Marcos Bagno, demolidor do preconceito linguístico

publicado na Ed_03_abr/jun.2017 por

Falar de desconstrução realmente não é uma tarefa fácil. Não seria eu tolo de pensar que umas historinhas sobre casos de preconceito linguístico fariam com que todo leitor aderisse e se tornasse um assíduo defensor ou simpatizante do assunto. Embora ele seja desconhecido por muitos e discreto em sua propagação — pelo menos como forma de preconceito — há um considerável número de intelectuais que discutem e tentam acabar com essa mistificação que gira em torno da língua única.

Um deles é Sírio Possenti, professor titular no Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas, que já publicou dezenas de livros a respeito e é um dos linguistas mais respeitados do mundo atualmente. Para ele, o preconceito linguístico se manifesta “porque todas as diferenças são postas nas balanças culturais. E quem tem mais força, ou poder, decide que os outros estão errados”. Isso faz com que o falante do português não-padrão se sinta acuado e, estranhamente, agradecido quando recebe uma crítica em forma de correção:

— Ele foi convencido de que ele é (está) errado… E porque quer ser certo, adequa-se.

Vítimas de um preconceito invisível, as variações linguísticas vão sendo julgadas como meros desvios de caráter e incapacidade por parte de seus porta-vozes que, impotentes, o aceitam; mas essa hostilidade, consensual na visão de muitos linguistas, tem uma explicação milenar, que faz com que os próprios preconceituosos não a reconheçam, segundo Possenti.

— Talvez porque a língua seja o mais antigo critério de distinção, anterior mesmo à raça e ao gênero.

Eu mesmo já fui um desses: bradava que o negro, por toda desigualdade que carrega consigo desde o nascimento, necessitava de cotas até que nosso sistema se tornasse equânime, mas, em contrapartida, sustentava o discurso de que quem fala errado merecia a posição social que ocupava. Por sorte, diria que acidentalmente, uma frase de Michael Foucault me fez refletir sobre a distinção pelo modo de falar: “O diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber. Isto permite também que os não possuidores de diplomas acreditem não ter direito de saber ou não serem capazes de saber. Todas as pessoas que adquirem um diploma sabem que ele nada lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. Em contrapartida, os que não têm diploma dão-lhes um sentido pleno. Acho que o diploma foi feito precisamente para os que não o têm.”

Em seguida, meu caminho até Marcos Bagno já estava em piloto automático e era apenas uma questão de tempo até que suas obras mudassem minha vida por completo. Professor-adjunto do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB), Bagno é autor de uma das obras mais desconcertantes no meio da linguística: Preconceito linguístico: o que é, como se faz (1999). Sua tese discutida em oito mitos começa quebrando paradigmas elitistas sobre o conceito de língua única, seja contestando a ascensão social por meio do domínio da norma culta ou desmentindo que as pessoas sem instrução falam tudo errado. Essa desmistificação nos ajuda a enxergar os precedentes e raízes do preconceito linguístico.

Bagno é frequentemente atacado como um autor demagógico, que se utiliza dessa temática que envolve pessoas pobres para angariar dinheiro e notoriedade, mas se enganam seus críticos, pois em momento algum ele descarta o português padrão ensinado nas escolas, apenas explicita as distinções sociais com base na língua.

Em entrevista concedida por e-mail, percebemos o quanto essa prática é antiga; os porquês de sua invisibilidade; as maneiras de combater o preconceito linguístico; a posição que as escolas deveriam tomar diante desse polêmico assunto, e nós, não-especialistas, também.

 —  O que é o preconceito linguístico?

— O preconceito linguístico é mais um dos muitos preconceitos que existem na sociedade brasileira. É uma atitude subjetiva que pode se transformar em discriminação explícita, em atos concretos. Trata-se de utilizar a língua como um instrumento de exclusão social, de violência simbólica. No fundo, o preconceito linguístico é uma forma disfarçada de preconceito social: como o machismo explícito, o racismo, o sexismo, a homofobia têm sido combatidos e denunciados nos últimos tempos, muitas pessoas não se sentem mais tão à vontade para externar essas concepções retrógradas. Assim, a discriminação pela linguagem se torna um argumento “aceitável” para, na verdade, exercer uma discriminação contra as pessoas, usando a língua como pretexto. O preconceito linguístico é tão arraigado na nossa cultura que ele une pessoas de todos os espectros ideológicos, desde o esquerdista mais extremado até o direitista mais fascistoide. Só muito recentemente é que as pessoas têm se dado conta da própria existência dessa forma de discriminação, que durante muito tempo ficou invisível e inaudível, fora da consciência, por ter sido tão naturalizada ao longo dos séculos.

— Por que o preconceito linguístico existe?

— A linguagem vem sendo empregada como instrumento de exclusão social desde a mais remota antiguidade. Em sociedades extremamente hierarquizadas, com distinções nítidas entre as classes sociais, o uso da língua entra como mais um dos critérios que compõem a grade de discriminações e de separação de parcelas da população em grupos específicos. O modo de falar das camadas dominantes — essencialmente masculinas, letradas, urbanas e de renda elevada — sempre tem sido escolhido como a forma “correta”, “bonita” de falar a língua. Já em 1540, em sua gramática do português, João de Barros dizia que o modo de falar digno de apreço era o dos “barões doutos”, isto é, dos homens (“barões” é uma forma de “varões”) mais letrados, o que, naquela época como hoje, é uma minoria muito reduzida da população. Assim como o sexo, a cor da pele, a origem geográfica, a orientação sexual, a classe social etc. têm sido empregados como critérios de discriminação, de exclusão e de violência, também a língua (em sociedade multilíngues) ou a variedade de língua têm sido instrumentalizadas para servir de arame farpado a separar quem está dentro, os “barões doutos”, e quem está fora, o resto da população. Essa situação se instalou muito cedo na sociedade ocidental, já entre os primeiros pensadores gregos, que chamavam de “bárbaros” quaisquer indivíduos que falassem qualquer outra língua. Esse pensamento autoritário e excludente se cristalizou na mentalidade ocidental e vigora com força até hoje. Em sociedades mais democráticas, o preconceito linguístico é mais atenuado. Mas numa sociedade doentiamente injusta como a brasileira, ele é um fator poderoso de exclusão.

