Do caso de amor não correspondido com a bola à descoberta do atletismo

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Como comecei o capítulo an­terior afirmando que “ninguém vira maratonista da noite para o dia”, o que me levava a crer que eu po­deria ser capaz de passar algumas horas correndo ao lado de um atleta cujo currículo já somava quase 200 provas de no mínimo 42 km de distância?

Acho que posso me considerar um camarada in­sistente, mas sempre muito consciente. Como bom bra­sileiro que sou, minhas primeiras tentativas de sucesso esportivo foram no futebol. Jamais vou me esquecer dos anos felizes de minha infância no interior de Goiás. In­centivado por meu saudoso pai, o bancário e professor universitário Hermes Pereira Dourado (1942-2004), dei os primeiros chutes na bola na sede da Associação Atlé­tica Banco do Brasil em Rio Verde, minha cidade natal.

O apoio total nos estudos, na arte e nos espor­tes foi a forma que o meu inesquecível “gordinho” en­controu de proporcionar aos três filhos tudo aquilo a que ele não pôde ter acesso na infância e na adolescên­cia. Precisando trabalhar desde os oito anos de idade para ajudar nas contas de casa, ele nunca praticou ati­vidades físicas e sequer aprendeu a andar de bicicleta.

O treinador daquela molecada da AABB se chamava Pedro Luiz Guedes (1944-2013), mas era conhecido por todos pelo apelido de “Pierre” – e, diga-se de passagem, ficava muito nervoso quando alguém o chamava pelo nome de batismo. Da beira do campo de futebol society ou da quadra de futsal, arran­cava alguns dos seus poucos fios de cabelo a cada lance infeliz que eu protagonizava.

Foto 14 - Nesta foto sou o primeiro à esquerda entre os agachados, ostentando uma belíssima franja (crédito: “arquivo pessoal”)

Tentei a sorte atuando como atacante, lateral, zaguei­ro e, por fim, no gol. E qual não foi a minha decepção durante uma viagem que fizemos para uma edição da Jornada Espor­tiva Estadual de AABB (Jesab) em Anápolis? Não me lembro ao certo o ano deste torneio, apenas que foi no início da déca­da de 1990 e que eu era o único goleiro “de ofício” no grupo formado pelos garotos que podiam participar da competição. Era a minha chance de brilhar e finalmente conquistar a con­fiança do técnico e dos meus colegas de time! O problema é que o Pierre não quis “pagar para ver” e preferiu improvisar o lateral-esquerdo Erasmo, vulgo “Careca”, como dono da camisa 1. Até que ele não se saiu mal na função, porém o res­to da equipe não correspondeu e acabamos eliminados logo na primeira fase daquele campeonato. Voltei para Rio Verde com duas tristezas na bagagem.

Sorte diferente eu tive com a turma do meu colégio, a Cooperativa de Ensino de Rio Verde (Coopen), na disputa do Campeonato Rio-Verdende de Futsal Mirim de 1993. Sob co­mando do professor João “Paraná” Carvalho do Nascimento, o escrete era uma máquina: o gigante Maurício Costa debai­xo das balizas; Marcelo Turbay fazendo gol de tudo quanto era jeito; Gabriel Barros e Gustavo Borba esbanjando veloci­dade e habilidade. Do banco de reservas, testemunhei aque­la garotada fazer história e faturar o título de forma invicta. Não tenho dúvidas do quanto fui importante para aquela conquista, pois era eu quem dava carona ao Maurício – que atualmente mora em São Paulo e neste ano de 2018 foi o can­didato a vice-governador lançado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Um baita exemplo de humildade, resigna­ção e espírito de grupo!

Foto 15 - Paraná, eu, Bruno, Marcelo e Maurício; agachados: Felipe, Rafael, Danilo, Gabriel e Gustavo (crédito: “arquivo pessoal”)

Também me arrisquei em outras modalidades: hande­bol, tênis e até xadrez. Tudo em vão e com desempenho ainda mais pífio. Paralelamente a estas aventuras, seguia tentando me entender com a bola de futebol.

Os anos se passaram. O meu caso de amor não correspon­dido pela “gorduchinha”, não. Fui cursar Jornalismo na Universi­dade Estadual de Londrina (UEL) em 2000 e já cheguei lá com a pretensão de me tornar um profissional da mídia esportiva a partir de 2004, após a formatura. A consciência de que não nasci para ser atleta profissional era ainda mais plena, porém era neste meio que eu queria trabalhar e o estudo haveria de me proporcionar isso.

