Do jornalismo na fabulação do real: narrativa jornalística e ficção (01)

publicado na Ed_23_abr/jun.2022 por

A CONSTRUÇÃO DO ACONTECIMENTO (Parte 01)

ACONTECIMENTO E NOTÍCIA

Os jornalistas não são observadores passivos dos acontecimentos, mas sim participantes ativos na construção da “realidade” que transformam em notícias. Estas, como lembra Traquina (1999), “acontecem” na conjunção dos acontecimentos com os textos e, por isso, não podem ser entendidas como emergentes dos acontecimentos do mundo “real”.

Traquina (1999) lembra que, “enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento.” A aparência que a “realidade” assume para o jornalista, bem como as convenções que moldam a sua percepção de mundo, impossibilita a construção de uma narrativa inteiramente livre. Traquina (1999) mostra que “as narrativas são elaboradas através de metáforas, exemplos, frases feitas e imagens, ou seja, símbolos de condensação.” Outros fatores influenciam ainda na escolha da narrativa, como os constrangimentos organizacionais. Lembra Traquina que somente inserindo o jornalista no seu contexto mais imediato é possível se entender de fato como se dão as tomadas de decisões no processo de produção de notícias, o chamado newsmaking[1]. Outro fato que conta na escolha da narrativa é o tempo. O trabalho do jornalista é uma atividade toda voltada para cumprimento do fechamento, e isso se dá nas redações dos jornais impressos, bem como nos telejornais e noticiários radiofônicos e até mesmo nos informativos on line.

Assim, lembra Traquina, o eixo central do campo jornalístico é o fator tempo, com o qual mantém íntima e complexa relação[2]. Escreveu Traquina:

pressionadas pela tirania da ‘hora do fecho’, as empresas do campo jornalístico são ainda mais obrigadas a elaborar estratégias para fazer face ao desafio colocado pela dupla natureza da sua matéria-prima: os acontecimentos ...podem surgir em qualquer parte e a qualquer momento [...] face à imprevisibilidade, as empresas do campo jornalístico precisam de impor ordem no espaço e no tempo (TRAQUINA, 1999, p.170, grifo nosso).

Enfim, o espaço é apontado pelo autor como mais um fator que influencia na escolha da narrativa jornalística. Ele cita o estudo de Gaye Tuchman sobre a new net (rede), utilizado pelas empresas jornalísticas na “captura” dos acontecimentos.

Tuchman (1993) aponta três estratégias adotadas pelas empresas para cobrir o espaço: a territorialidade geográfica; a especialização organizacional; e a especialização organizacional e especialização em torno de temas.

No primeiro caso, o mundo é dividido em áreas de responsabilidade territorial, enquanto a segunda estratégia estabelece “sentinelas” em organizações consideradas como produtoras de acontecimentos noticiáveis.

A última estratégia é marcada por uma auto-divisão de secções que preenchem as chamadas “rubricas” do jornal.

Ressaltou Traquina (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 170) que “a conseqüência fundamental da extensão na ‘rede’ é impor ordem no mundo social porque permite que acontecimentos noticiáveis ocorram mais em certas localidades e não noutras.”

No ensaio A política da forma narrativa: a emergência das convenções noticiosas na imprensa e na televisão, Schudson (Apud, TRAQUINA, 1999) argumenta que as notícias têm uma relação com o “mundo real” não apenas no que se refere ao seu conteúdo, como também na forma, isto é, “no modo como o mundo é incorporado em convenções narrativas inquestionáveis e despercebidas, sendo então transfigurado, deixando de ser um tema de discussão para se tornar uma premissa de qualquer conversa.

Schudson (1999) argumenta ainda que as pessoas não veem as notícias como elas acontecem, da mesma forma como os pais não experimentam o dia- a-dia dos seus filhos na escola. Os pais podem apenas se inteirar sobre o que aconteceu por meio do relato dos filhos.

