uma nova fase, a exacerbação; ele começa a mudar o comportamento, ele fica irritadiço. É um ciclo de violência no qual ela está inserida. Muitas vezes ele já fez uma primeira agressão, ela já está em risco, ali há indicativos que mostram que essa mulher está em risco. Quando tem uma agressão física em que há tentativa de esganamento demostra um início de crime de feminicídio.

— Tem um dado da ONG Mapa da Violência segundo o qual em 2015 foram mais de 13 mil inquéritos policiais, apenas a metade julgados. Por que alguns inquéritos não vão adiante?

Na verdade é por falta de provas. O que é o inquérito policial? É um embasamento para propositura da ação penal. Daí você ouve a vítima, ouve o agressor, ouve testemunhas e faz os exames periciais caso tenha corpo de delito, só que não havendo elementos suficientes, não tem como o Ministério Público entrar com uma ação penal. Tem vítimas que não vão fazer o exame de corpo de delito porque não têm dinheiro da passagem de ônibus.

— O que a senhora acha que falta para gente erradicar a violência contra a mulher no Brasil?

— A gente está engatinhando ainda, nós só estamos com 10 anos de Maria da Penha, embora bastante significativos.  Eu acho que os homens passam a ter consciência de que não pode mais agredir sua esposa, sua mulher, sua companheira, sua filha. Só que muito ainda tem que se caminhar, eu acho que o principal agora é trabalhar com a base, trabalhar com as crianças nas escolas

— Como forma de prevenção?

— Sim. A prevenção de que aquele não é o comportamento aceitável. Um dado também do Mapa da Violência de 2014: de 52 mil denúncias, 80% apanha semanalmente, 64% na presença dos filhos, então a criança que cresce vendo sua mãe ser agredida vai reproduzir esse comportamento com a mulher dele, vai achar que é normal, vai achar que pode, a gente tem que trabalhar essa cultura na base.

— A maioria dos casos está nas classes desfavorecidas?

Na minha pesquisa eu constatei que é um fenômeno perversamente democrático.

— A senhora ficou sabendo do caso da Luísa Brunet? O companheiro quebrou quatro costelas dela e ela veio a público hoje contar que foi agredida pelo ex.

Fiquei sim. É muito importante ela revelar, porque isso dá visibilidade para a causa. Então, tanto o que aconteceu comigo e o que acontece com ela dá visibilidade para a causa, mulheres estão apanhando, mulheres estão morrendo em todas as esferas e em todas as estâncias, então algo precisa ser feito.

— A senhora deve conhecer a desembargadora Luislinda Valois, a primeira magistrada negra da Bahia.

Conheço sim

— Ela disse em entrevista no programa do Jô que ser mulher negra no Brasil é muito difícil

Sim, e ser mulher já é uma vulnerabilidade, ser mulher negra é outro recorte mais específico ainda.

— A minha pesquisa tem como objetivo entender por que mulheres estão procurando as academias e treinadores para aprender técnicas de defesa pessoal, especificamente as que já sofreram agressões. Também frequentando uma oficina de defesa pessoal só para mulheres. O curioso é que todas elas já passaram por algum tipo de violência; mais curioso ainda é que foram vítimas de homens desconhecidos e os casos aconteceram em locais públicos, na balada, no ônibus, avião e metrô. Outra coisa que me chamou a atenção é que elas estão mudando o visual em decorrência da violência sofrida. Por exemplo: uma que tinha os cabelos compridos cortou baixinho; outra encheu os braços e pernas de tatuagem para que os homens tenham medo dela.

— Cortam sim, tiram o loiro, botam o castanho…

— A senhora tinha ouvido falar desses casos em que as vítimas modificam o visual depois da violência?

Eu tenho conhecimento das meninas daqui, estupradas: algumas foram abusadas quando criança e têm técnicas de defesa, outras perderam as características femininas. Elas engordam, comem compulsivamente para perder as formas. Usam roupas largas e começam a ter problemas com a sexualidade em razão do estupro. Elas se penalizam porque acham que o corpo delas é a culpa. Muitas vezes elas se sentem culpadas, chegam aqui e dizem: doutora, eu provoquei porque ele chegou em casa e eu estava conversando com o vizinho e ele não gosta, ou ele chegou e não tinha comida quente. Elas acham que a violência do parceiro é culpa delas, alguma coisa que elas fizeram e não é, a violência é uma coisa interna. Tem que separar a violência urbana da violência doméstica. Não é a mesma coisa. Os estudos mostram que o risco da mulher sofrer violência é 80% maior em casa do que na rua. Na rua acontecem esses abusos, como no metrô, mas em casa a violência é maior.

