Capítulo V
Angústias paralelas
O técnico de enfermagem deu início ao plantão daquela quarta-feira com a mente vigilante. Por trás dos equipamentos de proteção individual (EPIs), escondia um semblante entristeci- do. Ao longo da pandemia, o profissional da saúde já havia testemunhado a recuperação de muitos pacientes com Covid-19. Mas a quantidade de vítimas fatais da doença era, de longe, desproporcionalmente maior. Não raro, tão logo colocava os pés em um dos dois hospitais onde atuava, era informado que oito dos 10 pacientes presentes em seu último turno tinham partido para sempre. Em poucos minutos, os quartos já precisavam ser higienizados para dar espaço às pessoas que estavam à espera de um leito de UTI — incontáveis. A rotatividade era de causar arrepios na espinha, como se estivesse diante de um cenário de guerra.
Cada dia era uma avalanche de acontecimentos. Naquele 1º de abril de 2021, o motivo específico por trás da tristeza escondida de Geraldo[1] era uma paciente do Hospital Geral de Guaianases, na zona leste de São Paulo. Conhecida entre os corredores como “a jovem puérpera com coronavírus em estado crítico’’, seu nome era Paloma Costa Silva.
Paloma era uma entre dezenas de pessoas que estavam recebendo cuidados intensivos no hospital. Oito dias antes, em 24 de março, o estabelecimento havia atingido 100% de ocupação dos leitos de UTI para pacientes com coronavírus, assim como outros oito hospitais estaduais e quatro municipais em São Paulo[2]. Não tinha espaço para mais ninguém. A jovem estava internada desde o dia 12 de março. Mas era a primeira vez que Geraldo ficava encarregado de manter os olhos pregados nela em um plantão, anotando em uma prancheta cada sinal de oscilação em seus sinais vitais.
Não precisou de muito tempo no leito para que o profissional se visse tocado por um dos sentimentos mais humanos: a compaixão. De repente, se deu conta de que a tal jovem-puérpera-em-estado-crítico tinha a mesma idade que sua irmã. 20 anos. Podia ser ela ali, pensou. Vez ou outra, enquanto olhava para a parede atrás do leito onde Paloma se encontrava, então intubada e sedada, o técnico que tratava a todos os pacientes como se fossem seus parentes, mas sem se apegar demasiadamente, surpreendia-se a si mesmo com os olhos lacrimejando. Ali, estava pendurada a foto de uma recém-nascida. Com o corpo miúdo, ela dormia. Estava de fralda, com uma das mãos minúsculas sobre o queixo e a outra em cima do braço. Tinha orelhas peque- nas e cabelo, muito cabelo. Era Zoe.
O hospital havia imprimido o registro para consolar a mãe de primeira viagem. Pelo risco de contaminação, pacientes internados nas UTIs de Covid-19 não podiam contar com a presença de seus familiares. Para Paloma, que tinha dado à luz durante a internação, o distanciamento social impediu que segurasse sua filha nos braços. Foi por meio de chamadas de vídeo realizadas no local que conheceu a pequenina. Ainda assim, ficou tão feliz a ponto de emocionar as enfermeiras do outro lado da tela, na UTI neonatal, para onde a bebê teve de ser encaminhada quando nasceu. Por trás da máscara de oxigênio, a jovem esboçou um daqueles sorrisos largos de quem sempre tinha sonhado com a maternidade. “Me tocou profundamente ver a alegria dela”, diria semanas mais tarde uma das enfermeiras, em uma mensagem enviada ao seu noivo, Vinicius.
Foi através de uma chamada de vídeo no hospital que Paloma conheceu sua filha, Zoe. Foto: Acervo pessoal.
Pelos protocolos sanitários de combate à disseminação do vírus, o rapaz de 24 anos também não pôde acompanhar o nasci- mento de sua primeira filha.
