Às 8h20, pontualmente, ela sai de casa. Da Rua Prates até a estação Armênia, linha 1-azul do Metrô, são 600 metros – cerca de 8 minutos. A estação fica localizada no bairro Bom Retiro, região que concentra milhares de comerciantes de vestuário nas lojas de preços populares na Rua José Paulino. Também fica a poucos minutos de famosos pontos da cidade de São Paulo como a Estação da Luz, a Pinacoteca, o Sambódromo do Anhembi e o Estádio do Canindé, da Associação Portuguesa de Desportos. Sem contar que da plataforma do metrô é possível observar a Avenida do Estado, principal ligação entre a Grande São Paulo e as cidades de Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (o chamado ABCD Paulista). Da mesma plataforma dá pra olhar o Rio Tietê.
Após subir a escada sentido Jabaquara, são pelo menos vinte minutos até conseguir entrar no primeiro vagão do trem. Em média, só na linha 1-Azul, que cruza a cidade de Norte a Sul, o Metrô transporta 1,4 milhões de pessoas por dia e são considerados horários de pico os períodos o início da manhã e do final da tarde. Enquanto os alto-falantes do Metrô anunciam a velocidade reduzida dos trens e a circulação com maior tempo de parada entre as estações, o fluxo de pessoas continua constante.
— Ainda bem que sempre saio antes do meu horário, gosto de chegar tranquila e tomar um café antes de começar a trabalhar.
Seu uniforme é preto, mas seu Adidas é branco. Sua pele é negra, mas seu cabelo é loiro. Sua maquiagem é delicada e sua postura é firme. Alta, ela se destaca no vagão lotado. Apesar de morar há pouco tempo na capital paulista, já conhece os truques para se equilibrar enquanto o trem anda. As situações são comuns, mas, ao longo de 45 minutos, ela é alvo de olhares curiosos e, em alguns casos, até caretas. As unhas grandes dificultam o manuseio do celular, enquanto dá uma olhada no Facebook durante o caminho, refúgio do mundo real. Quem a vê tão determinada, não imagina a insegurança e o medo. Somente no segundo desembarque, na estação Trianon-MASP, rumo à Avenida Paulista, ela deixa de ser o centro das atenções. Lá fora, por mais que não demonstre desconforto, acende um cigarro para se acalmar. O relógio marca 9h15: meia hora para organizar as coisas até o horário de bater o cartão.
— Ela vai entrar comigo, ok?
Cinco minutos depois, estávamos entrando no seu local de trabalho – um museu – e vamos direto para o subsolo, onde fica o vestiário feminino. Após checar a escala, chegou a hora de arrumar tudo para começar mais um dia. Ela aperta o passo para chegar ao elevador. Primeiro andar. Primeira a chegar. Nas terças-feiras a entrada é gratuita, é o dia mais movimentado da semana. Ela liga os televisores da sala da exposição principal e arruma a faixa que será útil caso haja lotação, assim como na semana passada: mais de cinco mil visitantes.
Aos poucos, os colegas de trabalho começam a chegar. Todos cumprimentam com um sorriso no rosto. Alguns de longe, outros com um abraço.
— Bom dia Lu! Como foi a folga ontem?
São quase 10 horas da manhã, ela vai ao banheiro do lado direito, destinado às mulheres, com a mesma sensação de satisfação sentida na primeira vez. A partir de agora, serão oito horas em pé. O público alcança o primeiro andar do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, para apreciar a exposição Avenida Paulista.
Hoje Luiza foi escalada para organizar a entrada dos visitantes. Assim que o público chega à porta, ela é a primeira pessoa que encontram. Empatia, comprometimento e espírito de equipe são alguns dos pontos altos da personalidade de Luiza que a levaram a conseguir a vaga de Orientadora de Público no MASP. Ela tem na ponta da língua as respostas sobre as instalações do Museu.
— Bom dia, tem mais exposição lá pra cima?
