“Eternal”
Quando iniciamos a nossa conversa com Sthefan percebemos a timidez ou a desconfiança de Gabe (o namorado), mas ainda assim continuamos. Conforme o bate papo foi acontecendo, Gabe foi soltando suas amarras e conversando conosco. Foi abrindo também a sua vida. Ao final entendemos que a história dele — também como homem trans — valeria a pena ser contada. Não imaginávamos como sua vida era tão particular e especial.
Gabe leva sempre um tom mais sério no rosto. Seus cabelos são escuros, sua pele a noite nos pareceu bem clara. O olhar minucioso e extremamente observador atrás de um óculos, que, como muitos, arruma a cada minuto. Seu corpo se manteve (a princípio) ereto, coluna reta. Como todos os outros em alguns momentos pegou as folhas secas para “brincar”.
Fomos aos poucos destinando perguntas também a ele. No começo respondeu de forma pontual. Notava que ele não queria atrapalhar a conversa — mal sabia que em nossa cabeça já estávamos formando a história dele — então suas respostas iniciais eram sempre curtas. Após 20 minutos de conversa, conseguimos tirar as armaduras dele e ter contato com outra narrativa motivadora.
Gabe se incorpora na conversa quando começamos a falar sobre seu relacionamento com Sthefan. Eles trocaram like e deram match no Tinder, entre novembro e dezembro de 2017. E foi nesse momento que a transição foi mais intensa para ele também. Em apenas seis meses, eles conseguiram unir as forças e entender ainda mais os processos de transição. Assim, saiu pela quarta vez do armário, armário certo, pois até o momento ele tinha saído de três armários que não era dele.
Ele, capricorniano, completando seus 29 verões, conta que foi aos 17 anos que começou a notar diferenças em seu comportamento. Aos 17 sua ficha foi caindo, achava que era lésbica, se entendia como bi, mas não sabia ao certo como se identificava. Acreditava, na época, estar “gorda”, o seu corpo era estranho, tinha defeitos, mas não sabia inteiramente o que era. Demorou a descobrir que esse incomodo era com o seu gênero de nascimento. A questão do corpo e gênero é a parte mais difícil de compreender.
E foi depois de presenciar uma situação com um amigo, em 2006, que começaram a vir soluções em sua mente. Viu a roupa de seu amigo, uma calça que ele tinha adorado. Mas, viu que no amigo caiu muito bem, começou a intensificar o seu olhar, reparar mais em seu amigo, aos poucos foi entendendo. Não era porque estava acima do peso, não era porque a roupa não caia bem. A blusa não ficava grande, não ficava pequena. Toda a questão de não se enxergar era porque ele não se reconhecia no corpo feminino.
A calça no seu amigo fica melhor porque ele é homem. A blusa lhe cai bem porque ele é homem. Todas as coisas pareciam melhores porque seu amigo é homem. Não era problema com o peso, com autoestima, toda a sua questão era propriamente com seu gênero biológico, isso era o estopim que o incomodava desde sempre.
De 2006 a 2012, Gabe foi tentando se encaixar no que acreditava ser, mas, eram épocas diferentes. Pouco se sabia e pouco se falava sobre transexualidade masculina, na internet as informações em português ainda eram escassas. Não existia tanto conteúdo quanto nos dias atuais. Consequentemente não tinham tantas pesquisas aprofundando o tema. Isso fez com que ele ficasse sem algumas informações por um período longo. Mas em 2012 tudo começou a fazer mais sentido.
“Eu sou um cara”
Em 2012 entrou na PUC, se encontrou na filosofia, decidiu que seria essa a sua graduação. Como lá tem muita “galera das missangas[1]”, existem muitas rodas de conversa, debates em muitas questões sociais. As questões de gênero, sexualidade e transexualidade começaram a se tornar pauta na época. Foi a partir daí que ele começou a ampliar o seu campo de estudo para assim entender o que realmente era. “Quanto mais você souber quem você é, mais tranquilo você fica e maior a paz de espírito que você tem”.
