Desbravando a saúde mental e física

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As questões psicológicas e médicas, envolvendo a população transgêneros, são de suma importância. Ainda há muitas questões que precisam ser aprimoradas em prol da comunidade, pois intolerância e  preconceito ainda estão vigentes em nossa sociedade.

Como podemos analisar após o último dossiê divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil é o país com mais mortes de pessoas transgêneros no mundo, segundo a Antra, em 2022, foram detectados 131 homicídios em todo território brasileiro e 84 tentativas de assassinatos.

Além do grande índice de violência que os transexuais têm que lidar diariamente, também há outras questões como aceitação familiar, o seu próprio reconhecimento. Mas nessa fase podemos detectar questões como a disforia de gênero, que até recentemente era tratada como uma doença na sociedade.

Trata-se, contudo, de uma fase que não deve ser categorizada como uma condição mental. Ela permeia a jornada de autodescoberta das pessoas transexuais. A disforia de gênero manifesta-se quando indivíduos não encontram plenitude nas características que lhes foram designadas no momento do nascimento, como o nome, órgão genital e outras questões. Mas na sua identidade de gênero, que se manifesta como a vivência emocional e comportamental, podendo ser feminina, masculina ou andrógina.

Durante esse processo diversas questões podem ocorrer. As pessoas, nessa fase, se sentem como se estivessem aprisionadas dentro de um corpo que não é seu. E podem ter os seguintes sintomas: preocupação, tensão, desconforto, nervosismo, irritação e até mesmo desânimo. Que podem acarretar  uma depressão.

Todos os personagens do nosso livro destacaram vivenciar essa etapa, sendo um processo com diversos desafios. Mas essencial durante seu redescobrimento pessoal.

Em algumas pessoas essa etapa não apresentou tanta dificuldade, para o processo de autoaceitação, porém as razões físicas foram um empecilho. Como Sheilla, a primeira jogadora transgênero brasileira, que vivenciou essa fase, nos relatou como foi essa etapa da sua vida durante nossa conversa:

— Eu não tinha aquela dúvida sobre meu gênero. Eu era o Sérgio no corpo da Sheilla. Então, assim, eu nunca tive dúvida do que eu era, do que eu sou. Então é, eu não sofri com o meu psicológico. Mas algumas coisas do meu corpo me incomodavam tipo ter pelo no rosto e não ter seios, essas coisas.

Outras lidam de uma forma diferente, como Victor e Cristian. Durante todo o desenrolar da conversa, quando mais à vontade, eles se sentiram abertos em relatar essa fase de incógnitas da vida. Começaremos por Victor, que a disforia causava em si uma dificuldade em se relacionar com outras pessoas.

— Então, na época eu não entendia, eu não entendia o que era isso, entendeu? Eu não conseguia expressar isso, tipo colocar para fora, então acaba que eu era uma criança tipo antissocial. Digamos assim, eu ia para os lugares e desde novo eu falava no masculino, tipo assim, Estou cansado, tudo no masculino, entendeu? E tipo assim, eu tinha muita dificuldade de colocar as coisas para fora, por exemplo, a gente ia numa festa e eu era tão tímido, tão reprimido, que eu não conversava com ninguém – destacou Victor.

Já para Cristian ele passou por diversas fases até o momento do seu descobrimento, descontraído ele relatou que nunca quis ter um órgão genital masculino, sentia atração por mulheres, porém, nada daquilo preenchia o seu eu interno. Como um comunicador guardou um pouco do seu tempo para se aprofundar em um tema que em pouco tempo ele iria entender toda aquela questão psicológica que enfrentou durante sua infância, sua adolescência e em sua fase adulto:

— Aí eu comecei a estudar mais sobre o assunto e foi me apresentado o que era ser um homem trans. Eu falei, então é isso? Porque eu não sou nenhuma coisa, nem não me vejo nem como uma coisa nem outra. Hoje em dia eu posso me olhar no espelho e me ver como um homem trans entendeu?

De acordo com a psicóloga Camilla Campos, de 42 anos e formada pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (Fumec) desde 2008, é essencial que a pessoa se descubra, reconhecendo seus sentimentos, além de lidar com a pressão familiar, pois muitos sentem receio da aceitação. Saber praticar o autoconhecimento é importante nessa etapa e os profissionais estão ali para prestar todo o auxílio necessário.

Camilla é casada há doze anos e recentemente, em dois anos, o seu esposo se reconheceu transgênero. Então ela sabe como ninguém como é essa fase e explica alguns procedimentos:

— Então é importante ela fazer o processo de autoanálise e de escuta de si mesmo, né. Através de um profissional capacitado, são realizados procedimentos para que aquela pessoa possa conseguir elaborar aquilo que ela está sentindo. Para ela conseguir identificar e como ela se correlaciona. Para ela conseguir seguir a vida dela e literalmente passar pelo processo de transição.

Todos aqueles, que eu tive o contato e pude conhecer as suas histórias, tiveram que enfrentar essa fase que mexe com o psicológico e também com o físico. Durante uma das conversas foi me apresentado a palavra binding, que significa uma técnica onde o usuário utiliza faixas e coletes para esconderem os seios, concedendo um aspecto mais plano a esta parte do corpo. Sendo mais comum a aplicação em homens transgêneros.

Não é recomendado o uso de fitas adesivas, faixa de atadura, esparadrapo ou plástico filme, podendo causar danos à pele. Victor relata que um conhecido praticava academia e por conta do receio de sofrer qualquer tipo ataque transfóbico utilizava as fitas apertadas durante o treino e durante a volta para casa por conta do material estar completamente apertado e o calor sufocante no local, sofreu um desmaio.

