Os nomes das personagens deste capítulo são fictícios, os traficantes não gostam de ver expostas as histórias de suas “mulas”, os pequenos transportadores, sobretudo quando o transporte dá errado. Nossa jovem protagonista e sua história são verdadeiras, mas é quase inacreditável pensar que ela decidiu traficar porque queria dinheiro para implantar silicone nos seios.
Era uma noite que trazia a promessa de ser inesquecível. A brisa soprava suave a superfície do mar. Os clubes e casas noturnas amontoavam jovens que buscavam por diversão, enquanto o resto da cidade se preparava para dormir. Parecia cena de filme.
Katrina havia se vestido com o que de melhor e mais sensual possuía. Sentia que seria a rainha da festa e que todos na balada a notariam. Retocou um pouco mais a maquiagem, se olhou no espelho mais uma vez por garantia, parecia estar do jeito que esperava. Mesmo diante dos vários desentendimentos com a família durante aquela semana, nada iria estragar a sua noite.
Lá fora, as luzes da rua se confundiam com a do luar, o silêncio já dominava a vizinhança. Cumaná sempre fora uma cidade tranquila, mas suas belezas praianas e seu clima agradável ajudavam a efervescer um espirito noturno e baladeiro. Katrina se sentia assim, livre e no auge de seus 20 anos queria tomar as rédeas de seu destino com as próprias mãos, derrubando qualquer coisa que a limitasse. Iria dançar até o amanhecer, queria se esquecer de tudo, das discussões com a mãe, de seu namorado agora preso e inclusive, de uma crescente suspeita que a incomodava como uma farpa em seu cérebro. Por um minuto, saiu de si, lembrando-se dos enjoos que a perturbavam:
— Isso não pode ter acontecido! — repetia para si mesma.
Todavia, logo sorriu e sem se abalar, prosseguiu em seu intuito. Nada poderia impedi-la de se divertir com os amigos, nada nem ninguém.
Partiu ensaiando os passos no caminho, e ao chegar à balada, cumprimentou os colegas e gargalhou com as amigas. Bebeu uma cerveja para entrar no clima. Logo se entregou à pista, flutuava como se não houvesse amanhã. Cumbia, reggaeton, um a um, os ritmos tocavam e ela se lançava mais e mais, destilando toda a sua sensualidade através de seu pequeno corpo.
Em um de seus intervalos da pista de dança, notou uma figura conhecida no bar: Maribel.
Katrina a odiava, Maribel era a ex-namorada de seu atual namorado.
— Essa menina aqui? Espero que ela fique longe de mim! — pensou enquanto olhava Maribel disfarçadamente.
Em algum momento da madrugada em meio ao frisson e a bebedeira, ambas se aproximaram e começaram a conversar de forma amigável. Naquele momento, surgiu entre elas uma daquelas coisas inexplicáveis. O resultado é que dali em diante, as garotas anteriormente rivais, agora eram próximas.
— Preciso de dinheiro! — disse Katrina enquanto passava os dedos entre os longos cabelos.
Maribel ouvia com atenção o que a sua nova amiga dizia.
— Já faz tempo que quero aumentar meus seios. Meus avós e minha mãe não vão me dar essa quantia. Meu pai não é uma opção e desde que se separou de minha mãe, evito pedir coisas para ele.
Nesse momento Katrina parou de falar, olhou para o vazio como se estivesse procurando algo e completou:
— Além disso, existe algo que já me incomoda há dias. Acho que estou grávida de Guzman.
Guzman era o namorado de Katrina e ex de Maribel. O rapaz havia se metido em encrencas e estava preso. Embora tenham vivido um rápido romance, é interessante como algumas pessoas e situações se tornam peças chave no tabuleiro de um jogo que é jogado com nossas vidas.
Maribel olhou para Katrina e disse com um sorriso:
— Acho que posso te ajudar! Eu conheço alguém que conhece outro alguém que possui contatos no Brasil.
Nesse momento, Katrina encarou Maribel com surpresa, enquanto esta terminava:
— É um serviço de entrega, mas dá um bom dinheiro!