Por que os professores desconsideram esse debate em sala de aula?

— Não se pode falar de “os professores” de forma generalizada num país tão grande e tão diversificado socialmente como o Brasil. Além disso, as diretrizes oficiais de educação têm incluído o debate sobre a variação linguística e os preconceitos derivados dela há mais de vinte anos, como se pode ver no documento chamado Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados pelo Ministério da Educação em 1997. Como a noção de que a escola tem que ensinar uma “língua certa” é muito antiga (remonta, de fato, à Antiguidade clássica, como já mencionei), a conscientização da própria existência do preconceito linguístico é coisa muito recente e implica uma mudança radical de mentalidade, de definição do que é ensinar língua, e mudanças de mentalidade como essa demoram muito tempo a se efetivar. De todo modo, cada vez mais, nas boas universidades, a formação dos futuros docentes de língua já se faz com atenção para o fenômeno da variação linguística, da mudança linguística e do preconceito linguístico. Os livros didáticos adquiridos e distribuídos pelo MEC também abordam esses pontos. Aos poucos, o debate vai se firmando em sala de aula e podemos prever uma mudança de atitude dos docentes que estão se formando agora.

— Como fazer para colocar esse assunto na atualidade?

— Identificando os casos de discriminação pela linguagem, denunciando-os e combatendo-os com todos os meios possíveis. Infelizmente, hoje em dia, no Brasil, os principais agentes de difusão e perpetuação do preconceito linguístico são os grandes meios de comunicação, o que não causa surpresa, já que eles também são porta-vozes do que existe de mais atrasado, reacionário, retrógrado e autoritário na sociedade brasileira. O apoio inflexível da maioria das grandes empresas de comunicação ao golpe de Estado perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff é a demonstração mais eloquente disso. Os linguistas profissionais tentam difundir novas ideias sobre língua e linguagem, sobre o que é ensino de língua, mas suas vozes ficam abafadas sob o escarcéu reacionário dos jornalistas que servem com fidelidade canina aos interesses dos poderosos. Felizmente, como já disse, a formação docente e as diretrizes oficiais de educação têm abordado de forma direta essas questões, o que já é um grande passo. Afinal, o preconceito linguístico foi difundido durante séculos pela educação tradicional, e se conseguirmos mudar esse quadro numa pedagogia de língua mais atualizada com ideais democráticos já será uma vitória e tanto.

 — Por que esse preconceito é tão invisível?

— Porque ele é muito, muito antigo. Costumo dizer que o preconceito linguístico é uma “religião” mais antiga que o cristianismo, porque foi elaborado e “pregado” quase quinhentos anos antes de Cristo, pelos filósofos gregos e romanos e pelos primeiros gramáticos que se dedicaram a definir o que era “certo” e “errado” no grego e no latim. Com isso, surgiu no senso comum a ideia de que só existe uma forma certa de falar, que existem línguas mais “avançadas” que outras (que seriam “primitivas”), que existe algum lugar no passado onde todo mundo falava “certinho” sem cometer nenhum “erro”, que só a língua escrita dos grandes autores do passado merece ser estudada e aprendida como modelo, que a língua falada é cheia de “erros” e não segue regras e por vai, e vai longe. Essas opiniões, que não têm nenhuma fundamentação científica, que são meras superstições ideológicas, se impregnaram profundamente na cultura ocidental, a tal ponto que mesmo pessoas que lutam contra as outras formas de discriminação se deixam levar por essas ideias antiquadas!

 — Por que o falante da língua inculta, geralmente o mais pobre, aceita ser corrigido e ainda gosta que o corrijam para que ele fale “certo”?

— Primeira coisa: não existe “língua inculta”. O rótulo de “língua culta” é atribuído pelos falantes que pertencem às camadas privilegiadas da sociedade, assim como definem o que é “culto e elegante” na música, na arte, na culinária, na arquitetura, na religião, na vestimenta etc. “Culto” é aquilo que o próprio falante “culto” acha que é “culto”. O desejo de ser corrigido, de saber o que é “certo” ou “errado”, existe em todas as camadas sociais, porque todas as pessoas, mesmo as mais letradas, acreditam que “não sabem falar direito”, porque essa tal língua “certa” foi construída ideologicamente como uma entidade mística e mítica, uma divindade que vive em outra dimensão, praticamente inalcançável pelo falante comum. Obviamente, quanto mais distante das classes dominantes, mais as pessoas acham que seu modo de falar é feio e errado, porque foram convencidas disso pela ideologia dessas mesmas classes dominantes. As pessoas sem acesso ao letramento (isto é, à leitura e à escrita) acreditam que seu modo de falar é errado, porque foram convencidas de que não saber ler nem escrever é quase uma falha de caráter, quando de fato é uma injustiça social, que nada tem a ver com decisões individuais.

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Crédito da imagem: Guilherme Paschoalick

Capítulo do livroSem pobrema: reportagens, perfis e entrevistas sobre preconceito linguístico

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