Nas duas edições do Torneio Intercursos da UEL das quais participei mantive a tradição de “esquentar o banco de reservas”, sendo mais utilizado na função de goleiro-linha – aquele jogador de linha que tem um pouquinho de noção de go­leiro e normalmente entra em quadra apenas nos minutos finais da partida, na base do “tudo ou nada”. A SeleCECA, equipe for­mada por alunos do Centro de Educação, Comunicação e Artes, não chegou nem perto de poder alimentar grandes pretensões nestes campeonatos, mas isso não deixava ninguém chateado porque o que nos interessava mesmo eram as festas universitá­rias que sempre aconteciam depois dos jogos.

Formado e de volta à minha cidade, a carreira profis­sional seguiu rumos diferentes dos planejados e acabei en­veredando pela mídia impressa, passando pelas redações de dois jornais semanários – e nos quais eu precisava redigir di­versos tipos de textos sobre os mais variados assuntos. Apro­vado em um concurso público, ingressei no serviço público federal em janeiro de 2008 e, a partir de então, conciliei esta atividade com a rotina no jornal Tribuna do Sudoeste.

Decidi sair deste emprego pouco menos de cinco anos de­pois. O motivo não era nenhuma proposta financeira mais atra­ente. Muito pelo contrário. O que estava em questão era a realiza­ção de um sonho pessoal: fui convidado a assumir a assessoria de imprensa do Esporte Clube de Rio Verde durante a preparação e a disputa do Campeonato Goiano de Futebol – Série A 2013. Aquela era a temporada em que o time comemorava 50 anos de fundação e, como a meta da diretoria era brigar pelo título, foi montado um elenco recheado de jogadores famosos e com passa­gens por alguns dos principais clubes do futebol brasileiro.

Foram seis meses intensos, acompanhando jogos, trei­nos e viagens da equipe e em contato constante com torcedores e com profissionais do rádio, da televisão e da imprensa on-line. O resultado final do “Verdão do Sudoeste” no campeonato foi exatamente o oposto daquilo que era esperado: rebaixamento. Nada que diminuísse a minha empolgação com aquela experi­ência e a certeza de que é neste ramo que mais gosto de exercer o ofício de jornalista.

Foto 16 - Trabalhando no Estádio JK, em Itumbiara, em mais uma tarde que terminou com derrota do Rio Verde (crédito: “arquivo pessoal”)

E foi naquele mesmo ano que tomei a iniciativa de ten­tar um novo hobby esportivo, a corrida de rua. Quem sabe sem nenhuma bola para me atrapalhar o enredo poderia ser diferente? A coragem que me faltava veio graças ao meu sur­preendente desempenho que obtive no IV Intercâmbio So­cioesportivo do IF Goiano, realizado no mês de setembro no Campus Rio Verde[1]: consegui conquistar duas medalhas de bronze – nos 100 e nos 800 metros rasos –, sendo que os ad­versários que chegaram à minha frente nestas provas eram aproximadamente 10 anos mais jovens.

Foto 17 - Terceiro lugar na prova dos 100 metros: o primeiro pódio é sempre inesquecível! (crédito: “arquivo pessoal”)

Aquilo me encheu de orgulho e descortinou novos ho­rizontes diante dos meus olhos. Para quê continuar insistin­do com a bola, se havia encontrado um esporte no qual não precisaria de habilidade para conquistar os meus objetivos? Bastaria possuir algumas características que nunca me falta­ram: foco, disciplina, persistência, dedicação, força de vontade e umas pitadinhas de teimosia e loucura.

Não perdi mais tempo e decidi começar a participar de um grupo de corrida montado por uma amiga educadora física, a Karina Andrade. Sem um espaço mais apropriado disponível na cidade naquela época, os nossos treinos ocorriam no entorno do Estádio Municipal Mozart Veloso do Carmo.

Menos de dois meses depois, no dia 17 de novembro, eu já participava da minha primeira prova oficial de 5 km, a I Cor­rida e Caminhada Contra o Câncer de Mama[2]. O evento teve renda revertida ao Hospital do Câncer de Rio Verde e contou com a participação de 143 atletas – 96 homens e 47 mulheres. Com o tempo de 24min44s, fui o 54º a cruzar a linha de chega­da e fiquei na 10ª posição entre os 26 concorrentes da categoria “Masculino – 30 a 39 anos”.