Durante a explicação do plano, Katrina manifestou dentro de si um misto de medo e entusiasmo. Nunca tinha vindo até o Brasil, e seguir rumo ao desconhecido lhe parecia desconfortável. No entanto, a oportunidade de dinheiro fácil e a suspeita da gravidez indesejada orientavam Katrina em direção à empreitada. Aceitou a oportunidade de forma esperançosa. Nos dias seguintes, preparou-se para a viagem. Recebeu a confirmação do contato e as últimas instruções de Maribel. Além disso, mentiu para sua mãe, dizendo que viajaria para uma cidade próxima com alguns amigos. Logo, com a cara e a coragem a jovem venezuelana estava a caminho do Brasil.
O apartamento no centro de São Paulo, para onde foi imediatamente após desembarcar, era pequeno. Nele, estava Katrina com mais três venezuelanos, um casal e uma moça, a única do grupo que já havia participado do esquema. Longe de casa, Katrina se sentia um peixe fora d’água. Tudo era novo e estranho. O ambiente parecia pouco acolhedor, diferente do que estava acostumada em seu país.
Nesse momento, a porta do apartamento se abriu revelando seus patrões: dois homens, austeros e de fala engraçada. Eram nigerianos. Em um espanhol improvisado, eles lhes explicaram o serviço com mais detalhes:
— Vocês devem levar essas mochilas com dólares para a África do Sul. Ao fim do serviço, quando voltarem para o Brasil, vocês serão pagos.
Devido ao clima estranho e a uma suspeita que se apresentou como uma sombra amedrontadora, Katrina pensou em desistir, mas recuou por causa de uma frase que ouvira dentre as tantas balbuciadas pelos nigerianos:
— Sabemos onde vocês e suas famílias moram.
Essa fala norteou seus pensamentos.
Perturbada, nem percebeu direito quando foi colocada em um táxi, rumo ao aeroporto de Guarulhos, acompanhada apenas do casal também contratado para o serviço. E notou menos ainda quando substituíram, segundo Katrina, a tal mochila por uma mala.
A tensão só aumentava enquanto permanecia na fila do check-in. Suava frio e sentia os batimentos cardíacos pulsarem com mais rapidez. Tentava manter o fôlego, mas o susto aumentou quando se deu conta de que o casal que estava com ela no taxi disparara em corrida pelo aeroporto. Alguns policiais notaram o tumulto e se aproximaram de Katrina enquanto os outros guardas perseguiam o casal. O seu entendimento da língua portuguesa era escasso e para piorar a situação, as palavras não saiam, gaguejava constantemente e olhava para os lados como que procurado uma rota de fuga. Isso, para olhos bem treinados dos policiais, configurava uma confissão de culpa. Foram em direção à mala que estava nas mãos de Katrina e encontraram 8,5 kg de cocaína.
Era o pesadelo completo. Em pânico a jovem venezuelana tentava argumentar:
— Eu não tenho nada a ver com isso. Foi uma armação. Eu sou inocente!
Gritava mais e mais, com a intenção de se desvencilhar das mãos que sem esforço a seguravam.
Quando suas forças começaram a se esvair e as pernas fraquejaram, chorou copiosamente. Tudo foi em vão, nada convencia os policiais.
— Essa aqui é outra mula tentando ir para fora do país com drogas! — ouviu dos agentes federais que demostravam experiência no assunto.
— Que pena, uma moça tão bonita! — disse outro meneando a cabeça com um olhar de reprovação.
Mula é o termo utilizado para pessoas que são usadas para levar drogas através das fronteiras nacionais e internacionais. Muitas aderem, outras são cooptadas por traficantes em seus países de origem com a promessa de um ganho fácil, sabendo ou não do teor de suas bagagens. É muito raro que mulheres, usadas como mulas, tenham um envolvimento real e constante com o tráfico. Em geral o crime é circunstancial, mas o peso desumanizador que a expressão “mula” carrega é gritante, seres humanos como animais de carga. Em alguns casos, chegam a carregar em seus próprios estômagos cápsulas e comprimidos.
No caso de Katrina, por suspeita de que a jovem pudesse estar carregando em seu corpo mais drogas, ela foi forçada a passar pelo aparelho de raio-X. Nesse momento, a dúvida sobre a gravidez acabou. Durante a vistoria no aparelho, foi possível certificar sua gestação.
— Como posso ser mãe numa situação como essa?
Na ocasião em que ficou detida no aeroporto, um sentimento de solidão apertava constantemente. Era difícil para ela raciocinar com a culpa sufocando sua mente. A única coisa que a aliviava eram as lembranças de casa. Do pôr do sol em Cumaná, das belas praias, dos avós e de sua mãe.
