Cálice do amor, um ato de coragem

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Estou aqui apresentando a experiência singular de um grupo de acolhimento para vítimas de abusos sexuais, seus familiares e educadores.

O impulso surgiu a partir de um título “Feminino Vivo” que eu mesma atribuí a um futuro que queria acontecer por mim. Sua primeira expressão concreta foi a publicação de um artigo sobre abuso sexual infantil em junho de 2014 no Boletim da Sociedade Antroposófica. Logo busquei mais pessoas sensíveis ao tema para fazermos algo juntos. Assim surgiu o grupo Cálice do Amor em outubro de 2014 e viveu por 2 anos amparado pela Associação Comunitária Monte Azul, na zona sul de São Paulo, capital.

Em trechos do meu livro Feminino Vivo – A voz do meu silêncio, me expresso:

Começamos as reuniões e aos poucos foi se definindo nossa meta: criar um espaço de confiança para pessoas que buscam acolhimento para sua dor. Fizemos reuniões íntimas entre três ou quatro pessoas, outras entre seis ou sete, e pequenos eventos com vinte a setenta pessoas. Ouvimos, comentamos depois, estudamos pequenos textos, um artigo de revista, falamos sobre projetos que podemos ainda realizar. Fomos procurados por algumas pessoas de outras instituições, que quando chegam, parecem reafirmar a importância de um lugar de confiança para falar sobre o tabu.

Logo percebemos que a dor não vem separada em rótulos, mas tudo é misturado dentro de nós. Daí passamos a estudar e procurar abarcar as dores derivadas de muitos tipos de traumas, inclusive de abuso sexual.

Embora tenhamos expandido nosso ângulo de visão, toda vez que em grupos proporcionamos depoimentos livres, o tema do abuso sexual impera. Parece ser a dor menos tocada, o maior tabu.

Muitas e muitas reuniões se passaram e eu me sentia sempre muito identificada até que eu enfim descobri meus motivos: ter sido abusada na infância pelo próprio pai. O grupo tornou-se para mim um refúgio aconchegante onde posso me conectar com minha dor, acolhida, com serenidade e posso até encontrar beleza, e ao mesmo tempo, posso, junto com meus pares, acolher e ajudar a embelezar a dor de outras pessoas.

Cada vez mais encontramos sentido nas reuniões pois os depoimentos ficam mais e mais frequentes e espontâneos, fortalecendo um espaço de confiança. Muitas mulheres buscaram tratamento encorajadas em nossos encontros.

No cálice do amor, pessoas dão voz a partes suas que ficaram na estrada, sentadas à beira cansadas ou pedindo carona, e lá estão até hoje. Com coragem, elas e eu, abandonamos a vida cinza.

O abuso sexual é uma expressão – das mais cruéis – de uma distorção da relação humana: a relação entre dominador e dominado, à qual estamos todos submetidos. Acostumamo-nos a nos relacionar de tal forma que não nos damos conta de quando estamos agindo em um ou no outro papel.

E aqui isto importa para adentrarmos numa paisagem social que gera o lugar a ser ocupado pelo dominador e consequentemente pelo dominado. Nós todos diariamente geramos esses dois papéis. Colaboramos para que as facetas sombrias em nós e nos outros se manifestem em manipuladores e manipulados. Acostumados, sem consciência praticamos esses dois papéis em que nos separamos uns dos outros; papéis em que não somos livres e por isso, em que não podemos amar.

Nossa organização social inclui o abuso de uns sobre os outros. Muitas vezes são até denominados como competências de negócios ou nos relacionamentos.

Em nossa época, o bullying na escola faz agressores e agredidos todos os dias, e ao que parece, promove nos agredidos a força de agredirem em outro momento.

Os abusos de diversas naturezas permeiam nossas vidas sem nos darmos conta.

Esse deve ser um dos motivos pelos quais o abuso sexual passa despercebido, acontece sem ser reconhecido como tal, tanto por abusadores quanto por abusados. Gestos constrangedores de conteúdos obscenos estão incorporados no nosso cotidiano. Eu ganhei um beliscão na nádega, de um parente quando ele veio me cumprimentar no enterro do meu pai, e constrangida, não reagi.

Se pensarmos ser a vida uma evolução constante (mesmo sem compreender), e se assim tentarmos nos inundar com a ideia de ser o futuro sempre melhor do que o presente, então podemos tentar inverter uma tendência natural: a de que, ao pensarmos no futuro imaginarmos sempre as piores possibilidades; podemos enxergar na mesma realidade, a chance – que sempre existe – de vencerem as forças de superação; vislumbrar as pessoas conseguindo uma aproximação umas das outras e criando o continente para o amor. É um exercício de enxergar a beleza sempre, em todos os cenários! É tornar vivo o olhar viciado na vida cinza.

