Carta de valor inestimável

publicado na Ed_03_abr/jun.2017 por e

Aproveite este capítulo com “Primeiros Erros”, de Kiko Zambianchi.

Quando um antigo professor comentou comigo que um conhecido seu estava na estrada com uma banda de Rock há mais de 20 anos e continuava na luta em busca de seu lugar ao sol, quis conhecê-lo imediatamente. Mais ainda depois de saber que ele também tinha um horário em um programa de rádio e um emprego bastante satisfatório financeiramente em um banco, mas que largaria aquilo na hora se pudesse viver de sua arte.

Eu imaginava Rodrigo careca (por opção); alto e ligeiramente acima do peso; com uma longa barba ruiva e testa constantemente franzida; apreciador de bacon, uísque e Harley Davidson’s mas a descrição real era quase que totalmente o oposto. Pelo menos por foto ele era sorridente, brincalhão, e depois de trocarmos alguma ideia, acreditei que era tudo isso mesmo.

Devido a um problema de timing, não conseguimos nos encontrar pessoalmente, o que resultou em uma entrevista feita por e-mail. Ali descobri que algumas coisas eram diferentes do que meu professor havia me contado. A banda de mais de 20 anos acabara e o programa de rádio também. Nada tão trágico que roubasse sua disposição e alegria, ou tão horrível como quando alguém interrompe o solo de Gimme Shelter, mas ainda assim bem decepcionante para meu personagem. Junto aqui as respostas de Rodrigo como se nossa conversa fosse uma carta para si mesmo, para o Rodrigo do passado e do futuro. Ambos leriam esses parágrafos de forma diferente e cada um daria sua própria utilidade.

Eis então seu depoimento/desabafo/relato:

“Bandas sempre acabam, eventualmente. É pior quando a vida de um músico se encerra.

Ela chamava Barba Ruiva. Éramos 5 integrantes, isto é, uma baixista, dois guitarristas, um batera e um vocalista. Como não poderia ser diferente, cada um de nós já era envolvido com música antes da formação da Barba Ruiva, mas em 2002 resolvemos montar a banda, éramos amigos e tínhamos um gosto musical muito em linha, isso ajudou a fortalecer a ideia de criação de uma banda. Tínhamos também um convívio como amigos, e cada um de nós já tocava um instrumento. Isso parecia coisa do destino, não precisávamos correr atrás de nenhum instrumentista, todos estavam ali, prontos para formar um grupo. A impressão que eu tinha é que mesmo que nós não combinássemos a formação, ela iria acontecer naturalmente com encontros que fazíamos para passar o tempo.

As composições das músicas eram feitas por nós. A letra geralmente surgia por mim ou por parte do vocalista, mas a harmonia e melodia vinham da banda como um todo. As letras e músicas já estão espalhadas na internet. Também tenho um trabalho que fiz em paralelo com a Banda, pois os caras não gostaram e queriam mudar algumas coisas que estragariam minha criatividade. Assim revolvi lançar sozinho, também está na internet como ‘Lico Molina’.

Não se escolhe o gênero de uma banda, quando se cria uma banda as pessoas que a compõem levam suas contribuições musicais que direcionam para um segmento musical. Poderíamos até tentar montar uma banda de Reggae, Blues, Soul, Rap, Samba, Sertanejo, etc., mas seria fake, não seria talvez uma banda que alcançou a admiração de algumas pessoas por tanto tempo. O primeiro passo em ter uma banda é a admiração que um integrante tem pelo outro, esse é um passo primordial para uma formação se tornar forte e estruturada. A partir daí, começa a identificação dos pontos fortes e limites de cada um, e então entra o respeito. Estando esses pontos claro para todos, começa a distribuição de funções e assim nasce o objetivo em comum.

Um roqueiro genuíno não tem esse perfil de focar mais a fama do que a música em si. Fama sem talento não serve de nada, torna-se uma Claudia Leitte da vida.

Atualmente existe uma identidade montada para algumas bandas, mas bem disfarçada, porque a maioria dos produtores sabem que a naturalidade é que passa a originalidade que as bandas precisam. Nós, de certa forma, já tínhamos essa consciência, mas claro, em alguns eventos acabamos montando uma identidade pois fazia parte da festa, mas de forma geral não ligávamos muito pra isso.

Agora, quando falamos em conceito, apesar de não prestarmos atenção nessas caraterísticas, acho que acabamos criando uma filosofia ao longo do tempo, mas nada muito rígido, talvez esse possa ser um dos pecados que cometemos na vida da banda.