— Preciso avisar minha mãe!
Permanecia inquieta e confusa, sem acreditar nos fatos que insistiam em encurralá-la. Os policiais federais faziam perguntas que ela não entendia. Durante nossa entrevista, algum tempo depois, Katrina nos garantiu que em nenhum momento foi maltratada pelos policiais. Pôde receber a assistência de representantes do consulado venezuelano, uma vez que se trata de um direito garantido à presa estrangeira.
Por fim, decidiu ligar para sua mãe e dizer-lhe toda a verdade. Conversou com um dos guardas, respirou fundo e discou o número.
Seus dedos tremiam. Quando sua mãe atendeu, a voz fraca e vacilante perguntou:
— Mãe?
— Filha, é você? Onde você está? Estou preocupada, está tudo bem? O silêncio tomou conta por alguns segundos, então Katrina começou a reproduzir alguns de seus piores dias.
— Dios mío! Foi uma das primeiras coisas que sua mãe, ainda sem entender, pôde dizer. Dali em diante, apenas arrependimentos e saudades traduzidos em lágrimas e soluços embaraçavam as palavras de ambas.
Em direção ao presídio, Katrina nada tinha a dizer, só lhe restava absorver o silêncio e alguns gemidos reprimidos. Já não importava se fazia frio ou calor, apenas sentia que o tempo passava dolorosamente devagar. No fim do caminho, encontrou-se com o presidio, sem encarar ou sequer levantar a cabeça, seguiu sem forças rumo ao portão principal da Penitenciaria Feminina da Capital (PFC), em São Paulo.
Ela foi inaugurada em 1973 e junto com o Centro de Observação Criminológica e a Casa de Detenção formavam o que um dia fora o Complexo Penitenciário do Carandiru. Hoje possui uma população carcerária de 581 detentas — segundo dados da Secretária de Administração Penitenciária (SAP) —, em sua maioria, estrangeiras.
Ao chegar, não existia possibilidade de Katrina passar despercebida. Mesmo sendo obrigada a vestir aquele uniforme composto apenas de uma camisa branca e uma calça bege, era linda. Sua pele alva e bem cuidada parecia um tecido macio. Estava abatida e assustada, mas o brilho de seus olhos azuis se destacou. Aliás, o perfil da venezuelana difere dos padrões da maioria das estrangeiras presas acusadas por tráfico no Brasil. Fazendo-se valer dos títulos de estudante universitária, proveniente de classe média e contando ainda com suas características físicas, Katrina é quase uma raridade. Em geral, as presas têm pele escura, são de origem africana ou indígena (no caso das latinas), pobres e quase sem nenhuma escolaridade.
Olhares ávidos por carne fresca a observavam. Daquele dia em diante, o terreno era estranho e perigoso. Cada passo precisava ser calculado. Aquele lugar possuía regras próprias de sobrevivência e Katrina precisou se adaptar.
Passados alguns meses, sua barriga já aparecia por debaixo da camiseta. Katrina arrastava seu corpo pesado pelos corredores do Pavilhão 3, para onde acabara de ser transferida. O idioma brasileiro estava mais afiado, já conseguia se virar. Embora passasse mais tempo com outras detentas venezuelanas, estendeu sua rede de contatos e tinha ganhado proximidade com algumas colombianas e até africanas.
— Virei o chodó de lá! Conheci muitas meninas boas. Como eu era pequena e estava grávida, cheguei a ser protegida pelas demais. Mas você não pode dar mole. Tem que ser humilde, mas não boba. Em uma ocasião, outra presa tentou dar em cima de mim, rejeitei na hora. Ela quis me agredir, mas as outras me protegeram!
Katrina odiava a comida do lugar, desde pão embolorado no café da manhã a fígado esverdeado no almoço. Descolava algumas coisas através da generosidade de outras presas que lhe davam inclusive, produtos higiênicos.
Então chegou o dia em que as dores começaram a aumentar significativamente. Katrina já não aguentava mais. A indiferença de algumas carcereiras também a enfurecia. Repetia em alto e bom som:
— Meu filho vai nascer! Meu filho vai nascer!
Mas nada surtia efeito.