Na época, a presença de acompanhantes durante o parto dividia opiniões entre a comunidade médica. Enquanto grande par- te dos hospitais suspendia o direito garantido pela Lei nº 11.108, com a justificativa de risco de contaminação do próprio familiar e dos profissionais de saúde, em setembro de 2020 a OMS emitiu uma recomendação para salientar que todas as gestantes, mesmo aquelas com suspeita ou confirmação de infecção pelo coronavírus, “tinham o direito de um acompanhante de sua escolha, antes, durante e após o parto”[3]. Com um porém: era necessário que os trabalhadores de saúde tomassem “precauções adequadas para reduzir os riscos de infeccionarem eles mesmos ou outros, incluindo o uso apropriado de roupas protetoras”. Em Nota Técnica 9/2020[4], o Ministério da Saúde também afirmou que “o acompanhante, desde que >>assintomático e fora dos grupos de risco para Covid-19<<”, deveria ser permitido nesses casos.
A presença do pai da criança ou um familiar é considerada uma fonte de apoio e força emocional para a mulher à espera de um bebê. Mas, em meio à crise infecciosa, a determinação era vista com preocupação por alguns obstetras. “Eu particularmente sou sempre contra, acho que basta a criança correr o risco de ficar sem a mãe, não precisamos agregar o risco de não ter pai”, pondera Rossana Pulcineli Vieira Francisco, chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP).
Na sala de espera, com o coração apertado e a ansiedade a mil, Vinicius só respirou aliviado quando a incubadora saiu do recinto de operações: Zoe nasceu no dia 16 de março, às 20h57, com 36 semanas, 2,740 kg e 45,5 cm, do tamanho de uma abóbora-paulista. A criança precisou vir ao mundo antes do tempo porque, embora sua mãe estivesse recebendo suporte de oxigênio, o quadro da grávida se agravou de tal maneira que ela passou a respirar feito “um peixinho fora d’água” — como resumiram os médicos à família. Faltaria O2 para a bebê caso ela não fosse retirada a tempo.
A cesárea, segundo o Hospital Geral de Guaianases, ocorreu sem qualquer intercorrência. Zoe nasceu do jeitinho que Paloma sonhava: com cabelo. “Ela tem cabelo, mãe!”, comemorou em uma chamada de vídeo com a família, mediada pelos profissionais da saúde. Vaidosa e aspirante à esteticista, a jovem mãe mal via a hora de ter sua tão desejada filha nos braços, amamentá-la — e, em casa, enchê-la com os lacinhos que havia comprado à beça. Queria tanto sair do hospital que, num certo dia, sua família não lembra exatamente quando, sua agitação foi tamanha que os médicos tinham permitido a visita de um ente querido para acalmar a paciente.
Foi seu noivo, com quadro confirmado de Covid-19 e assintomático (no dia do parto, o laudo do teste ainda estava indisponível), quem a encontrou. Ela estava abraçada à foto de Zoe. O registro era o único bálsamo de Paloma, que disse ao companheiro que que- ria sair dali porque, embora estivesse se sentindo bem cuidada, tudo lhe assustava: o barulho das máquinas trabalhando, a necessidade de oxigênio para respirar, os burburinhos que escutava de que pessoas estavam morrendo por causa do coronavírus no hospital.
Registro do último encontro entre Paloma e Vinicius antes da jovem ser intubada e sedada no hospital. Foto: Acervo pessoal.
Antes de Vinicius chegar ao local, enviou-lhe uma mensagem, pedindo que trouxesse consigo pasta e escova de dentes:
— Quem sabe assim os médicos pensam que eu tô bem e
me dão alta — justificou, esperançosa.
Mas as perspectivas de alta hospitalar pareciam cada dia mais distantes.
Diariamente, por volta das 11h, sua mãe Jailma e Vinicius corriam até o hospital para receber o boletim médico de Paloma. Sofriam na pele a angústia ingrata experienciada por inúmeras famílias que foram obrigadas a acompanhar de longe seus entes queridos em estado grave de Covid-19. Era a hora em que subiam até o quinto andar do estabelecimento de saúde e ali sentiam-se em uma montanha-russa: em um dia, ouviam que o quadro da jovem no pós-parto era “estável”. No outro, que ela havia melhora- do um pouco, mas que iriam continuar com os remédios. E então: “hoje ela piorou, vamos tentar mudar os antibióticos”. Pior: “se continuar assim, infelizmente teremos que intubá-la”.