Acompanhou de perto a transição de um colega da turma. Durante uma festa da faculdade, seu amigo dançou de uma forma solta, sem preconceitos. Sempre teve algo incomodando seu amigo, que a partir daquele momento decidiu deixar de ser ele para se tornar ela. Gabriela foi a sua escolha para o nome social. Acompanhando de perto essa transição, Gabe conseguiu se encaixar ainda mais e encontrar a sua real essência.
A escolha de seu nome se dá por associação ao passado. Como não tem nos registros o seu nome social, decidiu (assim como Sthefan) adotar um apelido que fica fácil das pessoas associarem e assim evitaria (talvez) o preconceito ao chamá-lo. Ainda que as pessoas questionem com seus olhares desconfiados, automaticamente ele responde com certeza e convicção seu nome.
Quando se é uma pessoa trans, ter visibilidade, ser enxergado de forma neutra e natural é de uma importância singular.
Ser invisibilizado é dolorido. Todas as pessoas que diferem do que a sociedade chama de “padrão” sofrem por não se enquadrarem nesse meio. Sofrer pela não aceitação, pela saída do armário e tantas outras coisas que pessoas LGBTQI+ passam é difícil, ser invisível é ainda mais traumático. E essa invisibilidade se propaga em outros meios também. Mas como ele tem sua masculinidade bem definida dentro dele, acaba tapando os ouvidos na hora e no momento certo.
“Minha metralhadora cheia de magoas”
Foi criado numa família machista. Desde pequeno usava roupas masculinas, nunca se “comportou” como uma garota. “Com oito anos eu cortei meu cabelo joãozinho e foda-se”.
Seu tio sem saber da transição, um dia ficou bêbado e começou a conversar com ele coisas que não contava nem ao seu irmão. Depois do bate papo, brincava com o pai de Gabe falando: “ela é amigo, ela é amigo”, tratando ele no pronome feminino e masculino ao mesmo tempo. Com isso, quando houve a sua primeira saída do armário (como lésbica), não foi tão chocante aos familiares, que já imaginavam.
Por ter essa educação um pouco militar, prestou o concurso para PM (Polícia Militar) do Barro Branco. Parte por pressão da mãe — que também queria ser PM, mas acabou sendo médica — parte por vontade própria também. Fez a prova, competiu com 28.321 candidatos, para apenas 131 vagas. Ficou em 55º lugar.
A família se orgulhou por ter passado na primeira fase. A segunda foi o teste de aptidão física. Em um dos testes teve que fazer a avaliação aquática. Por não ser operado, se submeteu a usar maiô, mas passou no segundo teste.
Ao chegar no psicológico não passou. Não sabe explicar até hoje se foi por transfobia ou até mesmo homofobia. Não procurou saber o porquê foi reprovado, pois, tinha certeza que colocaram qualquer informação que não condiz com a realidade. Depois disso não conseguiu — apesar da procura — se colocar no mercado de trabalho, isso traz consigo dores fortes.
Em algum momento da conversa — mesmo com o frio latente – estávamos todos concentrados nas perguntas, respostas, falas aleatórias. Até que essas perguntas pessoais começaram a remexer dentro dele como um liquidificador. Elas vinham rápidas, concisas, as respostas pensativas, encaixadas, como se ele estivesse trabalhando muito antes de responder qualquer coisa.
— Você tem algum sonho Gabe? Perguntamos, encarando-o.
— O Gabe está pensativo. Respondeu Dayane depois de passar um tempinho.
Todos riram, inclusive ele.
— Pior que eu tô! Puta que pariu, é meio que pesado. Responde ele olhando para árvore escura que está em sua frente.
Depois de pensar e repensar em todas as coisas, sua mente ativou, soube o que era seu sonho. Não pensa em algo tão longe, para ele é como se fosse uma ambição. Tem ambições.