O sonho de muitos é a realização da mastectomia masculinizadora, que é retirada da glândula mamária feminina. Mas para o procedimento é importante um acompanhamento com profissionais da área da saúde. De acordo com a psicóloga Camilla, o prazo para realização desse procedimento pode variar em até dois anos, caso o paciente esteja realizando o acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), já nas clínicas privadas esse prazo pode ser reduzido em até um ano.

O prazo é essencial para que o paciente esteja convicto que é aquilo mesmo o que almeja, evitando a insatisfação com o procedimento.

— Então, como todo o processo, ele tem os seus trâmites. Ele tem início, meio e fim, né? Então é importante que em cada fase da transição a pessoa esteja certa de si, na perspectiva do autoconhecimento. Então, se eu me conheço, eu vou saber onde é mais confortável para mim. Onde não é aquilo que eu quero, aquilo que eu não quero – explica Camila sobre a importância de respeitar todos os momentos no processo de transição, sem queimar nenhuma largada.

O processo de transição é importante que as pessoas transexuais realizem o procedimento com acompanhamento dos profissionais da saúde, que trabalham em conjunto a fim de realizar o melhor atendimento possível. A equipe que atua no bem-estar das pessoas trans durante essa fase é formada por psicólogo, psiquiatra e endocrinologista, conforme dito pela psicóloga.

— O psicólogo tem o papel de ajustar e trabalhar com o paciente em questões emocionais, enquanto o psiquiatra pode entrar com medicação para regular o humor, se necessário. Além disso, o cirurgião plástico depende dos laudos do psicólogo, do laudo psiquiátrico e das avaliações do endocrinologista para prosseguir com a cirurgia.

Eduardo Ribeiro Mundim, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 1986, e trabalhando como endocrinologista desde 1990, possui uma experiência fantástica que eu pude notar durante o nosso encontro. Atualmente ele atua no ambulatório trans do Hospital Eduardo de Menezes. Um rapaz culto e com fala pausada, iria me explicar como funcionava o processo hormonal nessa fase de transição.

— Nós estamos usando hormônios para apoiar e ajudar a população trans. Trazer a adequação social, adequação de gênero, que a sociedade diz que aquele gênero tem que ter. Então os hormônios vão entrar dentro dessa adequação social, é uma necessidade, também social — disse o especialista.

A dosagem de aplicação de hormônios varia de pessoa para pessoa. No caso da testosterona, a aplicação é geralmente realizada entre 400 e 500 miligramas por mês, sendo essa a dose máxima permitida legalmente. Quanto ao estradiol, a dosagem varia de seis a oito miligramas por mês, sendo esta última a dosagem máxima recomendada.

Esse procedimento pode ter seus efeitos colaterais, conforme explicado por Eduardo:

— Os efeitos colaterais são os mesmos, por exemplo, em relação aos hormônios femininos, os mesmos que a pessoa cis feminina tem quando usa anticoncepcional. E a da testosterona são os mesmos efeitos que a pessoa cis masculina tem quando, por exemplo, ela não produz.

Por esses fatos trazidos neste capítulo, pretendemos trazer a consciência de um acompanhamento com os profissionais da área da saúde. Que estão sempre aptos a tomar a melhor decisão e auxiliar da melhor forma:

— Quando você faz por conta própria, você não tem certeza do que você está fazendo. Você não tem ninguém com quem compartilhar a responsabilidade. Você não tem ninguém para lhe dizer com conhecimento de causa, se o caminho é o de menor risco ou não. Quando você faz acompanhamento médico, você tem alguém com quem compartilhar suas dúvidas. Alguém com quem você pode discutir detalhes. Expor o que preocupa você. E trabalhar suas próprias emoções no processo.

Durante esses 33 anos de experiência Eduardo, durante a nossa conversa, começa a lembrar dos seus pacientes, com mais de 800 pacientes transgêneros ele contabilizou duas mortes por suicídio. E frisa que na comunidade cisgênero não houve nenhum óbito registrado. O fato é que a comunidade transgênero sofre com a sociedade intolerante e por isso é necessário a terapia.

— Teve uma paciente que até a última consulta comigo nunca tinha pensamentos suicidas e estava aparentemente bem. Após o encontro houve sua morte por suicídio. Segundo a família, a paciente tinha abandonado a terapia há sete meses.  O especialista enfatiza a importância do acompanhamento psicológico durante esta fase.

Seguindo o ponto apresentado pelo endocrinologista Eduardo Mundim, a psicóloga complementa enfatizando que o papel do psicólogo é estar sempre disponível para orientar e auxiliar nas questões relacionadas à identidade e ao bem-estar da pessoa:

— Portanto, se uma pessoa não se sente minimamente segura em sua jornada e se ela não possui uma base sólida de entendimento para lidar com todas essas complexidades, ela pode se tornar vulnerável. Isso abre a porta para questões psicológicas, sociais e familiares, além de outros fatores que podem se interligar e levar a transtornos mentais graves. A psicóloga destaca, assim, a importância de um acompanhamento psicológico adequado para garantir o suporte necessário durante esse processo de autoconhecimento e transição de gênero.

Crédito das fotos: Autor
Capítulo 09 do livro-reportagem: Pontapé inicial: times, atletas e campeonatos de futebol trans no Brasil

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