— Bom dia! Sim, temos a continuação dessa exposição no subsolo, o senhor pode descer pelo elevador localizado à direita. Além disso, no andar superior, temos a coleção MASP de Volta aos Cavaletes de Cristal de Lina Bo Bardi.
— Ah, ótimo! Muito obrigado.
— De nada!
Essa é a dúvida mais frequente durante a manhã. Luiza repete a resposta ao menos 20 vezes, com sua voz cativante e sempre sorrindo. Apesar da movimentação contínua, não foi preciso reduzir a entrada de pessoas à sala expositiva. Dezenas de jovens, famílias e casais, de todas as idades e classes sociais, passam por Luiza durante o período matutino, sem nenhum olhar atravessado ou comentário, como havia ocorrido no metrô.
Pontualmente, ao meio dia, ela sai para almoçar. O uniforme a acompanha em sua hora de descanso. O motivo? Orgulho de ser funcionária de uma das mais importantes organizações culturais do país. Atravessa a avenida rumo ao Parque Trianon. Luiza tem um restaurante favorito: o Magnólia Restaurante, onde pode comer à vontade e gastar só metade do seu vale refeição diário. Também escapa dos olhares curiosos e, em muitos casos, maldosos; lá, ela é só mais uma cliente comum saboreando sua refeição. Comida caseira, local aconchegante.
— Essa comida me lembra comida de mãe, por isso adoro esse lugar.
Todos os funcionários a conhecem, ela se senta ao lado do caixa. A cada garfada, um suspiro e um elogio para a refeição. Mas sem muita conversa, pra comida não esfriar. O cardápio do dia é variado: arroz branco, feijão tipo carioca, filé de frango, escondidinho de carne seca, abóbora e costelinha assada.
— Se for pra comer, gosto de comer bem, sem preocupação com a quantidade. Dá pra perceber, né? Fiz uma mistureba no prato!
Assim que termina de comer, levanta e pega uma copinho de café, cortesia da casa. Ainda restam alguns minutos; chama sua companheira de cigarro, Mariana Lopes e senta com ela no super requisitado Vão do MASP. Iniciam uma conversa.
— Você viu Mari, mais uma menina foi morta hoje.
— Mais uma?!
— Já é a terceira essa semana.
Elas estão falando da recorrente violência contra pessoas trans em todo o país: só nos primeiros dias de março de 2017, três travestis foram brutalmente assassinadas. Dandara Kataryne, 42 anos, foi espancada e morta a pedradas em Fortaleza (CE). Paola Bracho, 40, morreu após levar 17 facadas em Campo Grande (MS). Mirella de Carlo, 39, foi assassinada em seu apartamento em Belo Horizonte (MG). Todas na mesma faixa etária de Luiza. A cada crime contra a comunidade trans, ela sente mais medo de ser a próxima.
13 horas, ela retorna ao trabalho. Agora, só na primeira hora da noite para ir descansar. O movimento segue intenso durante a tarde, mas há alguns momentos de ociosidade. Luiza continua com o sorriso no rosto sempre que alguém a cumprimenta ou tira alguma dúvida. Quando as coisas ficam mais calmas, ela atravessa a galeria para bater um papo com os outros Orientadores escalados, que hoje são cinco, contando com ela. Por volta das 15 horas, Luiza me leva ao andar de cima.
— Você não vai ficar o dia todo aqui no MASP sem conhecer a exposição de Lina Bo Bardi, vamos ali em cima rapidinho.
Aceito o convite e subimos. No elevador, ela me conta de um dos dias mais felizes que viveu ali. Era domingo e ela havia sido escalada para operar o elevador. Quando se dá conta, Regina Casé está ao seu lado e, irreverente como sempre, solta um grito de alegria ao notar que Luiza é uma funcionária trans.
— Ela fez uma festa comigo, ficou realmente feliz. Disse que iria elogiar o MASP por promoverem a inclusão de pessoas como eu e que agora gostava ainda mais do Museu.