Para se ter uma banda, é necessário iniciar com três pontos importantes: admiração, respeito e objetivo. Isso não quer dizer que vai dar certo, mas sem isso ela não dura um dia sequer.

Acabou por diversos motivos. Tivemos algumas boas propostas e colocações no mercado fonográfico; investimos muito tempo e dinheiro nesse projeto; abdicamos de muita coisa para focar em viver de música; mas com o passar do tempo, a banda foi tomando rumos diferentes. As vaidades individuais começaram a ficar mais fortes; os interesses alheios ou preocupações com o outro ficou cada vez mais raros, e isso foi o começo do fim.

Banda é como um casamento. Quando não existe parceria; amizade; compreensão; prazer, e todas aquelas coisas que às vezes achamos uma tremenda balela…não rola. Essas balelas são os diferenciais para manter qualquer relacionamento, ainda mais quando falamos de banda, que no caso da minha era formada por 5 caras que queriam colocar suas opiniões, observações e etc.

O que não deveria acabar é a relação de amizade, mas dificilmente se escapa desse quesito, pois sempre tem aquele Narciso, que se mostra o dono da verdade, e que não é capaz de se colocar na posição do outro.

Não sei dizer vantagens em ser um roqueiro, porque cada um segue um estilo que mais toca seus sentimentos, seja Rock, Pagode ou Forró. O que é interessante é que o Rock está sempre presente em vários lugares do mundo, os outros estilos são mais restritos. Vejo certos gêneros como “ bola da vez”. Lembra quando o Axé no Brasil era a sensação do país, e com o tempo as inúmeras bandas acabaram e caíram no esquecimento? Na Lambada foi a mesma coisa. Outra onda que está passando é o Sertanejo Universitário, que deve durar mais uns anos, e tem o Rap que vem crescendo bastante e deve alcançar uma maturidade daqui um tempo, mas o Rock está sempre no paralelo.

Ser Roqueiro no Brasil é uma piada, a banda pode até ser boa no início, mas já entra em várias produções para se adequar ao mercado e virar uma banda de consumo rápido. Geralmente as bandas que entram nessa terminam no limbo, passando fome.

Eu faria várias coisas de forma diferente… desde identificar os integrantes que estão ali para jogar para o time ao invés de almejar ser a estrela, até seguir um planejamento. Uma banda tem que fazer suas próprias músicas, tem que explorar e identificar os pontos fortes de cada integrante, tem que aprender a respeitar os demais instrumentos. Tem que experimentar sons, tem que pesquisar outras influências.

Quando você vê uma banda que tem um cara que se destaca, e ele sabe a hora de se colocar na música, de ser virtuoso, e além disso sabe fazer uma base para ajudar o outro músico não tão habilidoso a se destacar pode ter certeza que ali há uma chance de ser uma grande banda. Agora quando se vê aquele cara que toca muito e o instrumento dele é sempre o mais alto da banda, ele quer sempre ser notado, quer dar a palavra final… esqueça. É só mais um grupo qualquer.

Mesmo com as dificuldades e as frustrações, o trabalho com músico ainda vale muito a pena. Música é matemática. Músicos geralmente veem o mundo de forma diferente. Trabalhar com isso faz bem pra alma. Você acaba se conhecendo melhor, arrumando vários amigos, conhecendo vários lugares. A única coisa ruim é que não se ganha dinheiro. E fora as exceções que ganham um trocado a mais, se não houver um planejamento corre-se o risco de ter uma aposentadoria desamparada.

Tivemos alguns shows bem legais… na minha opinião, entre os melhores foi um em Avaré. Show de uma rádio da cidade onde tocamos para umas 15 mil pessoas, com direito a invasão de camarim, hotel exclusivo para as atrações e uma grana para cobrir as despesas. O outro foi no centro de São Paulo, no palco da Fifa Fan Fest na Copa do Mundo, onde também tocamos por uma hora com participação especial e um público bem bacana.

Sempre quis mudar minha figura quando estava tocando. Acho que isso passa por um processo de evolução e aprendizagem. Todos mudamos constantemente, não somos os mesmos de um dia atrás, quanto mais anos depois.