Deseja ter um trabalho, deseja ser um homem que chega em casa às oito horas da noite todos os dias cansado, falar sobre serviço, essas coisas. Pois acredita que assim ele pode ter o reconhecimento da mãe. “Eu sei que nunca vai ser o suficiente, eu vou continuar sendo assim uma pessoa que ela não queria que eu fosse. Ah, é um sonho, um sonho assim tão próximo e tão distante”.
“Um noite longa para uma vida curta”
Mas seu jeito suave e sua voz calma demonstram que, mesmo em tempestades, ele consegue se manter calmo. A calma é sua maior arma de combate, assim como o amor, a liberdade, o respeito. Para ele só se consegue pensar, exercer e praticar a diversidade se você for verdadeiramente o que você é. Mostrar para as pessoas que você é um outro ser humano igual, que está disposto a ensinar e aprender. Compartilhar a vida de uma forma leve com todos. “O melhor jeito é ir com amor, se jogar com a alma. Assim a diversidade será propagada e todos vão entender que as diferenças é a verdadeira união das pessoas”.
Quando perguntamos a ele qual a pessoa que ele mais ama, houve um momento de brincadeira, pois novamente ele ficou confuso para responder.
— A pessoa que você mais ama é você mesmo, correto?
Pausa para outro cigarro de Sthefan.
— Não, jamais, eu sou de outra gangue, outra gangue.
Ele que passou por muitos momentos de depressão, momentos esses que não encontrava forças nem em seu amor próprio. Nunca teve apego a nada, mas para não ficar sem uma resposta definitiva, escolheu seus pais, como as pessoas que mais ama.
Não ter apego pode parecer bom, saudável, mas nem sempre é, pois nos momentos difíceis, fortes e dolorosos, ele não tem onde se segurar. Não tem uma força que o faça querer ficar onde está, “não, eu não quero me segurar”.
Assim como a música que mais gosta e se identifica, chamada Musica Eternal da banda Dead can Dance (Mortos podem dançar), não tem um começo, meio e fim, é como se fosse uma música para ser eterna. Um pouco espiritual, batidas constantes e inconstantes, com vozes como se estivessem tocando no fundo da sua mente, no seu subconsciente, enquanto todos os instrumentos vão passando como carreata.
Por essa falta de apego, por essa falta de amor próprio, o seu único apoio nos momentos turbulentos e escuros é a sua covardia. “Nos momentos ruins, ruins mesmo, acho que o que me salvou foi a covardia, sinceramente, porque precisa de muita coragem para você tirar a própria vida”.
Mas ainda assim ele continua sobrevivendo cada dia mais forte, pois, para ele, quando “você” não morre, se torna uma pessoa mais forte, ao ponto de não precisar se sustentar em absolutamente nada. “Mais impulsionado por uma coisa que não eu”. Deixa a subjetividade no ar.
As palavras dele tocam em algum lugar no peito dos três ouvintes. O silêncio torna-se absoluto. Aos nossos ouvidos toda essa melancolia carrega resistência. Entendemos que viver é divino, pois, só assim conquistaremos nossa existência. O desejo de viver se sobressai à vontade de morrer.
Essa é a dor e a satisfação de ser um homem trans para Gabe. Conseguir pegar uma pedra bruta, lapidar o sofrimento, eliminar as coisas ruins, tirar todas as coisas boas e existir assim. Como ele fala: “é uma riqueza dolorosa”. É aprender mil vezes uma mesma coisa, sofrer mil vezes por essa coisa e ser feliz assim. Encontrar a sua razão de existir, o seu porto seguro, ou, ponto cego. Mas nunca deixar de caminhar, ser eterno assim como sua canção.
[1] Ele faz referência às pessoas que cursam a área de humanas.
Crédito das imagens: Thales Manzano
Capítulo do livro: “Sempre foi ele: histórias de homens trans”