As últimas horas do dia passam voando e logo o relógio marca 18 horas. Ela vai ao subsolo para buscar suas coisas. Prepara-se, pois terá que enfrentar um caminho hostil até o seu lar. Quando escurece, seu medo aumenta: precisa atravessar a Praça Armênia para caminhar até a Rua Prates, região do Terminal Rodoviário do Tietê. O jeito mais seguro que encontrou foi o de agradar os moradores em situação de rua e dependentes químicos para não sofrer nenhum tipo de assédio. Cigarros, dinheiro, comida. Com essas moedas de troca, ela tem conseguido chegar com segurança em sua casa.
— Na primeira vez que tive que passar pela praça foi terrível. Eu tinha muito medo de fazer esse trajeto, não sabia o que poderia acontecer comigo. Mas daí eu comecei a ser conivente com alguns deles, principalmente com aqueles que mais me assustavam. Então sempre que passo acabo deixando alguma coisa, seja um cigarro, um real ou dois reais. Hoje é mais tranquilo, pois todos me conhecem, mas o medo nunca vai embora.
Há sete meses, desde que começou a trabalhar no MASP, essa é a rotina de Luiza Bruna do Nascimento Souza, 43 anos. Ela é uma das 30 mulheres trans que moram no primeiro Centro de Acolhida Especial para Mulheres Transexuais do Brasil, a Casa Florescer. Também é a primeira funcionária travesti do MASP. Mas para contar essa história, é preciso voltar um pouco no tempo.
Sua mãe, Dona Irene, sempre foi próxima de travestis durante os anos em que viveu no Rio de Janeiro, no bairro do Catete, antiga sede do Palácio da Presidência, berço do militarismo durante a Ditadura Militar, entre 1964 e 1985. Antes mesmo do nascimento de sua filha única, Luiza, em 1973, a vivência da mãe proporcionou à filha um toque especial: o apoio, crucial na história de Luiza, uma vez que a maioria das travestis são expulsas de casa antes mesmo do processo de transição, uso do hormônio e, em muitos casos, cirurgias de redesignação corporal.
— Minha mãe sempre me instruiu muito bem, sempre dizia ‘ó, vai por esse caminho, procure trabalhar e seguir o lado certo da vida’. A preocupação dela sempre foi com o que o mundo poderia me causar, nunca com o fato de eu ser travesti.
Apesar de sempre ter o apoio da mãe, com o pai foi bem diferente. Quando Irene desconfiou que Luiza não era igual outras crianças de sua idade, aos nove anos, chamou o marido para conversar com a filha. Luiza, então, assumiu que gostava de meninos e a reação imediata do pai foi a pior possível: tentou agredir a filha, impedido pela esposa. O que Irene fez por Luiza fortaleceu ainda mais a relação entre as duas. E, ao mesmo tempo, afastou-a do marido. Eles acabaram se separando; daí mãe e filha mudaram para Petrolina, em Pernambuco.
— A nossa vida mudou muito com a separação deles. Até então, quando a minha mãe morava com ele, tínhamos uma vida maravilhosa, e ela nunca teve que trabalhar. Depois da separação eu vi a minha mãe trabalhando de doméstica pra ter como me sustentar. Ela largou tudo por mim.
Aos 18 anos, em 1991, após o término do Ensino Médio, à época ginásio, Luiza decidiu que era hora de ganhar o mundo: Petrolina ficou pequena demais. Para isso, seguiu um dos caminhos mais comuns para as travestis, o mundo dos salões de beleza. Com o curso de cabelereira, viajou o Nordeste em busca de suas ambições. Mesmo com a conclusão de três cursos, ela ainda achava que precisava ir além das fronteiras brasileiras. Muitas de suas amigas travestis lhe falavam como o mundo da prostituição poderia ser luxuoso na Europa.
Após 12 anos atuando como cabelereira, em 2003 ela decidiu conhecer de perto esse novo universo. Luiza vinha avaliando os riscos, os prós e os contras desse novo capítulo de sua vida. Para isso, seguiu o esquema clássico de tráfico sexual para a Europa.