E agora, era assim que o técnico de enfermagem Geraldo a
via, inconsciente e com um tubo de ar enfiado à garganta.
Ainda assim, o profissional da saúde não deixou de “conversar” com a paciente ao longo daquelas 12 horas de plantão. A equipe fazia isso com frequência. “Seu José, agora vamos dar banho no senhor, viu?”, avisavam a um paciente sedado. “É hora de trocar a medicação, ok?”, diziam a outro, igualmente irresponsivo. Comum entre enfermeiros e técnicos de enfermagem, a prática apoia-se em indícios científicos de que o comprometimento de algumas funções cerebrais e sensoriais não implica necessariamente na inexistência de percepções, como a audição.
— Seja forte que a sua neném tá te esperando aqui fora… —
sussurrou o técnico seguidas vezes à Paloma no dia 1º de abril.
Na noite anterior, a recém-mãe tinha sofrido uma parada cardiorrespiratória. A intercorrência foi revertida em quatro minutos.
Mas a situação da jovem sem comorbidades era cada vez mais preocupante.
O técnico de enfermagem sentia-se aflito. Já havia testemunhado a partida de duas mulheres no pós-parto com Covid-19 até então, uma em cada hospital onde trabalhava. Sabia que aquele plantão, independentemente do que acontecesse nos próximos dias, entraria para a lista dos mais difíceis de sua trajetória.
20 anos. Uma jovem de 20 anos, repetia para si mesmo. Mas pensaria melhor sobre isso depois.
Agora era hora de trocar de turno e ir para casa descansar, porque no dia seguinte o plantão seria em outro hospital. Deixou o leito de Paloma com o coração apertado.
Algumas horas à frente, o sentimento seria experimentado em dobro por Vinicius.
Ao chegar ao Hospital Geral de Guaianases para escutar o boletim diário da noiva, o rapaz de 24 anos recebeu um convite inesperado: disseram-lhe que ele poderia adentrar o leito de UTI.
Diferente da última vez em que havia visto Paloma, quando ela estava agitada para deixar o hospital, naquele dia 2 de abril a jovem mãe estava desacordada. Inchado por causa dos remédios, seu rosto fez com que o motoboy sentisse vontade de chorar ali mesmo, na frente das duas médicas obstetras que o observavam de perto. Sem saber exatamente como agir, fez o que as profissionais da saúde o incentivaram a fazer: conversar com Paloma. Mesmo intubada, ainda era possível vê-la mexer os dedos ou dar mordidas leves no tubo orotraqueal diante de estímulos sonoros.
Seu companheiro desde os 14 anos de idade, Vinicius disse que a amava. Pediu para que fosse forte. Que conversasse com Deus. Que não o deixasse ser pai sozinho — ele, que ao contrário dela não sonhava com a paternidade na casa dos 20, tinha se surpreendido com a euforia que o visitou desde a descoberta da gravidez. Que voltasse logo porque Zoe estava lhe esperando em casa desde o dia 28 de março.
A menina com nome de três letras permaneceu por 12 dias na UTI, onde ganhou peso a partir de alimentação artificial e se recuperou de uma icterícia neonatal, doença que ocorre quando há aumento da concentração de bilirrubina (substância produzida pelo fígado) no sangue do bebê, resultando em pele, olhos e mucosas mais amareladas. A condição afeta 80% dos prematuros, segundo estimativa da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)[5]. A pequena teve alta hospitalar quando dois testes RT-PCR para Covid-19, realizados em semanas intercaladas, tiveram resultado negativo.
Todos aguardavam ansiosos pelo retorno de Paloma.