O mesmo, lembra o autor, se dá na relação entre os jornalistas e o público, uma vez que cabe aos primeiros relatar as “estórias” para as pessoas. Por isso, conclui, as notícias não são ficcionais, mas convencionais. Assim, ressaltou:

“as convenções ajudam a tornar as mensagens legíveis. Elas fazem-no de uma maneira que se adapta ao mundo social dos leitores e escritores, porque as convenções de uma sociedade ou tempo não são as mesmas de outra cultura diferente.” (Apud, TRAQUINA, 1999, p.280).

Ainda falando sobre convenções (1999), Schudson observa que algumas delas, mais familiares hoje em dia, são inovações recentes que ajudam a tornar legíveis mensagens culturalmente consistentes e também dissonantes. Segundo o autor (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 280), “a sua função é menos aumentar ou diminuir o valor da verdade que as mensagens transmitem do que dar forma e limitar o campo dos tipos de verdades que podem ser ditas”. Lembrando que essas convenções reforçam certas hipóteses acerca do mundo político, Schudson destaca em primeiro lugar o recurso do parágrafo de abertura, também chamado lead, e da Pirâmide Invertida, que são tidos em jornalismo como superiores ao relato cronológico de um acontecimento.[3]

A adoção do lead como convenção jornalística[4], segundo Schudson (1999), representou uma mudança de condição dos jornalistas, que deixavam de ser estenógrafos ou gravadores, para tornarem-se intérpretes das notícias.

Isso significou, na prática, que o jornalista abandonou sua condição de retransmissor de documentos e mensagens. Seu novo papel de intérprete das notícias possibilitou ao repórter “escrever o que ouve e vê, e sobre o que não é visto nem ouvido ou é intencionalmente omitido.”

Essa nova condição veio a ser reforçada nos anos 20, quando passou a ser comum nos jornais os jornalistas assinarem suas matérias.

Lembra ainda Schudson (1999) que foi no século XX que os repórteres adquiriram uma autoconsciência política e passaram a exercer um papel político mais afirmativo dentro dos jornais, uma tendência contrária ao que ocorria no século anterior, quando exerciam pouca ou praticamente nenhuma presença política, seja enquanto indivíduos ou enquanto grupo.

Essa tendência, de acordo com Schudson (1999), fez com que a mídia construísse um mundo no qual o reino político se tornasse preeminente. “A notícia hoje, como no passado, não só descreve o mundo ‘lá fora’, mas também traduz uma cultura política em pressupostos de representação construídos na estrutura da própria ‘estória’”. (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 291)

Por fim, conclui o autor que as notícias não são formas e sim informações e que também se encontram no negócio de dar instruções para operações desejadas dentro de uma entidade existente. Escreveu Schudson:

“a notícia informa os seus leitores sobre a política, mas de uma maneira específica. O seu significado está nas instruções que tacitamente dá acerca daquilo que se deve atender e como atender [...] pede ao leitor para estar interessado na política, mas na política como a comunidade de jornalistas a concebe.” (Apud, TRAQUINA, 1999, p.292-293).

No ensaio Mito, registo e ‘estórias’: explorando as qualidades narrativas das notícias, os autores S. Elizabeth Bird e Robert W. Dardenne tratam as notícias enquanto narrativas mitológicas que constituem uma prática cultural muito antiga e universal: o contar estórias.

Considerar as notícias como um mito, um ponto de vista que dissolve a distinção entre entretenimento e informação é, no entender dos autores, uma das normas mais produtivas de ver as notícias. “Com isto não queremos dizer que as notícias individuais são como mitos individuais, mas, enquanto processo de comunicação, as notícias podem actuar como o mito e o folclore.”

Lembrando que tanto o mito como o folclore são estruturas impregnadas de valores, os autores argumentam que as notícias não oferecem ao público apenas o fato, mas também “tranquilidade e familiaridade em experiências partilhadas” e que, por meio da narração ritualista dos contos, o que inclui também as notícias, os mitos são “representados, transformados e recriados num ‘processo ritual’”. (Apud, TRAQUINA, 1999, p.266).