Embarcou como turista à Hungria, com uma passagem de ida e volta, para retornar em três meses, ciente de que deixaria o Brasil com uma dívida para quitar. Além da passagem aérea, o tráfico sexual não arca com nenhuma das despesas relacionadas à estadia e alimentação, tudo fica por conta da trabalhadora sexual. Diferente de muitas travestis que não têm outras oportunidades, Luiza faz questão de repetir que foi ela quem optou por esse caminho, em nenhum momento alguém a obrigou a realizar a viagem.
— Eu não precisava dessa viagem, fui por curiosidade, queria conhecer todo esse glamour que as minhas amigas falavam, da vida com muito dinheiro, perfumes caros, bolsas de marca. Então eu resolvi procurar uma cafetina que eu conhecia, a Danubia. Ela me cobrou 12 mil euros, como eu tinha a metade do valor, ficou por 10. Paguei cinco antes de ir e lá, em dois meses, consegui os outros cinco.
Quando a viagem estava confirmada, Luiza contou para uma amiga de Salvador. Imediatamente, Crystal pediu a Luiza que a apresentasse para a cafetina, também queria realizar a viagem. Após acertar tudo, ambas embarcaram rumo à Itália. Lá as coisas não era fáceis: 18 pessoas para um quarto pequeno, sem luxo e sem aquecimento, o frio intenso. Os programas eram feitos nas ruas, o que dificultou as coisas para garotas como Luiza, que nunca haviam se prostituído. Mas o maior problema dela foi outro.
— A Crystal não aguentou a pressão e fugiu de volta para o Brasil. Daí, como eu que a levei até a cafetina, eu tive que pagar a dívida dela, que era de 12 mil euros, além dos meus cinco mil. Levei dois meses pra pagar a minha parte da dívida, mas a dela foi demorada, demorei um ano. Isso sem contar a pressão psicológica. A cafetina queria que eu falasse onde era a casa da minha amiga, pois ela iria pôr fogo em tudo, iria matar família dela pra deixar recado, uma pressão psicológica horrível pra cima de mim. Mas eu não entreguei ela, só falava “olha Danubia, vamos fazer o seguinte, eu vou te pagar por ela, não precisa disso”, e acabei pagando.
Enquanto esteve nas ruas italianas, Luiza conseguiu outras amizades e, quando terminou de quitar a dívida com Danubia, mudou-se para a Espanha, onde trabalharia em uma casa. Os clientes ficavam sabendo desses lugares por meio da internet e anúncios em jornais.
— Aí já foi bem mais tranquilo pra mim. Era cada príncipe lindo, homens maravilhosos que iam lá. A partir disso, com os contatos que fiz na Espanha, comecei a percorrer os outros países.
O interesse de Luiza pelo circuito cultural europeu começou na quinta série, quando aprendeu sobre a Aurora Boreal. Apaixonada por História e Geografia, sempre tirava notas altas. Durante anos, ela acreditou que isso era apenas uma invenção do livro didático, até que teve a chance de conhecer a Finlândia e ver de perto esse fenômeno natural. Além das belezas naturais da Europa, o primeiro espaço cultural que Luiza conheceu foi a Hungria.
— Meu Deus, é isso mesmo que eu quero para minha vida!
Nesse momento, trabalhar com o universo cultural se tornava o seu projeto de vida. Durante seis anos, ela morou em diversos países: Hungria, Itália, Espanha, Alemanha, Luxemburgo, Rússia e Polônia. Dá pra sentir a emoção em sua voz quando conta sobre os inúmeros museus que conheceu enquanto viveu no continente europeu. Hermitage, um dos museus mais famosos de São Petersburgo, na Rússia, é um deles. Enquanto me conta sobre a obra de Rembrandt, “O filho pródigo”, logo na entrada do Hermitage, é possível notar os pelos de seus braços se arrepiarem. Há um certo toque de choro quando relembra um de seus passeios favoritos enquanto viveu na Alemanha, a companhia de dança de Pina Bausch. Até o túmulo de Dalida, cantora egípcia naturalizada italiana, fez parte de seu roteiro enquanto passava pela França. Na Espanha, não resistiu à famosa peregrinação na cidade de Santiago de Compostela. Basílica de São João e São Paulo, Fontana di Trevi e Rota Transiberiana são outros passeios que Luiza tem o prazer de relembrar.