Somos criadores do futuro e não expectadores de uma realidade já definida! Podemos definir a direção a seguir. Podemos cada um, a cada dia, nos esforçar para ouvir algo que dentro de nós pede para ser curado, ainda que não saibamos como ajudar a nós mesmos. E fazendo isso estaremos cada um, a cada dia, desenterrando verdadeiros tesouros! … É isso sim, tesouros: quando amorosamente ouvimos, acolhemos uma dor nossa que se manifesta como sentimento ruim, se nos perdoamos, podemos decidir não mais sentir aquilo da mesma forma! Como quando deixamos os restos de alimentos nutrir uma terra com sua decomposição, assim também a substância do sentimento ruim, marcas de experiências vividas que ajudaram a nos tornar quem somos, podem se metamorfosear num sonho, um desejo de algo novo. É assim que os aspectos doentes do passado podem, por nossa vontade, nutrir um futuro vivo, um futuro que começa a brotar como sonho.

Trechos editados de um depoimento de João Victor Souza Reis, membro do grupo Cálice do Amor:

A maior força do grupo Cálice do Amor era a qualidade de presença, verdade e sensibilidade que buscávamos para receber cada pessoa que o procurava. Independente de nossas profissões e gênero, éramos pessoas expondo nossa própria humanidade.

Criávamos um espaço livre de julgamentos excludentes frente a quaisquer depoimentos apresentados pelos visitantes. Entendíamos que toda tentativa de se falar sobre uma ocorrência traumática seria um grande desafio.

Era comum ouvirmos comentários a nosso respeito, como: “Quem são essas pessoas? Tem até um homem lá! Por quê? Quais as razões deles? Será que vão entender exatamente o que se passou comigo? Eles vão me expor? Se é tão difícil eu admitir para mim mesma(o), como conseguirei diante de um grupo? Um grupo que se apresenta publicamente com uma tarefa dessas!”

E nas apresentações públicas do grupo em reuniões e eventos na Associação Comunitária Monte Azul, havia uma dupla dificuldade: a complexidade de falar sobre a ferida conhecida como abuso sexual, e a delicadeza de se tratar de uma dor que quase todas as pessoas podiam reconhecer. Era como rasgar o véu que encobre uma realidade comum não explicitada, concretizando uma visceral violência ao Humano, protagonizada em seu íntimo. E ainda, havia o agravante de remeter a todos os presentes, ao rompimento da fonte de toda a esperança na vida de crianças, visto que nos casos mais típicos, os perpetradores são membros da família, ou pessoas muito próximas e as vítimas, crianças.

Falar publicamente disso vai além de abordar uma questão familiar: é evidenciar uma ameaça à possibilidade de uma vida digna. E torna-se especialmente incômodo ouvir quando tudo aponta para a ausência de proteções realmente eficazes, ao menos para proteger o futuro. “Tabu” foi a palavra que usamos para explicar todo anticlímax que encontrávamos.

Eu como o único homem me senti honrado e grato. Eu nunca sabia como ia me comportar nas reuniões. Frequentemente me perguntava: “o que eu estou fazendo aqui?” Mas quando começava tudo se encaixava, e então eu não era um estranho e pude colaborar bastante.

E contribuí de modo especial por ser homem: diante do depoimento de mulheres vitimizadas, eu me senti muitas vezes tomado por elas como representante do agressor; e então, a exposição de sua dor na minha presença, um ensaio do tão almejado perdão ao seu agressor.

Não sabemos expressar em palavras a dor de uma criança abusada sexualmente. E hoje em dia, sabemos a relevância do perdão ao agressor na cura da ferida de todo trauma.

Vivemos hoje tempos de alta sensibilidade. A Terra mudou. Pessoas estão (re)vendo coisas devido ao caminho da ampliação de consciência. Tomara estejamos vivendo um grande passo para que falar de dores seja permitido, divino e efetivamente sanador, e não mais um tabu.

Poema de Gisele Simões, membro do grupo Cálice do Amor dedicado a uma mulher acolhida no grupo:

“A procura de mim mesma, eu estive nas almas por aí…
E nestas almas eu somente me perdi.
Dentro de mim tantos habitaram, abusaram…
A menina foi violentada, teve sua inocência roubada…
Tantas dores…
A menina em mulher se tornou,
Das dores cuidou e em lindas pérolas as transformou.”

 

Sigo mobilizada nessa pesquisa que a cada dia me expande como ser humano e ainda encontro poucas pessoas prontas para compartilhar desse aprendizado.  Interessados podem me procurar pelo [email protected]

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Crédito da imagem: n/a

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