No começo é complicado arrumar locais para se tocar, existe aquela desconfiança do contratante se o retorno vai ser favorável ou não. O grande lance é criar parcerias, negociar valores baratos ou fazer uma proposta que visa retorno no futuro, como por exemplo tocar em troca de ajuda na gravação de um CD, capital para comprar equipamentos, ou até mesmo pela divulgação. Claro que não dá pra ficar muito tempo nessa, é melhor deixar claro que vender um ou dois shows pode acontecer, mas depois o interessante é fechar um cachê fixo ou negociar a bilheteria.

Com o passar do tempo as ligações para novos shows irão aparecer, o público começará a crescer. Basta saber administrar a agenda e perceber qual o momento de começar o valorizar o trabalho e ajustar o valor do cachê, para que os artistas não sejam explorados. Geralmente esse ponto é difícil de discutir em uma banda que não tem uma pessoa olhando para esse viés, porque sempre tem aquele cara pimpão da banda que quer tocar por bebida ou para ganhar a mulherada.

Contratante que começa com a conversa ‘Vocês podem tocar aqui mas tem que trazer público’ está preparando uma cilada. É preferível tocar por um preço fechado que a casa possa pagar e, depois, com o desempenho da banda e casa, renegociar o valor.

Lembro quando recebi o convite para fazer parte, junto com um amigo, do Kiss Club da Rádio Kiss FM, e nesse período ainda estava com a banda, porém essa notícia perturbou alguns integrantes, o que fez a convivência se tornar mais pesada, a chegar um ponto de projetos que tínhamos fechado na banda ser levado para outros músicos fazerem, isto é, me excluindo do projeto. Acho que esse também foi um dos motivos que levou o fim da banda.

Mas sem perder o fio da meada, o programa já existia e estava adormecido por um período, e quando a rádio voltou com a atração fez em um formato ao vivo. A equipe contratada para essa execução, porém, não entregava um trabalho com qualidade, e foi aí que eu e meu amigo Marcelo Farias agarramos a oportunidade de comandar o show. O programa consistia basicamente de entrevistas com bandas consagradas e artistas independentes que selecionávamos, pois acreditávamos que existia um diferencial para tocar na rádio.

A ideia era mostrar de fato que existem bandas boas tocando por aí, apesar de que em alguns programas recebemos indicação para colocar determinada banda, mas em 95% das vezes quem decidia era o Farias, que fazia quase um trabalho jornalístico dos materiais da banda. Além de fazer ao vivo nos estúdios da Kiss FM, o passávamos ao vivo no Youtube e na sequência era disponibilizado no site da rádio o programa gravado, que servia de mais um material para fortalecer o caminho das novas bandas.

Conhecemos gente boa demais, e que hoje estão utilizando as mesmas plataformas de bandas famosas, com a evolução da tecnologia e mídias sociais a galera passou a consumir muita coisa boa e ruim. Isso fez com que houvesse uma pulverização de referências musicais, e muita gente se perdeu. O programa tinha mais ou menos essa missão, de levar ao público, referências boas de coisas antigas ou novas que aconteceram ou que estão acontecendo no mundo fonográfico. Porém por falta de investimentos encerramos agora em setembro de 2016 o comando do Kiss Club, e não sei ainda se o programa continuará ou se voltará a ser gravado como faziam no passado.

Por sinal, tenho várias bandas novas de São Paulo para indicar… mais vou citar as que tenho ouvido essa semana: Noias, Naguetta e Fast Food Brasil.

Na minha visão, para que o Rock figurasse novamente sob os holofotes do mainstream é necessário apenas tempo. Isso é cíclico. Daqui a algum tempo, quando as grandes massas de comunicações pararem de investir em músicas de consumo rápido, a galera voltará a preencher suas vidas não só com Rock, mas com músicas que tenham qualidade em todos os sentidos. Para isso, precisamos voltar a ter referências. Tomo por base os desenhos animados que mostravam para as crianças o que era bom, como por exemplo Os Flinstones, Tom & Jerry, Pantera Cor de Rosa… A criançada já associava desenhos bons com músicas boas e daí em diante aprendiam a selecionar sua própria playlist. Hoje os desenhos não são muito fortes em referências, mas temos bastante jogos que geralmente mostram uma musicalidade voltada ao Rock. No entanto, em contrapartida, existem os youtubers, que geralmente gravam coisas voltadas pra música de consumo rápido.

As grandes mídias não buscam apoiar a cena underground, só se você virar um MC e fazer algo que provoque repercussão. Mas para ficar claro, gosto de alguns raps, mas naquela linha de sagacidade, raciocínio rápido e batida no sangue.