Apesar de passar tanto tempo fora do Brasil, falava com sua mãe toda semana. No começo de agosto de 2009, porém, descobriu que as coisas não estava bem: Dona Irene não estava conseguindo enxergar direito.
— Fiquei preocupada com minha mãe e pedi que Edna, uma amiga de Petrolina que era médica, fosse vê-la. Após a consulta e a realização dos exames, Edna me contou que minha mãe estava com diabete altíssima, a ponto de começar a deixar ela cega. Daí eu fiquei desesperada, pensando ‘meu Deus do céu, minha mãe que deixou a vida por mim está passando por isso sozinha’, então decidi ir embora. Daí a médica me falou que não daria tempo de depender do SUS, pois ela tinha que fazer um transplante de córnea e catarata, estava com uma visão em 50% e a outra em 30%. Então juntei tudo que eu tinha e fui embora, direto pra casa, tanto que meu voo foi de Frankfurt para Salvador e de lá para Petrolina, sem escala em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Boa parte do dinheiro que eu trouxe foi gasto nos procedimentos cirúrgicos, consultas e remédios da minha mãe, todo o tratamento foi feito em São Paulo, no Instituto de Olhos.
Com a melhora na saúde da genitora, Luiza percebeu que não poderia mais voltar à Petrolina e decidiu mudar para São José do Campos, interior do estado de São Paulo. Lá construiu um salão de beleza de primeira linha com manicures, esteticistas, cabelereiros e o melhor equipamento que o dinheiro podia comprar. Para não se distanciar da mãe, uma vez por mês fazia questão de levá-la para passar um fim de semana com ela.
— Aí começou aquela velha história, totalmente minha culpa, pois não estudei sobre gestão empresarial, não procurei o SEBRAE, não procurei nada. Eu achava que todo dinheiro que entrava era meu, vivia num mundo de Alice no País das Maravilhas. Pagava a passagem de minha mãe, viajava sem me programar, ficava em hotéis caros, comprava a passagem em cima da hora. E foi indo assim. Até o momento que vi todos os móveis do meu salão indo embora, tive que vender tudo pra pagar dívidas com distribuidores, aluguel, água, luz, deixar tudo quitado e só ficar devendo o banco, que na época estava em 80 mil, não sei agora em quanto é que tá.
Vulnerável, Luiza conheceu o Centro de Acolhida por meio da internet e não pensou duas vezes: ligou, ainda em São José dos Campos, para o serviço social responsável pela administração da casa, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, e marcou uma entrevista.
Em maio de 2016, mudou para São Paulo. A Casa Florescer está localizada no Bom Retiro, tem capacidade para abrigar 30 pessoas e é o primeiro Centro de Acolhida destinado a transexuais da América Latina. É administrada pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, em parceria com a Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (CROPH). A casa tem uma estrutura bem elaborada, para oferercer conforto de um verdadeiro lar: são cinco quartos, cada um com três beliches, um refeitório, três salas de atendimento, uma sala de convivência, uma lavanderia e uma quadra poliesportiva.
Na semana do Dia Internacional da Mulher, Luiza me levou para conhecer o local. Entusiasmo e felicidade a cada vez que ela precisou me apresentar às outras pessoas, tanto nela quanto em mim. Como visitante, pude ficar apenas na área de convivência, que divide espaço com o refeitório. A casa tem um design futurista, com janelas redondas e suas paredes externas são pintadas de azul índigo. Há uma grande árvore próxima ao portão e, uns passos à frente, na fachada, um telhado protetor colorido de laranja salamandra.