O público consome as notícias como sendo um reflexo da realidade, mas também como texto simbólico. Assim como acontece com os mitos, as coisas não são contadas como elas são, mas sim segundo o seu significado.

Concluem, então, que as notícias, a exemplo do que ocorre com os mitos, apresentam códigos próprios que são reconhecidos pelo público. Os autores citam então Barthes (1982) segundo o qual, “sabemos, quando lemos ou ouvimos uma notícia, que estamos numa ‘situação narrativa’ particular que exige um tipo específico de posição para ser compreendido.”

Assim como o mito precisa ser constantemente recontado, e nisso reside sua força, afinal ele somente tem significado nesse contar (Apud, TRAQUINA,1999, P. 267), também as notícias, ou a qualidade mítica das notícias, derivam de uma espécie de “ressonância”, ou seja, a sensação de que muito do que é noticiado são “estórias” repetidas. A essa ressonância, vem associar-se o princípio da consonância, que assegura a codificação em estruturas já percebidas e previstas de acontecimentos considerados diferentes. “As notícias transmitem uma sensação de drama infinitamente repetido cujos temas são familiares e bem compreendidos.” Os autores argumentam ainda que os valores-notícia como o presente, o invulgar, a simplicidade, as ações, a personalização e os resultados apontados pelos jornalistas para que um acontecimento seja transformado em notícia são os mesmos valores que os contadores de “estórias” utilizam na criação de um conto. “As ‘estórias’ nunca ‘refletem a realidade’ e falam de acontecimentos mundanos e quotidianos. Referem-se ao diferente e ao particular que representam, no entanto, algo universal – precisamente como são as notícias.” Enquanto pertencentes a uma cultura e, portanto, sujeitos as suas gramáticas narrativas, os jornalistas também se utilizam de técnicas narrativas específicas, que são dispositivos adotados como formas de organizar a informação, como na adoção da forma da Pirâmide Invertida, com o recurso do lead.

Ao contrário da forma tradicional de “estória”, o lead dispensa o suspense e a Pirâmide Invertida impossibilita a “naturalidade” do texto. Bird e Dardenne citam Scholes (1982), para quem a narrativa, para ser de fato “estória”, tem de apresentar relações de causa e efeito e em progressão lógica, e também Ricouer (1981), que fala da necessidade de as explicações de uma “estória” serem interligadas em um “tecido narrativo”.

A falta de narratividade não implica uma ineficiência na comunicação das notícias. Ao contrário, as notícias de rotina, por exemplo, realizam a função de registro, reforçando o padrão geral simbólico, ainda que os pormenores sejam esquecidos. “Assim, o ‘crime é compreendido como um fenómeno permanente e recorrente e, consequentemente, muito dele é averiguado nos media de uma forma igualmente rotineira.” (Apud, TRAQUINA,1999, p. 273).

Na avaliação de Bird e Dardenne (1999), os jornalistas encontram-se divididos entre duas ideias impossíveis: por um lado, as exigências da ‘realidade’, alcançável por meio das estratégias da objetividade, e, por outro, as exigências da narratividade.

Assim, se defrontam com o paradoxo de que, quanto mais objetivos, menos compreendidos; quanto melhores contadores de “estórias”, melhor compreendidos. “Deste modo, os jornalistas escrevem alguns registos, contam algumas ‘estórias’ e muito que é algo de ambos.” O jornalista contador de “estórias” utiliza valores de “estórias” que retira da cultura, para então reapresentá-los à cultura, se aproximando assim do contador folclórico. Mas também cria “estórias” a partir de acontecimentos, com os quais o público não está familiarizado, ou seja, não possui experiências particulares para aí colocar esses acontecimentos. Nesse caso, os jornais e os outros media estão mais próximos ao que os autores chamam de ‘matriz mitológica’, lembrando que, quando situações assim ocorrem, nas áreas que não são familiares ao público, em geral, este tende a acreditar nos ditos ‘especialistas’ que têm acesso à verdade. Assim,

“o mito, como as notícias, apoia-se na sua autoridade como ‘verdade’. As notícias televisivas, com os seus apresentadores vistos em pessoa pelos seus públicos, têm cooptado o papel do contador de ‘estórias’ e fabricante de mitos tão eficazmente que neste momento é considerado como a fonte de notícias com mais autoridade e, por conseguinte, ‘verdadeira’”. (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 274-275).