Peguei tanto “gosto pela brincadeira”, que fui aumen­tando a frequência dos treinos e a velocidade das passadas. De repente, me vi com um impulso incontrolável de me desafiar cada vez mais. E foi assim que viajei a Goiânia no final de mar­ço de 2014 para a minha estreia nos 10 km, no Dia de Saúde Unimed, uma prova noturna com largada e chegada no Está­dio Serra Dourada e direito a uma “volta olímpica” na parte interna da maior praça esportiva de Goiás. Missão cumprida em 53min03s e ali mesmo decidi que já era hora de planejar a estreia em uma meia maratona.

Foto 18 - ‘Volta olímpica’ no Serra Dourada: o ápice da emoção na minha estreia nos 10 km (crédito: “arquivo pessoal”)

Foi com este propósito que decidi começar a treinar em uma assessoria esportiva recém-criada pela educadora física Valquiria Bellodi. Conheci a proposta do #GENTEQUECORRE no dia 13 de abril, durante a segunda etapa do 9º Campeonato da Escolinha de Atletismo e Fundação Social JP – que consiste em um circuito de corridas de 5 km em bairros da periferia de Rio Verde. Naquele dia, bati meu recorde pessoal nesta distância (22min46s) e cheguei em segundo lugar na categoria “Masculino – 30 a 39 anos”.

Foto 19 - Menos veloz apenas que Adilson Martins e todo orgulhoso no pódio, ao lado do sr. João Pinto (crédito: “arquivo pessoal”)

Passaram-se pouco mais de três meses e lá fui eu para o Rio de Janeiro, onde teria como anfitrião em minha primeira meia maratona um primo muito querido, o Walso. Ele foi o primeiro membro da nossa família a adotar a corrida de rua como hobby para cuidar da saúde e também uma válvula de escape para liberar endorfina e se desligar das tensões do dia a dia. Já tinha algumas maratonas no currículo; todas sem nenhuma preocupação com o relógio. O que importava era curtir a corrida conversando com os amigos e aproveitando ao máximo aquela atmosfera positiva.

Exatamente nesta “vibe”, larguei na Barra da Tijuca e se­gui pela orla fluminense, passando por São Conrado, Leblon, Ipanema, Copacabana, Leme e Botafogo até chegar ao Aterro do Flamengo. A empolgação era tanta, que até resolvi acelerar no último quilômetro e deixei o meu “veterano” para trás: cumpri o trajeto em exatamente 2h00min57s; o Walso, em 2h01min46s. Confesso que fiquei mancando por alguns dias, mas eram dores insignificantes, diante do tamanho da satisfação interior que eu estava sentindo por aquela conquista pessoal.

Foto 20 - Minha primeira prova de 21 Km foi no Rio de Janeiro e teve a companhia de um primo, o Walso (crédito: “arquivo pessoal”)

Naquela noite mesmo encomendei pela internet um re­lógio com GPS para monitorar os meus treinos e as corridas de que viesse a participar a partir de então. Já estava decidido: no ano seguinte, eu voltaria ao Rio de Janeiro para dobrar aque­la distância e, assim, entrar no seleto grupo dos maratonistas. Aquelas duas horas da meia maratona haviam passado muito rápido. Eu queria e precisava de mais!

Os meses de preparação física e psicológica foram in­tensos e de muito sacrifício. Meu primeiro filho, Davi, nas­ceu no dia 31 de outubro; então, tive que me desdobrar para conseguir conciliar os cuidados com ele, os treinos de for­talecimento muscular na academia, os intermináveis “lon­gões” dos finais de semana – treinos de 20, 25, 28, 32 e até 35 quilômetros, percorridos sob os efeitos do sol causticante e do ar seco do Sudoeste Goiano – e algumas viagens para a participação em eventos de corrida nas cidades de Goiânia, Brasília e Uberlândia.

Foto 21 - Em Brasília, com Cristiano, Wagner e Thiago: missão cumprida na Meia das Pontes! (crédito: “arquivo pessoal”)

Mal sabia eu que o perrengue que me esperava no retor­no à “Cidade Maravilhosa” seria muito pior do que o imagina­do. Vou tentar resumir nos próximos parágrafos a minha “via crucis” naquela manhã/tarde de 26 de julho de 2015.

Não consegui dormir bem nas noites dos dias 24 e 25, mas não era por causa da ansiedade, e sim de uma diarreia oca­sionada por uma virose que me atacou justamente naquele fim de semana. Desistir da prova, porém, era algo totalmente fora de cogitação. Eu sabia que aqueles 42 quilômetros seriam bem diferentes do que eu havia planejado, mas não tinha dúvida ne­nhuma de que eu iria percorrê-los!