Mas o motoboy saiu dali cabisbaixo, com os olhos marejados. Sabia que o quadro da noiva era muito sério e que seu coração havia parado temporariamente na madrugada anterior, contudo não conseguia entender por que tinham lhe deixado visitá-la naquela sexta-feira.
Voltou para casa com um nó na garganta.
***
“Como assim liberaram para visitas?”
A cabeça de Deise ficou atordoada com a ligação do Hospital da Luz naquele dia 6 de junho de 2021.
Fazia 11 dias que sua cunhada quase-xará — Denise — estava intubada. Todas as tardes, entre 15h e 17h, a família recebia uma pedrada diferente por ligação telefônica: ora que cerca de 98% dos pulmões da professora de matemática estavam com- prometidos; ora que o coronavírus começava a atacar os seus rins e, por isso, teriam de dar início à hemodiálise, de forma que uma máquina passaria a fazer o trabalho que os dois órgãos não conseguiam mais dar conta, filtrando e limpando o sangue. Que o caso da mulher de 33 anos era tão grave que não havia outro jeito de mantê-la estável se não fosse pela posição de prona, com a barriga voltada para baixo — técnica utilizada para auxiliar pacientes com saturação (nível de O2 no sangue) muito baixa. Que uma bactéria oportunista havia adentrado seu organismo. Que o caso dela era o mais sério da UTI.
Era tudo tão surreal que parecia um filme de ficção científica. Até porque não fazia muitos dias desde que Deise e Denise tinham estado lado a lado: ela, como acompanhante; a segunda, como paciente. Em 22 de maio, foi a cunhada quem saiu às pressas para a maternidade do hospital tão logo os amigos Roberta e Glauber, que deram carona para Denise à tarde, avisaram que Guilherme teria de vir à luz naquele mesmo sábado. O líquido amniótico que envolvia o bebê estava diminuindo cada vez mais.
Padecendo sob os sintomas de um quadro moderado de Covid-19, Israel se esforçou ao máximo para acompanhar o parto do segundo filho do casal — e, desta vez, até conseguiu se levantar da cama, mas foi incapaz de trocar de roupa e seguir em frente (mais tarde, descobriria que quase 50% de seus pulmões estavam comprometidos, embora sua saturação estivesse estável). Era como se tivesse sido atropelado por um trator.
— Eu não consigo, Deise… — avisou o professor de canto à irmã, por uma mensagem de texto.
Deise, sem sintomas de Covid-19, correu à maternidade. Queria ao menos que a grávida soubesse que alguém da família estava à sua espera. Mas, ao chegar lá, a ex-assistente de departa- mento pessoal descobriu que ela, que nunca tinha assistido a um parto na vida, poderia testemunhar o nascimento do sobrinho[6].
A mulher que tinha a mesma idade da cunhada, 33 anos, ficou tão emocionada que, quando o menino finalmente foi retirado do útero da mãe por uma cesárea de emergência, seus músculos se enrijeceram de tal forma que ela não conseguiu sair da cadeira em que estava sentada. Uma das enfermeiras na sala de operações pegou o celular de suas mãos e filmou a chegada ao mundo do garoto. Guilherme nasceu com 37 semanas e 2,650 kg. Assim como Helena, a primogênita de Denise e Israel, tinha a cara do pai: rosto redondo, sobrancelhas finas e orelhas de tamanho médio.
Tão logo o viu, a professora das ciências exatas ficou pasmada:
— Meu Deus, que gene forte esse de vocês! — disse à cunhada.
Ao contrário de sua primogênita de 7 anos, que na maternidade era conhecida como a mais chorona das crianças, o segundo filho fazia jus ao motivo que tinha levado à escolha de seu nome: Guilherme era, de fato, o mais bonzinho entre os recém-nascidos.
O pequeno trouxe consolo para Denise, que há poucos dias havia perdido a mãe para o câncer de mama. Com máscara de proteção no rosto e higiene rigorosa das mãos, ela foi orientada pelo Hospital da Luz a amamentar o bebê, já que até então tinha condições físicas para fazê-lo — e não há evidências da transmissão do coronavírus pelo leite materno[7]¹. Também caminhou com a criança em seus braços pelo quarto, acariciou suas mãozinhas, fez chamadas de vídeo com Israel.
