“Eu ainda consigo recordar do nosso último verão (…) memórias que ficam.”
Our last summer – ABBA
Depois de algumas horas de viagem para minhas colegas e pouco mais de uma hora pra mim, chegamos à Serra da Cantareira, lugar bem próximo do nosso destino. Quanto mais perto, mais aumentava o nervosismo e a ansiedade de conhecer a história da nossa primeira perfilada.
Ao chegarmos, fomos muito bem recebidas. A casa nos chamou a atenção, muito ampla e bem decorada: lareira, tapetes, mesa de jantar com muitos lugares, quadros, porta-retratos, lindas cortinas, tudo pensado no estilo europeu.
Janelas de vidro do teto ao chão que nos dava uma visão belíssima da natureza e que permitia à Sophie retomar muitas lembranças, além de ser uma válvula de escape ao tocar em um assunto que dói tanto: a história de sua mãe.
E foi exatamente este momento da entrevista que mais me marcou: ao ser questionada sobre alguma lembrança boa que tinha da sua mãe, ela cai em prantos e extremamente emocionada responde: “Eu não sei… [breve silêncio], a minha mãe era uma pessoa muito boa de coração, ela tirava a roupa do corpo para ajudar os outros, entendeu? E é isso que eu tenho de bom dela […], mas ela se esquecia da família, dos filhos. Ela fazia de tudo por nós de uma maneira errada e isso machuca muito”.
Sua mãe, Donna, viveu por anos cuidando da família e dos filhos. Era empresária e tinha uma ótima condição de vida, até que uma crise abalou seu empreendimento e junto à morte de seu marido, por infarto fulminante, tudo começou a mudar. Não adaptada à nova vida e com a influência de más amizades, procurou outros meios de sustentar seus “luxos” e criar os filhos.
Sophie, a filha mais velha, que ainda morava com a mãe, resolveu dar um basta na situação: “Ela trazia para casa homens para dormir, sendo que eu tinha duas filhas pequenas e aquilo foi me irritando… até que um dia eu discuti com ela. E essa discussão foi feia, aí ela pegou as coisas dela e foi embora de casa. Sobrou pra mim a responsabilidade de cuidar dos meus irmãos”, refere-se aos seus irmãos adotivos Rosie e Rafael, na época com 18 e 13 anos, respectivamente.
Ainda muito nervosa e com as mãos inquietas, a filha conta que a mãe se casou com um cafetão e após um tempo foi presa pela primeira vez, com mais de 50 anos, por estelionato, artigo 171 do Código Penal Brasileiro. Após ser julgada, condenada e cumprir pena de 2 anos, saiu, mas continuou envolvida com o crime até ser presa novamente, aos 61 anos. Com a idade mais avançada e a saúde debilitada ficou muito doente enquanto estava encarcerada: câncer no intestino!
Sophie conta que ela e seus familiares ficaram sem chão ao saber de tudo que vinha acontecendo com sua mãe, e sempre era ela quem ia nas visitas: “Meu irmão nunca quis visitá-la. A minha irmã foi uma vez, passou mal e nunca mais voltou. E eu não achei justo deixar ela lá, sem a visita de ninguém, então eu ia de 15 em 15 dias”.
Com o olhar longe de alguém que revive tudo o que passou, ela explica como era humilhante passar por cada revista em todas as visitas: “a fila é imensa e você tem de chegar um determinado horário senão você não entra. E a revista é terrível, porque eles fuçam toda a comida, reviram tudo. Depois disso você entra nos quartinhos e tira tudo. Tudo, tudo, tudo, até calcinha. Aí você tem de abaixar, chacoalhar pra ver se cai alguma coisa da vagina, enfim, horrível! Eu voltava de lá destruída, não queria ver ninguém, e minha mãe estava cada vez mais debilitada”.
Quando se encontravam, era comum sua mãe contar casos que ocorriam dentro do presídio: briga entre as presas; morte; discussões; rebeliões. Mas um caso que marcou e impressionou muito foi o de uma mãe com depressão pós-parto. Em um determinado domingo, quando chegou para a visita, Sophie percebeu muitos burburinhos sobre o assunto, mas não entendeu muito bem. Ao encontrar sua mãe, ela esclareceu: naquela semana havia entrado uma nova detenta, a mulher teria dado à luz há pouco tempo, gêmeos! Diagnosticada com depressão, a mesma assou os filhos em um forno e serviu ao marido em uma bandeja no jantar. O marido enlouqueceu; a mulher foi presa e morta depois de alguns dias.