A quadra poliesportiva fica nos fundos. A sala de convivência fez com que eu me sentisse em casa, a harmonia e a resistência de todas aquelas moradoras me tocou; no interior, as paredes e os móveis têm tonalidade entre o creme e o cinza, e há dois sofás em L.
— O clima aqui é sempre tranquilo, todo mundo tem afinidade. Claro que de vez em quando tem alguma briguinha ou discussão, mas é porque muitas dessas meninas vieram das ruas e demoram pra ter confiança nas outras, então vira e mexe uma acusa a outra de furto, mas no final todo mundo fica bem.
Quando entrei, fui muito bem recebida, tanto pelos funcionários quanto pelas moradoras. Sentei-me com Luiza em uma das mesas, onde algumas meninas começavam a almoçar, para não atrapalhar o papo animado de outras moradoras nos sofás. A Casa Florescer possui um coletivo, o Florescer Cultural, administrado por Luiza e outras moradoras. O projeto propõe intervenções artísticas e pedagógicas como saraus, oficinas de teatro e, no ano passado, promoveu o primeiro Festival Florescer Cultural, em que as moradoras liam textos e poesias sobre as suas batalhas diárias, além de muita música.
Apesar de contar com um segurança, a casa foi alvo de uma tentativa de invasão. No final de 2016, um grupo de homens, moradores do Complexo Prates, Centro de Acolhida para homens em situação de rua e dependentes químicos, localizado na mesma quadra, tentou invadir o local enquanto gritavam palavras ofensivas e transfóbicas. A situação só foi amenizada com a chegada da Polícia Militar.
— Na época eu não trabalhava, fazia dois meses que morava no Florescer. O segurança foi o primeiro a correr e se esconder quando eles tentaram invadir aqui. Depois desse episódio, as coisas ficaram ainda mais tensas na rua. Parecia que a qualquer momento eles conseguiriam invadir a casa. Parte disso se dá porque muitas meninas daqui, quando recebem algum olhar atravessado ou ouvem algum comentário ofensivo, partem para cima. Mas eu sei que a melhor coisa a se fazer é ser simpática com eles, para evitar brigas.
Determinada a trabalhar com registro em carteira, Luiza, ironicamente, encontrou a primeira oportunidade no Complexo Prates, lugar de onde vieram os agressores relatados anteriormente. Registrada, ela fazia de tudo: cuidava da cozinha, da limpeza e dos jardins. Lidava diretamente com 400 homens. Apesar de não ter ficado muitos meses, guarda boas lembranças.
— Demorou mais de um mês pra conseguir um bom tratamento de todos os moradores. Por ser funcionária, a maioria sempre me respeitou, mas havia um grupo de cerca de cinco ou seis homens que ainda resistiam à minha permanência. Do mesmo modo que lidava com eles quando não trabalhava no Complexo Prates, intensifiquei lá dentro, percebi que precisava ser muito simpática e mostrar que ser uma travesti não era um algo ruim, que eles precisassem ter medo ou sentir raiva. Quando eu saí, seis meses depois essa barreira tinha sido rompida, eles entenderam que somos seres humanos e só queremos ser tratadas como tal. Saí de lá quando apareceu a oportunidade no MASP, então o Museu é o meu segundo registro em 43 anos de vida, ou seja, a possiblidade de aposentaria é zero.
O meu caminho cruzou com o de Luiza no final de dezembro de 2016. Era mais uma noite normal para mim; estava no Metrô voltando para casa após a penúltima aula do sétimo semestre da faculdade. Por conta da exaustão, optei por não ler o livro do poeta Sérgio Vaz naquela noite. Se eu não tivesse tomado essa decisão, não teria notado quando Luiza embarcou na estação Paraíso no mesmo vagão que eu.