Guilherme, o segundo filho de Denise e Israel. Foto: Acervo pessoal.
Mas só até o dia 23 de junho.
Naquela quarta-feira de inverno, o recém-nascido precisou ser levado para a UTI porque estava regurgitando o leite materno com frequência. Embora um dia de cuidados intensivos tivesse sido suficiente para que Guilherme retornasse para o quarto, a noite da separação coincidiu com a recaída de Denise ao luto.
— Ai, Deise, como você conseguiu viver sem sua mãe? — perguntava repetidas vezes à cunhada.
Deise, cuja mãe tinha falecido há muitos anos em função de uma anemia falciforme, sabia bem que perder a mãe era uma das piores experiências que alguém poderia enfrentar. Era como perder de vista a pessoa que sempre havia estado no mundo desde aquele momento que agora ela testemunhava: quando se abre os olhos pela primeira vez. Tentava reanimar a cunhada com palavras de encorajamento.
Mas a tristeza não era a única coisa que abatia a mulher no pós-parto.
Os sintomas da Covid-19 evoluíam em si de tal maneira que, no dia 25, precisou ser transferida para a UTI.
24 horas depois, foi intubada.
Em poucos dias, transformou-se no caso mais grave do hospital.
De casa, sem poder visitá-la, a família se sentia de mãos atadas.
Queriam estar perto da professora, mas os protocolos sanitários tornavam impossível a concretização do desejo. Foram incentivados, no entanto, a chegar o mais próximo disso: com o aval dos profissionais da saúde, passaram a enviar áudios ao celular de um dos médicos responsáveis por Denise. Em coma induzido, a paciente recebeu as mensagens ao pé de seu leito.
O recurso estava sendo utilizado nas UTIs de diversos hospitais Brasil afora. A medida se apoiava em dados anteriores de casos em que o cérebro de pacientes em coma responderam a estímulos auditivos, embora evidências científicas robustas atrelando a estratégia a benefícios clínicos palpáveis ainda fossem consideradas escassas. Era, contudo, uma forma de também fazer com que os familiares, golpeados pela arma da distância, se sentissem “presentes” no tratamento de seus entes queridos[8].
Assim fizeram os Fajardo Mariano Ludovico.
— Cunhada, sou eu… — anuncia Deise, com um tom de voz baixo e suave — cê tá fazendo muita falta, viu? Cê não tem noção do quanto você é amada, cara. — e enfatiza — Cê-não–tem-noção-de-quantas pessoas me chamando, querendo ajudar, querendo fazer pelo Gui, querendo fazer pela Helena, e pedindo oração por você. Gente que me liga chorando, falando que tá em jejum, que tá clamando. É muita gente que ama você e você-não–tem-nem-noção. Volta, por favor. Fica forte. Luta! — continua, com a voz embargada de choro — O Rael [Israel] tá muito triste. Ele queria poder ficar acampado aí no hospital pra ficar pertinho de você, então volta… Fica forte, fica forte! Luta contra ele [o coronavírus] no nome de Jesus, tá? Te amo.
— Oi, Dê. Não sei se você vai conseguir ouvir isso aqui — Israel respira fundo antes de continuar — Hoje eu já tô bem melhor, e a Helena tá aqui morrendo de saudade de você, perguntando toda hora de você, meu bem… A gente tá conversando todo dia com os médicos. Seus alunos escrevem pra mim todo dia. Tá todo mundo orando muito por você, esperando muito você sair logo dessa. O bebê continua bem, saudável, sem nenhum problema. Continua alegre, comendo bem e a gente tá aqui esperando o seu retorno… tá? Cuida de melhorar e tamo aqui torcendo pra você ficar bem… Beijo, te amo.