A preocupação com seu filho crescia na medida em que o tempo passava. Andava de um lado para o outro na cela, causando pena e inquietando outras presas. Algumas engrossavam o coro por ajuda, no entanto nada movia as autoridades. Quando não aguentou mais andar, sentou, deitou, mas nenhuma posição melhorava seu estado. E assim foram por alguns dias. O final de sua gravidez foi difícil, chegara a sangrar em alguns momentos.
Já não suportava aquela situação. Lembrava-se de alguns relatos junto à suas companheiras de cela, sobre uma colombiana grávida em que na ocasião de seu parto, não recebeu ajuda por parte das autoridades, o que fez com que seu bebê não sobrevivesse.
Até que explodiu:
— Escuta aqui, se algo acontecer comigo ou meu filho, eu acusarei vocês junto ao meu consulado.
Ao mencionar isso, Katrina sentiu causar um impacto que surtiu efeito positivo. Foi enviada para o hospital e deu à luz a Juan Manuel, muito saudável e bonito.
Os dias passaram a ser mais agradáveis depois de tanto sofrimento. A presença do filho trouxe de volta o sorriso desmedido e um pouco de paz, mesmo ainda vivendo o cárcere.
Ironicamente, a gravidez foi um dos motivos que levaram Katrina a vir para o Brasil, pensava de forma categórica em usar parte do dinheiro para abortar seu filho, o bebê que agora era motivo de renovação e esperança. Pela lei de Execução Penal (LEP), n° 7.210/1984 — é permitido que mães presas fiquem com seus bebês durante o período de amamentação e tal direito é estendido também às presas estrangeiras. Permanecer com Juan Manuel trazia novo significado à vida de Katrina. Por vezes, enquanto cuidava da criança, lembrava-se de sua mãe e visualizava em sua memória todas as escolhas que foram feitas durante sua juventude para que chegasse na atual situação.
Mas ser mãe a mudou. Ser uma mãe presa a mudou mais ainda, a transformou em uma nova mulher. Essa foi umas das frases que mais ouvimos de sua boca.
No início de 2016, Katrina completou 1 ano e 2 meses na prisão. Então sua mãe Mercedes (assim chamaremos esta personagem real) agora avó, executou uma odisseia para ir de encontro à filha e ao neto na capital paulistana. Não era a primeira vez que a mãe vinha visitar Katrina, porém seria a que mais lhe custaria tempo e esforço. Despediu-se dos filhos, deixando o mais novo com os avós paternos. Conseguiu dinheiro com a ajuda de uma missionária brasileira da igreja Quadrangular em Cumaná, e após uma licença em seu emprego de professora, veio de carona com amigos até a fronteira do Brasil e depois, de ônibus, foi até Manaus, no Amazonas e, de lá, pegou um avião para São Paulo.A sentença de Katrina, após seus primeiros três meses de prisão, estava prevista para se cumprir em sete anos. Porém, com a ajuda do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), uma organização não governamental que presta assistência a presas estrangeiras em nosso país, houve solicitação de recurso junto à justiça para reduzir a pena de Katrina para apenas dois anos.
Tudo parecia estar melhorando, a tempestade que outrora tomou conta do horizonte da jovem, apresentava melhorias. Nesse cenário, a chegada de sua mãe foi bem-vinda. Cada dia de visita era especial, o apoio ajudou a estabilizar novamente seu gosto pela vida. Perspectiva de soltura, sua mãe a animava esbanjando otimismo e alegria todas as vezes que atravessava os portões de ferro da penitenciária. Entre mãe e filha, não havia mais brigas ou desculpas, orgulho ou acusações. As duas mães agora se entendiam como nunca, pois ambas falavam a mesma língua e sonhavam o mesmo sonho, almejavam um futuro melhor para seus filhos e nada mais.
Em julho de 2016, Katrina foi transferida para o regime de prisão domiciliar, necessitava apenas de um endereço fixo, o que logo conseguiu por intermédio de uma amiga brasileira que conhecera na prisão. Isso foi possível graças ao seu bom comportamento e em grande parte ao seu filho, Juan Manuel. O juiz permitiu que ela aguardasse a sentença final, prevista para sair dentro de 10 meses, fora da prisão.
Crédito da imagem: Domínio Público
Infográfico: Rômulo Cabrera
Capítulo do livro “Presas estrangeiras: tráfico, prisão, pena, liberdade e volta para casa“