Essa questão também foi abordada por Rodrigues (Apud, TRAQUINA, 1999) no ensaio O Acontecimento, que trata da relação mídia e mito, mas ele argumenta que a primeira não se utiliza da narrativa mítica, mas desempenha o papel que um dia foi do mito[5]. Segundo o autor:

“a época moderna fez do pensamento mítico o dispositivo do obscurecimento e da dominação, considerou-o como a cegueira da razão iluminada, como o entrave ao conhecimento positivo da ciência. Ficou assim o homem moderno despojado dos quadros explicativos que organizavam o desenrolar dos acontecimentos do mundo e lhe asseguravam coerência. É neste contexto que o discurso dos media surge para organizar a experiência do aleatório e lhe conferir racionalidade.” (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 33, grifo nosso).

O autor afirma então que a mídia desempenha esse papel de forma especular, “refletindo e integrando num todo os fragmentos dispersos com que é tecida a trama do presente”.

A trama do presente é tecida por acontecimentos jornalísticos, que Rodrigues (1999) define como sendo aqueles dignos de serem registrados pela notabilidade dos fatos, notabilidade essa que se dá pelo excesso, falta e inversão. O registro do excesso é identificado com o funcionamento anormal da norma, seja dos corpos individuais, coletivos e institucionais.

A embriaguez, o massacre, a pena máxima aplicada por um juiz, são alguns exemplos desse registro, em que são identificadas pelo autor,

“todas as figuras do cúmulo e da hybris grega, da desmedida que tanto pode ser celebrizada com a entrada para o Guiness Book como sancionada de maneira extrema pela ultrapassagem do limiar físico da morte ou o limiar moral da condenação.”

O registro da falha é identificado com o defeito, pela insuficiência no funcionamento normal e regular dos corpos.

Pertencem a este registo os acidentes cósmicos e naturais, os cataclismos, as inundações, os terremotos, bem como os acidentes da circulação automóvel, que interrompem o trânsito, e do funcionamento normal do organismo humano.

Lembra o autor (Apud, TRAQUINA, 1999, p.28) que “a falha no funcionamento dos corpos instituídos não é menos notável do que a que ocorre nos corpos físicos e nos dispositivos maquínicos.”

Por fim, o registro de inversão que, por sua vez, vincula-se à máxima jornalística de que um cão morder um homem não é notícia, mas o contrário sim. Observa Rodrigues (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 28) que “todas as figuras da paródia que o destino, que o heimarmene grego nos reserva estão compreendidas neste registo.”

Rodrigues fala ainda em um outro registro que dá conta do que ele define como meta-acontecimento, ou seja, aqueles acontecimentos que somente existem pelo discurso jornalístico. Esses acontecimentos não são regidos pelas regras do mundo natural, mas sim pelas regras do mundo simbólico, o mundo da enunciação. Rodrigues (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 30) nos faz ver que “os meta-discursos são por isso a face perversa da informação, da transformação logotécnica da linguagem em acontecimento dissuasor da explosão do imprevisível no mundo contemporâneo.”

Hackett (Apud, TRAQUINA, 1999) chama a esses acontecimentos de “pseudo-acontecimentos”, lembrando que estes são planejados e provocados previamente, tendo como desígnio primordial o de serem noticiados ou reproduzidos.

Entre esses pseudo-acontecimentos, ele cita as conferências de imprensa e a maioria dos discursos políticos. Preparados para programação mediática, esses acontecimentos não existiriam na ausência dos media.

