Denis Marcelo Moreira e Kamila Moreira Borges estudam na 1ª série do ensino fundamental na Escola Ponta d’ Agu, na cidade da Praia, em Cabo Verde. A Escola Ponta d’ Agu é a única, até o momento, que oferece o ensino, simultâneo, da língua portuguesa e cabo-verdiana para os alunos.
“Mesmo que as disciplinas ciências e matemática são ensinadas em português, comecei a entender melhor o que era dito pela professora quando comecei a aprender o Crioulo”, afirma Denis. A experiência de um ano de ensino da língua cabo-verdiana tem dado ao Denis a autoconfiança de querer aprender ainda mais. Tímido e de um olhar transparente, Denis, passa a palavra à colega,Kamila, com uma batida leve de ombro para ombro dando a entender que ela deveria, também, falar.
“Meu nome é Kamila. Kamila com K. Kamila Moreira Borges”. A apresentação, apressada, da menina de sete anos fez com que eu perguntasse se o seu nome era em Crioulo. “Sim. Porque na língua cabo-verdiana colocamos a letra K no lugar do C. E o meu nome é com K. Por isso, eu acho que, sim, o meu nome é em Crioulo. E eu gosto”, sorridente, responde Kamila. Assim como Denis, Kamila diz que o aprendizado se tornou mais fácil e o conhecimento em relação à língua portuguesa ampliou. “No início confundia as duas línguas, mas melhorei muito na escrita em português. Para mim, escrever em Crioulo é fácil. Por exemplo, a palavra casa em português tem a letra C e a letra S, enquanto que em Crioulo escrevemos com a letra K e Z”, explica. Kamila dá mais exemplos de frases como “Meu nome é Kamila e estudo na 1ª serie…” em português e Crioulo certificando-se de que eu tinha entendido que ela se sente confortável com as duas línguas. Eu, certamente, entendi.
Fernando Jorge, professor de língua cabo-verdiana, se sente satisfeito diante da naturalidade dos alunos com a sua disciplina. “Já começamos o 1º série. A expectativa é consolidar o que já se aprendeu e levar esta experiência a um bom Porto”, afirma. O professor Fernando explica que uma das vantagens da experiência está relacionada à interferência entre as duas línguas. Em alguns casos os falantes do Crioulo pensam que falam, corretamente, a língua cabo-verdiana. Mas, na verdade, segundo o professor Fernando, não falam nem português e nem o Crioulo. O conhecimento adquirido das estruturas das duas línguas permite aos alunos colocarem limites. “Aprendemos a estabelecer as barreiras e dizer: não, esta língua vai até aqui e a partir dali começa a outra”.
Em Cabo Verde, os erros em português não são, apenas, por motivos ortográficos, e sim por desconhecimento da origem da palavra, enquanto que na língua cabo-verdiana escrevemos conforme se fala. A escrita utilizada na disciplina de língua cabo-verdiana é o alfabeto cabo-verdiano ALUPEC. Para o professor Fernando, o erro na escrita sempre vai existir. O processo de aprendizagem depende do ritmo de cada aluno. “Ensinamos as outras disciplinas em português. Caso o tema for complexo demais recorremos à língua cabo-verdiana para uma explicação mais esclarecedora.”
Nozalina Tavares, professora de língua portuguesa, reconhece que o ensino da língua cabo-verdiana contribuiu para melhoria da aprendizagem dos alunos nas outras disciplinas. “Fazemos a abordagem dos temas das diversas disciplinas em Crioulo e em português, sempre, em sintonia. Por exemplo, se o professor Fernando tratar um assunto na língua cabo-verdiana eu abordo o mesmo tema fazendo a transferência do Crioulo para o português. Fica mais fácil e o resultado tem sido razoável”. Nozalina conta que nas duas reuniões que tiveram com os pais dos alunos, informando a experiência bilíngüe na escola, todos aderiram à iniciativa.
A diretora da Escola Ponta d’ Agu, Filomena Vaz, conta que a experiência piloto começou no ano letivo 2013/2014 na classe de alfabetização. A natureza do projeto permitiu mais de uma turma na experiência bilíngüe para que, passado um ano, servisse de comparação. “As crianças da turma bilíngüe ganharam uma comunicação mais fluente do que as crianças de turmas clássicas. Abordam qualquer tema, muito bem, quer seja em Crioulo ou em português. Em termos orais o resultado foi muito bom”, frisa Filomena Vaz. A diretora foi professora durante vinte e um anos e sempre recorreu à língua materna para permitir uma compreensão mais rápida de matérias mais complexas. “No Crioulo, cada letra é um som e a variante de cada ilha acentua de acordo com a sua necessidade.”
Crédito da fotografia: Autora
Capítulo do livro “Lábias das línguas: A emergência do Crioulo cabo-verdiano“