— O que a senhora acha da reação das mulheres que usam bastão, spray de pimenta, as chaves?

Meu marido faz krav magá — arte marcial israelense — ele é faixa verde, eu acho. Depois desse ataque ele falou: olha só, você vai ter que entrar no krav magá porque é uma questão de defesa pessoal. Eu falei: olha só, é que eu faço mestrado agora eu não dou conta de fazer também aula de krav magá.

— Observei alguns livros sobre aikido nas estantes da sua sala… 

Eles pertencem ao juiz titular; aliás, brinquei com ele depois do ocorrido e disse que se ele estivesse no dia, eu não teria sido atacada, porque ele é todo fortão e faz artes marciais.

— A senhora disse que tinha pena do seu agressor? Por quê?

Porque ele estava num ato de desespero e eu falo que foram dois milagres. Primeiro ter sobrevivido e o segundo é não ter nenhum sentimento negativo em relação a ele, de verdade. Tenho pena no sentido de que é muito triste ver o que uma pessoa chega a fazer por uma perturbação. Ele tentou resolver de uma forma que piorou muito a situação, porque ele respondia um processo de violência que ia ser uma pena de regime aberto, agora ele está encarcerado e vai responder por mais crimes, gravíssimos, a pena mínima do homicídio são seis anos, enfim, ele se complicou nessa situação, como ser humano tenho pena.

— Em Santa Catarina, recentemente, um ex-detento formou-se em Direito e convidou para a banca do TCC a juíza que concedeu a ele o direito ao regime semiaberto. Teve algum caso parecido com a senhora, em que o réu muda completamente e volta para agradecer?

— Teve um caso bem emblemático em que o marido bateu na esposa e ela estava grávida, ele bateu muito nela, bateu na amiga dela, elas se trancaram em casa, ele tentou invadir. E ele foi preso. Ela acabou tendo um parto adiantado e ele estava preso quando o filho nasceu. Em seguida o bebê faleceu, não sei se em decorrência da agressão, porque acelerou o parto. E no dia do enterro era a audiência, e eu disse: o senhor esta vendo o que o senhor fez? O senhor perdeu o parto do seu filho não o viu nascer e hoje é o enterro dele. E ele chorava muito. Eu disse: hoje vou soltar o senhor em audiência, até porque o senhor já cumpriu sua pena. Falei: agora saia daqui, erga a cabeça como homem e vá consolar a sua esposa, que não merecia passar por tudo aquilo.

— Então são pontuais os casos em que os homens matam as esposas?

São, em quatro anos aqui teve um caso só. Ele estava preso por outro processo. O processo que ele respondia aqui era por ameaça. Por curiosidade eu fui olhar, para saber por que ele estava preso. Era por homicídio e quando vi o nome era o da vítima do processo que eu estava julgando. Ele ameaçou e depois matou. Mas graças a deus não é a regra, é uma exceção.

— Doutora, por que é tão difícil para nós mulheres reagirmos? Meu livro é autoral também porque passei por uma situação de violência e me vi obrigada a aprender a me defender. De certa forma me tornei mais agressiva. E pensar em reagir com violência me incomoda profundamente. Percebi nesses mais de dois meses em que frequentei as aulas de defesa pessoal só para mulheres que muitas sentem a mesma coisa. Por que temos medo de reagir?

A mulher é ensinada a ser dócil. O homem é ensinado a exteriorizar a agressividade, a virilidade. Mesmo no meu caso meu marido disse que eu tinha que fazer isso e aquilo, porque ele luta, ele faz krav magá, eu disse “imagina meu amor, eu jamais vou reagir”. Mesmo que eu faça luta, mesmo que eu mude de faixa, eu não tenho esse instinto de reagir. E é porque a gente é criada assim. A gente é criada para ficar bonitinha, sentadinha e usar roupinha (risos). Acho que é mesmo algo cultural.

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Crédito da imagem: Print de vídeo da web, editado

Capítulo do livroMulheres agredidas que revidam

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