Citando Altheide e Snow, Hackett (1999) fala em uma “lógica mediática” existente hoje e que contrasta com a atuação dos media em séculos anteriores, quando apenas refletiam a forma das instituições dominantes. Hoje, são os media a força dominante e é a eles que as demais instituições acabam se conformando, o que inclui o processo político, para estar “ligado inextricavelmente à lógica do trabalho dos media que o transformam num prolongamento da sua produção.” (Apud, TRAQUINA,1999, p. 108).

Recorrendo a Molotch e Lester (1999), o autor problematiza o próprio conceito de acontecimento, lembrando que o que conta como “acontecimento” é determinado socialmente. “Os acontecimentos são aquilo a que geralmente prestamos atenção.”

Um acontecimento é uma ocorrência, ou seja, qualquer happening cognoscível, utilizado de forma criativa na demarcação do tempo. Assim, de acordo com a utilidade de cada ocorrência para um determinado indivíduo ou organização com o objetivo de ordenar a experiência, temos um acontecimento.

Assim sendo, Hackett (Apud, TRAQUINA,1999, p. 108) observa que as “pessoas ou instituições diferentes podem ter ‘necessidades de acontecimentos’ distintas, se não mesmo contraditórias, e por isso tentarão ordenar ou definir a realidade de maneiras diversas.”

Excetuando os acidentes e os escândalos – estes últimos vêm a público sempre por fontes não-oficiais, observa o autor que a maioria das notícias são acontecimentos de rotina promovidos pelos detentores dos poderes políticos e burocráticos.

Observa então o autor (Apud, TRAQUINA,1999, p. 108) que “as necessidades de acontecimento’ dos promotores de notícias (fontes políticas ou burocráricas) e dos news assemblers (jornalistas) são complementares.”

Ao abordar o tema “fazendo o acontecimento”, no ensaio As notícias como procedimento intencional: acerca do uso estratégico de acontecimentos de rotina, acidentes e escândalos, Molotoch e Lester (1999) propõem a existência de três agências principais que seriam as responsáveis na atualidade pela constituição dos acontecimentos: os promotores de notícias (news promoters); os jornalistas (news assemblers) e os consumidores de notícias (news consumers). Os primeiros são os indivíduos e os associados que identificam uma ocorrência como especial, sendo ou não para promoção própria ou até para prejudicar a imagem de terceiros. Segundo os autores, (Apud, TRAQUINA, 1999, p.40), “assim, um candidato político pode ‘expor’ a ocorrência de trabalho corrupto de um político rival ou tirar partido dos seus feitos benéficos.” A segunda agência é formada pelos profissionais da mídia que, segundo Molotoch e Lester (Apud, TRAQUINA, 1999, p. 40), “são como que os repórteres-refletores-indicadores de uma realidade objetiva, composta de acontecimentos reconhecidamente ‘importantes’ do mundo.”

Por fim, a terceira agência ou os consumidores de notícias que “assistem a determinadas ocorrências disponibilizadas como recursos pelos meios de comunicação social e criam, desse modo, nos seus espíritos uma sensação de tempo público.”

Em A produção do acontecimento, primeiro capítulo do artigo O retorno do fato, Pierre Nora classifica o acontecimento como um fenômeno típico da contemporaneidade, que surge no último terço do século XIX[6] e cuja condição de existência se dá pela mídia. Nora (1979) enfatiza que “nas nossas sociedades contemporâneas é por intermédio deles e somente por eles que o acontecimento marca a sua presença e não nos pode evitar.” Lembra Nora que, para haver o acontecimento, e, portanto, que este se torne histórico, é preciso que ele se torne conhecido. Escreveu o autor:

“é porque as afinidades entre tal tipo de acontecimento e tal meio de comunicação são tão intensas que eles nos parecem inseparáveis. Como não colocar, por exemplo, a difusão de uma imprensa de grande tiragem, a constituição de uma classe média de leitores pela instrução primária obrigatória e a urbanização do fim do século XIX em relação com os escândalos do início da III República, o caso do canal do Panamá, a importância dada à vida política e parlamentar, a querela sobre a secularização, a rivalidade das nações europeias, em resumo, com o próprio sistema que reveste a vida pública?” (NORA, 1979, p. 181).