Ela vestia o uniforme do MASP, o que me causou imensa alegria. “O MASP tem uma funcionária trans! Isso é incrível”, pensei. Luiza, assim como toda travesti, não consegue ser invisível: os traços de seu rosto denotam a sua identidade de gênero. Até a estação em que ela desceu, Armênia, fiquei pensando se deveria abordá-la. Se deveria contar que estava iniciando o meu TCC sobre a inclusão de pessoas trans no mercado formal de trabalho. Além de trans, ela trabalha no MASP e é negra, a felicidade tomou conta de mim. “Ela tá cansada”, pensei, “trabalhou o dia inteiro e agora está em pé, tendo que aguentar os olhares incansáveis, imagina se eu levanto e falo com ela, aí que todo mundo vai olhar mesmo”. No final das contas, continuei sentada e fiquei observando ela ir embora.
Alguns meses depois, no início do oitavo semestre, tomei coragem e fui ao MASP procurar por ela. Era terça-feira, a segunda do mês de fevereiro de 2017. Cheguei na entrada do MASP e questionei se havia uma pessoa trans no quadro de funcionários. Após a confirmação, a segurança a contatou pelo rádio.
— Oi Luiza, você consegue descer aqui na entrada um pouco? Tem uma menina querendo falar com você, ela disse que é sobre o TCC.
Esperei alguns minutos e ela desceu. Para não atrapalhar o trabalho, perguntei se podia esperá-la sair para conversarmos. Ela sorriu e disse que sim. Esperei Luiza por duas horas no vão do MASP, enquanto ensaiava o que iria falar. E se ela ficasse com medo de mim? Só a vi no Metrô e agora estou aqui, na porta do seu trabalho. Eu teria medo se fosse comigo. Seis da tarde, seis e dez, seis e vinte. Ela desceu e veio direto ao meu encontro. Ao mesmo tempo em que explicava o meu tema e o objetivo principal, as barreiras que eu mesma criei simplesmente desapareceram. Luiza, com toda simpatia e delicadeza, disse que seria uma honra fazer parte do projeto.
Para Luiza, São Paulo é a cidade mais preparada para mulheres trans. Aqui elas podem usar o banheiro feminino. Aqui é o centro de migração de travestis. Todas buscam ganhar a vida na grande São Paulo. Mas será que isso basta? A cada travesti morta nas ruas paulistanas, Luiza tem medo. A intolerância a mata a cada dia. A Rede Trans Brasil, instituição nacional de representação trans, aponta que, só em 2017, 25 travestis e transexuais foram assassinadas no país. O medo fez Luiza desistir do amor. Os homens brasileiros a assustam. “Não existe amor para nós travestis”. Há três anos, ela se declara assexuada.
— Queria tanto que você tivesse vindo comigo no Metrô naquele mesmo dia que nos despedimos ali no vão do MASP. Quando entrei no trem, veio um cara do fundo do vagão me olhando com cara de ódio e me disse “seu traveco do caralho, se você descer na mesma estação que eu, eu te mato, vou te moer no pau”.
Fora do MASP as coisas não são fáceis — ela é alvo de olhares, comentários e, às vezes, gestos carregados de preconceito, mas é lá que ela passa a maior parte do seu dia. Enquanto trabalha, não precisa lidar com a transfobia, encontra acolhimento.
Para a vaga de Orientador de Público, que hoje é de Luiza, Leila Maria Silva, Supervisora da equipe de orientadores, recebeu mais de 100 currículos. Desses, sete chegaram à fase das entrevistas. Após seis processos seletivos, Leila decidiu levar em conta o e-mail de Daniel, ex-psicólogo do Centro de Acolhida Especial para Mulheres Transexuais. Nele, havia uma carta de apresentação e o currículo de Luiza Bruna do Nascimento Souza. No corpo do e-mail, Daniel adiantava que Luiza é uma mulher trans.
Durante o processo seletivo, Luiza contou sobre a sua vivência na Europa, deixando claro que foi para lá por meio do tráfico sexual. Os fatos de ter tanta bagagem cultural, ter um projeto cultural (o Florescer Cultural) e de ter morado na Alemanha, conquistaram Leila, que no dia seguinte marcou uma reunião com os diretores do Museu para defender a contratação.