Os roqueiros atuais são ‘mais do mesmo’. Músicas chatas demais. Conheço algumas que tocam no circuito em que vivo, sem diferencial algum, mas por outro lado tem sempre uma ou outra que escapam e fazem a diferença, e são essas que geralmente divulgo e passo adiante.

É difícil mesmo fazer coisas boas. A maioria das bandas não consegue colocar um algo a mais porque não pesquisam outros sons, não buscam inspirações, e quando fazem isso não conseguem fazer uma releitura ou criar, pois não estudam e só sabem três acordes. É importante ressaltar que também existem aqueles caras que não sabem nem o nome de uma nota, mas são gênios em seus instrumentos; mas esses estão em outro patamar, e geralmente são livres para fazer o diferente, é aquilo que chamamos de dom.

Mas acredito que o Rock não está voltando ao porão, e nem que lá é seu habitat natural. Ele levou esse rótulo por nascer principalmente em garagens, mas caso retorne, teria de ser com a filosofia que originou o originou, não como vejo algumas bandas utilizando mais efeitos visuais do que som de qualidade.

O Rock não é nada unido. As bandas geralmente procuram mais rivalidade do que cumplicidade, isso que impacta o gênero. Qualquer outro ramo as galeras se ajudam, indicam e fazem parcerias. No Rock, essa mentalidade ainda é muito pequena, por isso que o Rock deveria morar em qualquer lugar, desde que existisse a união entre os artistas.

Eu acredito que na maioria dos roqueiros existe muito preconceito quanto a outros estilos, e mesmo para falar mal, precisa-se ouvir, conhecer. E quem perde com isso é o Rock. Talvez isso seja a chave para despertar uma nova onda.

Outros gêneros como o Samba, Forró e Sertanejo vêm se misturando e criando coisas novas. Mesmo que a mudança seja muito pequena, há uma variação de ritmo, melodia e harmonia. Isso gera uma mistura de pessoas, o público aumenta, e consequentemente a divulgação acaba se espalhando cada vez mais. No Rock isso não acontece, a mistura ainda é muito pequena. Se uma ou duas pessoas falam que é ruim, o restante da galera já começa a criar um preconceito sem nem tirar suas próprias conclusões antes. Por um lado, o controle de qualidade fica bem alto, mas por outro é difícil se proliferar como acontece com os demais estilos musicais.

Sei que para mim minha música nunca foi um fardo. Tirar um som de um instrumento não é trabalho, é como se fosse um combustível para que eu começasse a pensar em outras coisas. A música, na maioria das vezes, muda nosso estado de espírito; ajuda a colocar em ordem os pensamentos; nos faz lembrar do passado; do cheiro de algum ambiente ou pessoa. Em resumo, só vai dividir outras atividades com a música quem realmente gosta. Quem acha que gosta não leva isso em frente. Até hoje quando em chego em casa todas as noites, toco algum dos meus instrumentos para extravasar a coisas do cotidiano.

Tenho saudade de fazer um som bacana, saudade da banda não tenho. Fiz tudo que podia ser feito, não tenho remorso, mas isso não quer dizer que não possamos voltar a fazer um som um dia, quer dizer apenas que sou bem resolvido com esse assunto.

Sei que minhas músicas sintetizam minha história, cada uma foi feita em um período diferente, e acabam contando um pouco sobre o que estava vivendo em cada momento.

Enfim, tenho algumas ideias para ainda dar continuidade, mas preciso ajustar alguns detalhes e não sei se quero colocar em pratica agora, ou prefiro esperar um momento mais oportuno.

Só sei que, de tudo o que passei, não me arrependo de nada.

Rodrigo “Lico” Molina

Alegrei-me ao saber que a barba ruiva que eu imaginava no rosto de meu personagem, apesar de não existir, ainda fazia parte de sua história como a falecida banda que carregara nas costas por tantos anos e, mesmo tendo empenhado tanto tempo, dinheiro e sua juventude nela, não se envergonhava de sua suposta derrota. O que muitos chamariam de fracassado, eu daria o nome de herói. O fracasso é para aqueles que não fazem o que querem, e esse homem fez e ainda faz o que quer todos os dias quando volta para casa, e ao invés de se deixar levar pela exaustão, deita-se nos braços carinhosos de seu verdadeiro amor.

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Crédito da imagem: Domínio Público

Capítulo do livroRock N’ Roll na Terra da Garoa — de volta ao porão?

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