Nora argumenta que cabe aos media transformar palavras em atos, dando ao discurso, à declaração, à conferência de imprensa a “solene eficácia do gesto irreversível.”

É a televisão que, segundo o historiador, marca o desconhecido pela novidade que apresenta. Na contemporaneidade, compara, essa mídia atua como o campanário da aldeia.

É pela televisão que o “acontecimento é projetado, lançado na vida privada e oferecido sob a forma de espetáculo.” Ressaltou:

“os mass media, dessa forma, fizeram, da história uma agressão e tornaram o acontecimento monstruoso. Não porque sai, por definição, do ordinário, mas porque a redundância intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica permanentemente o novo, alimenta uma fome de acontecimentos.” (NORA, 1979, p. 183, grifo nosso).

Nora (1979) conclui então que os media têm assegurada uma justiça crescente sobre os acontecimentos ao mesmo tempo em que impõem imediatamente o vivido como história. No capítulo seguinte, intitulado As metamorfoses do acontecimento, Nora traça as diferenças entre acontecimento e fato cotidiano, lembrando que o primeiro pertence a uma categoria bem catalogada da razão histórica, sendo que seu lugar se inscreve nas rubricas do jornal, seja ele de natureza política, social, literária, científica, nacional e ou local. Já o fato cotidiano encontra-se fora de categoria, é inclassificável, enfim, está relegado ao que não interessa, não tem importância.

Apesar dessas diferenças, observa que o imaginário de massa quer enxertar qualquer coisa do fato cotidiano sobre os acontecimentos:

“O imaginário pode, dessa forma, apropriar-se de qualquer fato cotidiano ...fazê-lo atravessar, pelas mudanças de acontecimentos sucessivos, o cabo do acontecimento mais maciço, no momento mesmo em que a história faz sentir sua degradação em fatos cotidianos.” (NORA, 1979, p. 184-185).

Nora acredita que essa é uma consequência da angústia de um tempo que se tornou pleno e uniforme nas sociedades industriais, que criam a necessidade de denominar sempre e em maior número os acontecimentos, por necessidade de consumir o tempo como objeto, por medo do próprio acontecimento. Nora (1979, p. 187) acredita que,

“outrora se tinha necessidade do extraordinário para que houvesse acontecimento e que o acontecimento tende a ser, num hoje que aliás nada possui de absoluto, seu próprio sensacional.”

Para finalizar essa parte, vale citar um exemplo de promoção e construção de um acontecimento retirado do artigo O jornalista atropelado[7], de Felipe Pena. O acontecimento em questão ocorreu no dia 1º de janeiro de 1998, quando entrou em vigor a lei de doação de órgãos no Brasil que determinava que todas as pessoas eram doadoras em potencial de órgãos. Aqueles que fossem contrários à doação deveriam manifestar oficialmente sua posição como não doadores na Carteira de Identidade.

No início da manhã, uma mulher de 22 anos foi atropelada por um caminhão em um esquina de Copacabana e sua morte cerebral foi constatada logo depois no hospital onde foi atendida.

A assessora de imprensa da instituição ligou para um canal de televisão sugerindo a cobertura de um fato que poderia ser histórico: o primeiro transplante a ser feito dentro da vigência da nova lei.

O atropelamento seguido de morte de uma transeunte passaria despercebido pela mídia caso não estivesse vinculado a um acontecimento que merecia destaque na imprensa nacional naquele momento, ou seja, a entrada em vigor de uma lei que se tornou polêmica na época.