— Tentei fazer a contratação da Luiza o mais normal possível, mas tive que perguntar a opinião dos diretores, uma vez que eles poderiam achar muito impactante para o Museu. Aproveitei para explicar a importância da inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho. Quando a gente vai num fast-food, num shopping, não vemos pessoas trans e, por muitas vezes, essas pessoas acabam se prostituindo. Depois dessa conversa, eles apoiaram de primeira.
Para deixar o ambiente o mais confortável possível para Luiza se sentir bem, Leila conversou com todos os funcionários do Museu, a fim de alertá-los de que, para o MASP, Luiza era uma funcionária como qualquer outra mulher: usaria o banheiro e o vestiário feminino e teria direito a dois domingos de folga. A recepcionista Mariana conta como foi essa reunião:
— Quando a Leila falou que contratou a Luiza, ela falou pra gente, conversou com todo mundo, mais como cuidado do que preocupação, pois temos funcionários idosos. Disse: ela vai usar o banheiro feminino sim. Para mim foi tranquilo, e não sei de alguém que tenha sido contra. Todo mundo foi muito receptivo com a Luiza.
O primeiro dia de trabalho fez a nova funcionária sentir medo. Será que seria aceita? Para adquirir coragem, colocou em prática os macetes de atriz. O primeiro dia. A primeira travesti. Demorou 70 anos para que o Museu contratasse a primeira funcionária travesti. Luiza faz parte da história de um dos museus mais conhecidos do mundo. É, Luiza realmente fez história.
Dia após dia, começou a se sentir em casa. Hoje encontrou o seu lar em seu trabalho. Quando ela foi ao banheiro feminino do MASP pela primeira vez, sentiu um misto de alegria e nervosismo. Era mais uma vitória.
— Trabalhar no MASP é uma das experiências mais incríveis, tudo maravilhoso. O primeiro dia foi de aprendizado, tinha muita coisa nova pra aprender. Aprendi a mexer no rádio comunicador, falar em código QDEC, conquistar os outros funcionários, pois os mais velhos ficaram meio receosos, arredios. Hoje são pessoas que eu conquistei, são pessoas nordestinas como eu, hoje todas as conversas sinceras e francas que tenho lá dentro são com eles. Sempre que tem algum curso lá, eles me avisam: “Lu, vai ter um curso de Renascimento”, “vai ter o de Barroco”, e eu sempre faço todos. Nunca recebi olhares ou gestos ofensivos, nem dos funcionários nem do público.
Quando paro para conversar com os outros funcionários e perguntar de Luiza, só ouço coisas boas. Francisco Soares, o Chicão, é um dos Orientadores de Público mais velhos do MASP, está lá há 11 anos e para ele a contratação de Luiza foi essencial.
— É muito difícil pra pessoas trans conseguirem emprego, a Luiza me conta que ficou muito feliz em conseguir essa vaga. A equipe toda aceitou ela muito bem, ela aprende rápido. É muito simbólico ela estar aqui, nesse Museu, nessa avenida, aqui ela fica visível, todo mundo a vê.
Como Luiza é a primeira funcionária trans do MASP, Henrique Rodrigues, do departamento de Recursos Humanos, precisou realizar diversas consultas para aprender o processo de admissão com nome social. Mas tudo aconteceu de forma rápida e hoje Luiza tem o nome que escolheu usar no crachá. Para Vinicius Flauaus, responsável pelo treinamento e integração dos novatos, Luiza é muito mais que uma funcionária.
— Ela representa o Museu, ela é a cara do Museu. A Luiza tá ali, na frente, ela não fica escondida, não fica em cargo administrativo. Ela tem visibilidade. O MASP dá essa visibilidade como tem que ser, com naturalidade. A Luiza recebe o público, dá bom dia, fica na linha de frente.
Crédito da ilustração: Marcela Saraiva
Capítulo do livro “Transresistência: histórias de pessoas trans no mercado formal de trabalho“