Após quatro anos de muito sofrimento, Donna foi liberada e voltou a morar com a filha durante dois anos antes de falecer. Sophie, novamente muito emocionada e em meios às lágrimas, conta que foi aí que ela conseguiu resgatar um pouco da dignidade e do amor dos filhos e netos. Devido à idade avançada e à doença, não pôde voltar a se reinserir no mercado de trabalho, mas ajudava em tudo que estava ao seu alcance e nos afazeres domésticos.
Ao ser questionada em relação ao poder de ressocialização do sistema carcerário, Sophie é rápida em afirmar: “Pelo contrário. Eu acho que ali as pessoas acabam piorando. Aquelas que não têm tanta gravidade, acabam piorando. Então, eu acho que deveriam primeiro aplicar uma lei mais rígida, sem corrupção. Segundo lugar, eles deveriam dividir os delitos, não colocar presos de periculosidade grande, presos de quadrilhas grandes, de tráfico, coisas pesadas, misturado com a sociedade que faz delitos menores. E terceiro, fazer essas pessoas trabalharem”.
Mesmo depois de tudo, Sophie sente que poderia ter feito mais pela mãe, mas ainda assim acredita que ela voltaria ao crime se ainda estivesse entre nós. “Eu vou falar uma coisa que me dói muito falar, mas quando ela veio a falecer, eu agradeci a Deus. Porque ela ia continuar sofrendo e fazendo a gente sofrer. Eu não acreditei em nenhum momento que ela ia melhorar. Quando ela faleceu, eu chorei muito, mas eu achei que a melhor coisa que Deus fez foi levá-la”, conta desviando o olhar ao seu refúgio: a linda paisagem que rodeia a casa.
Hoje, mesmo após passarem 10 anos desde a morte de sua mãe, é como se ainda ficasse uma ferida aberta que dói ao tocar. “Eu acho que superei, mas quando eu falo do assunto eu acho que não. Ainda fica um pouco… Não é mágoa, mas é que mexe com o emocional. Todo mundo erra, todo mundo tem direito a uma segunda chance, mas é que têm situações delicadas que ficam lá e acho que quando você mexe no assunto, vem à tona”, completa com os olhos marejados.
Toda essa bagagem ainda traz consequências para sua vida. Ela sempre foi uma criança com muitos problemas, tinha epilepsia, sofria bullying na escola e não tem lembranças de carinho e cuidado da mãe. E conta o quanto isso interferiu no modo de como ela cria suas filhas: “Eu sempre me senti filha, eu só não me senti amada. Porque eu queria mais dela e talvez isso transferiu para mim com as minhas filhas, eu não sou uma mãe amorosa. Eu sou mãe. Eu sou de dar conselhos, de pegar no pé, ensinar, fazer tudo! Mas eu sinto que preciso ser mais amorosa e não consigo. Eu acho que isso ajudou um pouco”.
Mas como tudo serve como experiência, com um leve sorriso nos lábios, ela conta que se sente uma vitoriosa por tudo que conquistou, pela família que formou, por poder olhar para trás e agradecer a Deus por não ter seguido os passos de sua mãe, mesmo tendo diversas oportunidades de se envolver com atividades erradas, até mesmo a prostituição.
Por fim, muito emocionada, ela deixa uma mensagem em homenagem à sua mãe: “Eu queria poder dizer que eu a amo, sinto muito de a gente não ter tido uma vida como mãe e filha como a gente poderia ter tido, faltou muito, né? O amor dos dois lados. Tanto da minha parte como da dela. A vida nos afastou… Que eu gostaria que fosse tudo diferente, que eu a perdoo e entendo ela em muitas coisas, apesar de na época não ter entendido. Hoje eu entendo muito mais. E onde quer que ela esteja, que ela encontre a paz eterna e seja feliz e, um dia, nós iremos nos reencontrar!”.
Capítulo do livro: “O sol não é mais quadrado: a vida de ex-presidiárias na sociedade”