Como desgraça pouca é bobagem, desconhecia a infor­mação de que o metrô só funcionaria a partir das 7h naquele domingo. Moral da história: eu estava hospedado em um hotel de Copacabana e só consegui chegar ao local da largada, no Re­creio dos Bandeirantes, por volta das 8h20, quando a estrutura já estava até sendo desmontada, pois a largada era pontualmen­te às 7h30. Mas este novo contratempo também não seria moti­vo para que eu jogasse a toalha!

E lá fui eu: dando alguns “trotinhos” quando a dor de barriga dava uma trégua, contando com a solidariedade de barraqueiros que gentilmente me emprestavam os banheiros ao longo do percurso e caminhando na maior parte do tempo. Consciente das minhas limitações físicas, também me hidratei bastante, com água e isotônico. Aproveito esta deixa para fa­zer um parêntese e parabenizar a organização da Maratona do Rio, pois, mesmo tendo largado tanto tempo depois do horário marcado – e só tendo alcançado por volta do KM 30 os últimos atletas que largaram às 7h30 –, fui muito bem servido em todos os pontos de hidratação.

À medida em que a linha de chegada ia se aproximan­do, o número de populares aplaudindo e incentivando os cor­redores na orla da Zona Sul aumentava. Aquela energia mara­vilhosa foi me contagiando. Diria até que ela anestesiava todo o desconforto estomacal que eu estava sentindo.

Foi mágico! Comecei a correr num ritmo bom e a des­frutar daqueles momentos, exibindo e balançando uma ban­deira do grupo #GENTEQUECORRE que também vinha com a inscrição “Rio Verde-GO”. As pessoas que viam aquela cena acontecendo quase seis horas após a largada da prova não ti­nham como imaginar o quanto aquele “maluco” precisou ba­talhar para viver aquele momento e nem poderiam ter ideia do tamanho da felicidade e do orgulho dele por estar conseguindo cumprir a meta mesmo em circunstâncias tão adversas.

O sonho estava se realizando e eu já estava decidido a cra­var na pele aquela conquista. Tatuaria na panturrilha o desenho da silhueta de um corredor ao lado das distâncias cumpridas em pro­vas oficiais (5k, 10k, 16k, 21k e 42k) e acompanhado de uma frase que carrego como mantra na minha vida: “O impossível é questão de opinião!” Por conta de todas as adversidades que surgiram no meu caminho, parecia impossível eu completar aquela maratona. Pois, na minha opinião, não era. E hoje posso contar esta história em uma nova estreia, a como escritor de livros.

Terminei aquela prova com o tempo oficial de 6h02min30s e na posição 3.832 entre os 3.883 homens inscritos no evento, que fazia parte das comemorações pelo 450º aniversário da capital fluminense. Começava ali a minha ainda breve e humilde carrei­ra de maratonista.

Foto 22 - Nem nos piores pesadelos poderia imaginar uma primeira maratona tão sofrida como aquela (crédito: “arquivo pessoal”)

No mesmo dia e local, um certo senhor de 62 anos e pou­co mais de 1,60 metro de altura, fechou em exatas 3h47min38s a sua quinta participação na Maratona Caixa Cidade do Rio de Janeiro. Aquela já era a 117ª prova oficial com 42.195 metros de distância concluída por Nilson Paulo de Lima. No currículo dele até então, também constavam 13 ultramaratonas, com des­taque para a Brazil 135 Ultramarathon (BR-135), uma prova de 217 quilômetros realizada em morros da Serra da Mantiqueira (MG). Nilson encarou este desafio em janeiro de 2011 e precisou de quase 50 horas para finalizá-lo[3].

[1] A Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, criou 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. O Instituto Federal Goiano (IF Goiano) foi uma destas instituições e tem entre as suas unidades o Campus Rio Verde, que até então recebia o nome de Centro Federal de Educação Tecnológica de Rio Verde (Cefet – Rio Verde).
[2] Resultados disponíveis em: http://sistime.com.br/eventos/resultados/?pub=499
[3] Link para o resultado da Brazil 135 Ultramarathon de 2011: https://bit. ly/2J1dn1B.

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Título Original: Do caso de amor não correspondido com a bola à descoberta do atletismo e uma estreia dramática na prova dos 42.195 metros

Crédito das imagens: Diversos, atribuídos em legenda

Capítulo do livro:No caminho eu conto: a trajetória que transformou Nilson Lima em homem-maratona

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