O autor descreve então de forma detalhada como esse acontecimento foi construído pela participação de várias pessoas, a começar pela testemunha ocular que relatou o fato ao paramédico que prestou socorro à vítima e passou as informações ao cirurgião do hospital que a atendeu. Depois entraram em cena a assessora de imprensa, que transmitiu a informação ao pauteiro do veículo de comunicação, que sugeriu ao produtor do telejornal a realização de uma reportagem. Este, por sua vez, fez um relatório com as informações que recebeu e encaminhou para o chefe da reportagem, juntamente com um roteiro para o repórter que foi escalado para apurar os fatos e passou a ser a oitava pessoa envolvida na construção da estória.

Com a ajuda do cinegrafista, o repórter foi a campo apurar as informações e retornou para a redação, onde precisou ainda escrever um texto para apresentar ao editor da reportagem.

Como as imagens foram consideradas insuficientes, foi solicitado ao editor de arte que fizesse a reconstituição do atropelamento no computador.

Antes de a reportagem ir ao ar, o editor-chefe ainda fez algumas modificações no texto final que foi lido pelo apresentador do telejornal, o décimo terceiro intérprete do acontecimento. Conclui então Pena (2001, p. 166) que, “no exemplo proposto, o acontecimento assume as diversas cores que os diversos intérpretes dão a ele.”


[1] Para ler mais sobre o tema confira os ensaios O jornalismo e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalístico, de John Soloski, e Controlo social na redação – uma análise funcional, de Warren Breed. In: Jornalismo: Questões, Teorias e “estórias”, org. Nelson Traquina. Vega, 1993, pp. 91-100 e 1999, pp.52-166.

[2] No ensaio Os jornalistas e a sua máquina do tempo, Philip Schlesinger faz uma análise aprofundada da importância do fator tempo na produção das notícias, tomando como estudo de caso a equipe da BBC de Londres (Rádio e Televisão), entre 1972/73. Cf. Jornalismo: Questões, Teorias e “estórias”, org. Nelson Traquina. Vega, 1999, pp. 177-190.

[3] As outras convenções citadas por Schudson seguem na ordem: 2 – que um presidente é o ator mais importante em qualquer acontecimento no qual tome parte; 3- que uma notícia (news story) deve centrar-se, de preferência, num acontecimento único mais do que num acontecimento contínuo ou repetido, ou então, se a ação é repetida, a atenção deve centrar-se mais na novidade e não no padrão; 4- que uma notícia (news story) que cubra um importante discurso ou documento deve citar ou declarar os seus momentos altos; 5- que uma notícia (news story) que cubra um acontecimento político deve exprimir o significado dos atos políticos num enquadramento de tempo maior do que os dos próprios atos. SCHUDSON,M. A política da forma narrativa: a emergência das convenções noticiosas na imprensa e na televisão. In: Jornalismo: Questões, Teorias e “estórias”, org. Nelson Traquina. Vega, 1999, p. 280).

[4] O lead aparece no final do século XIX.

[5] Explica o autor que o mito assegurava o quadro de referência comum da experiência do mundo nas sociedades tradicionais. Embora soubessem que o mito não era verdadeiro, no sentido moderno que damos a esta palavra, os povos antigos acreditavam em seus mitos. Ou seja, não confundiam o que era a verdade do mito com a verdade verificável do mundo. “O mito é assim uma forma vazia de discurso, uma ordem de natureza prescritiva que dita as regras de formulação de experiência, uma forma disponível para todos os investimentos que permanece válida enquanto for actualizada em práticas discursivas rituais históricas. Permanece sempre uma diferença entre o tempo do mito histórico do acontecimento e um diferimento da atualização ritual em relação à totalidade mítica.” RODRIGUES,A.D. O Acontecimento. In: Jornalismo: Questões, Teorias e “estórias”, org. Nelson Traquina. Veja, 1999, p. 33.

[6] Em uma época em que a sociedade começa a se tornar industrial e o acontecimento começa a se aproximar do fato cotidiano. NORA, P. O retorno do fato. In: LE GOFF, J. e NORA, P. (org). História: novos problemas.F. Alves, 1979, p. 184.

[7] PENA, Felipe. O Jornalista atropelado. In: Revista Trama, PPGCOM/Unesa, nº 1, 2001.

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