“Não consigo visualizar qualquer aspeto negativo com a oficialização da língua cabo-verdiana”. Claudio Alves Furtado, cabo-verdiano e professor em História e do Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos na Universidade Federal da Bahia, no Brasil, diz que alguns argumentos que buscam apontar como as desvantagens da oficialização do Crioulo, nomeadamente a perda do domínio da língua portuguesa, a não internacionalização da língua cabo-verdiana e os riscos de imposição de uma das variantes dialetais em detrimento de outras, nenhuma delas se sustenta. Para Furtado, o ensino e o uso concomitante da língua cabo-verdiana e de outras línguas estrangeiras, nomeadamente, a portuguesa, não constitui um problema.
Claudio Furtado explica que, antes, a alfabetização em língua cabo-verdiana e o ensino das línguas estrangeiras, como línguas segundas, melhorariam enormemente o processo de aprendizagem como, aliás, muitas experiências efetuadas nos Estados Unidos da América, França e mesmo em Cabo Verde demonstram. E quanto a um eventual desaparecimento de algumas variedades dialetais, tal hipótese não se sustenta do ponto de vista da situação sociolinguística, como demonstram todas as línguas estrangeiras, nomeadamente a portuguesa falada em diversas regiões do Brasil ou mesmo em Portugal. O professor alega que os aspectos positivos com a oficialização do Crioulo cabo-verdiano são vários. “Desde logo, retira a língua nacional de uma posição subalterna em relação às línguas estrangeiras, designadamente a portuguesa, reforça a identidade cultural e auto-estima, melhora o domínio e o desempenho nas línguas estrangeiras, melhora a eficiência e a eficácia do sistema educativo.”
Claudio Furtado alega que a língua cabo-verdiana é uma expressão da cultura e da identidade do povo cabo-verdiano e é através dela que majoritariamente os cabo-verdianos se comunicam, se expressam e dão concretude ao pensamento e aos seus projetos de vida e de mundo, como têm demonstrados alguns estudos sociolinguísticos.
“A língua constitui uma das formas mais importantes de expressão do ethos (crenças ou hábitos) de um povo. Em regra, mesmo quando temos o domínio de várias línguas, as línguas maternas tendem a ser fundamentais na expressão do nosso pensamento.”
No entanto, o professor argumenta que, sendo, até este momento, essencialmente uma língua de comunicação oral, muitas vezes com um estatuto social não valorizado pelas elites políticas e culturais, impõe-se um estudo ainda mais aprofundado no domínio da linguística, nas suas mais diversas especialidades, como forma de sustentar tecnicamente o processo de tomada de decisão política visando a sua utilização como língua de ensino e de comunicação oficial.
A falta de conhecimento não é o principal fator para o preconceito quanto à oficialização da língua cabo-verdiana. “O preconceito resulta de um longo processo de inculcação cultural que sistematicamente desvalorizou os valores culturais cabo-verdianos e que resulta da situação colonial. Não apenas a língua foi objeto de desvalorização social quanto o cabo-verdiano na sua totalidade, na sua condição de colonizado, dominado.”
Para Claudio Furtado, há uma internalização de estruturas psicológicas de dominação que levam o colonizado a negar e a rejeitar o seu próprio ser. Ele assegura que a superação dessa condição de colonizado não termina com a Independência política. “Aliás, a educação e inculcação da cultura eurófona torna muitos africanos essencialmente exógenos, valorando a cultura européia em detrimento dos valores culturais e civilizatórios africanos.”
A literatura cabo-verdiana é classificada de diversas formas, sabendo que o Crioulo é uma língua oral. A produção literária constitui, no domínio da criação estética, uma forma privilegiada de tradução do ethos de um povo, através da mediação do escritor, poeta ou ensaísta. Da mesma forma, a literatura desempenhou um papel importante no processo de emancipação de luta contra a colonização, como o demonstra Mario Pinto de Andrade em Origens do nacionalismo africano. Ela não está imune ao contexto da situação colonial. “É neste sentido, por exemplo, que temos o grosso da produção literária cabo-verdiana em língua portuguesa, muitas vezes obtendo o cânone literário de Portugal. Raros são os escritores e poetas a fazerem uso da língua crioula como forma de expressão literária. Apenas na música, a sua utilização foi recorrente. A questão da oralidade da língua cabo-verdiana não é, neste contexto e em minha opinião, a razão fundamental de sua utilização marginal na produção literária. Ela resulta de um conjunto de fatos a que não se pode dissociar a própria desvalorização sociale ideológica da língua cabo-verdiana”, afirma.
Apesar da importância da oficialização da língua cabo-verdiana em paridade com a língua portuguesa, é necessário fazer mais estudos científicos e levantamentos de fatos históricos sobre o Crioulo cabo-verdiano para um maior entendimento da língua. Claudio Furtado lembra que mesmo nos contextos de línguas historicamente estruturadas, como as européias, elas continuam sendo objetos de estudos e pesquisa permanente. O estudo é válido para qualquer língua, pois as línguas são mutantes. “O mesmo é válido para a língua cabo-verdiana, a que se acresce o fato dela ser ainda relativamente pouco estudada. Não se pode, contudo, deixar de reconhecer que importantes estudos têm sido realizados tanto no quadro da Universidade de Cabo Verde quanto nas universidades estrangeiras. Possivelmente, existam domínios que carecem de aprofundamento e de uma maior discussão entre os especialistas, num primeiro momento, e o seu alargamento à sociedade civil e aos opinionmakers, num segundo.”
E que vantagens econômicas a oficialização do Crioulo poderá trazer para Cabo Verde? O sociólogo alega que, normalmente, tende-se a apontar e supervalorizar eventuais desvantagens econômicas: mercado diminuto, custos com a produção do material didático, dos documentos oficiais e de tradução para outras línguas no âmbito das relações internacionais. Contudo, uma das grandes vantagens econômicas resultaria da diminuição da ineficiência do sistema educativo cabo-verdiano, melhorando a aprendizagem, diminuindo a retenção, repetência e abandono escolar e o impacto a jusante, isto é, no sistema econômico e produtivo nacional, com profissionais tecnicamente melhor habilitados.“Uma análise custos-benefícios certamente apontaria para mais ganhos na utilização sistemática da língua cabo-verdiana, sem desvalorizar a necessidade de aprendizagem de línguas estrangeiras, num mundo globalizado.”
Crédito da fotografia: Autora
Capítulo do livro “Lábias das línguas: A emergência do Crioulo cabo-verdiano“