— Mamãe! — exclama Helena, primogênita de 7 anos. Seu tom de voz é alto, como se esforçasse para que a mensagem alcançasse os ouvidos da mãe — Quando você volta pra casa? Tô com sau-sau-dade, beijinhos — finaliza, estalando os lábios.
— Oi, Dê. Tô te mandando essa mensagem pra dizer que continua tudo muito bem. O bebê continua bem, saudável, sem nenhum problema — avisa o irmão de Denise, Sergio. Junto à es- posa Suellen, o casal estava cuidando de Guilherme até que Israel se recuperasse da Covid-19 e Denise recebesse alta do hospital — Continua alegre, comendo bem. E… a gente tá aqui esperando seu retorno, tá? Cuida de melhorar e tamo aqui torcendo pra você ficar bem. Beijo, te amo.
— Oi, Dê. É a Suelen. Tô mandando áudio pra mandar notícias do Gui — explica a cunhada de Denise, com a voz calma — Nós fomos na primeira consulta do pediatra. Ele já engordou, cresceu 3 cm, tá tudo bem com ele. Ela mediu a cabecinha, a cabecinha tá no tamanho normal. Deu parabéns, falou que é um meninão muito forte, ele é muito quietinho, ele é muito bonzinho. Do jeitinho que você pediu pra Deus — antes de prosseguir, seca o nariz em meio às lágrimas que já começam a se formar. — Eu tô cuidando muito bem dele, esperando você voltar logo, pra poder dar um cheirinho na cabeça dele, pra poder dar um banhinho, pra poder aconchegar ele no seu colo…porque colo de mãe, você sabe né, colo de mãe não tem igual… Fica forte aí, menina. Eu te amo, viu? E Gui tá com saudade. Eu vou ver se ele chora pra eu mandar um chorinho dele pra você, tá bom? Porque por enquanto é só isso que ele faz, né? Eu te amo, viu? Volta logo.
Da esquerda para a direita: Israel, Denise, Suelen e Sérgio, no “charreata” de Guilherme, em maio de 2021. Foto: Acervo pessoal.
Denise, Israel e as duas irmãs de Israel, Sara e Deise. Foto: Acervo pessoal.
Mas agora, 11 dias após a intubação de Denise, o hospital ligava liberando uma visita ao leito da paciente.
Embora estivessem ansiosos para revê-la, o telefonema inesperado trouxe um misto de sentimentos à família.
Inseguros, sem saber exatamente quantas pessoas poderiam entrar na UTI, mas já suspeitando que apenas uma, Israel, Denise e o pastor-amigo Roger rumaram juntos de carro naquele 6 de junho ao Hospital da Luz, na Vila Mariana.
A noite seria árdua para o trio.
***
Era um sábado, mas parecia uma sexta-feira 13. Assim se sentiram ao chegar ao hospital naquele dia 27 de março de 2021. De longe dava para ouvir o barulho ininterrupto e ensurdecedor da sirene de ambulâncias em alta velocidade. Que estavam entrando e saindo, entrando e saindo, entrando e sa… “Vem cá, isso tudo é caso de Covid?”, perguntaram a um dos seguranças do Hospital Geral de Taipas, na zona noroeste de São Paulo. “Sim, tudo Covid”. E ainda tem gente por aí que acha que essa doença é pouca coisa, pensaram.
Nas calçadas do hospital estadual, havia dezenas de pessoas ajoelhadas, uma em cada canto: algumas orando em voz alta, quase gritando; outras, com o rosto encharcado de lágrimas. A família de Cristina também ia ali toda noite clamar a Deus por sua recuperação desde que a grávida de 36 semanas havia sido internada, apenas sete dias antes.
Com a respiração ofegante e o corpo cansado, a mulher de 34 anos fora levada às pressas ao hospital no dia 20 de março. Um pouco a contragosto porque, tal qual sua família, temia contrair Co- vid-19 se fosse. Não que já não tivesse passado por ambientes médicos antes. Pelo contrário: após sentir febre e tosse, foi a uma UPA, a um hospital e a um AMA. O laudo do teste para detecção do corona- vírus que havia feito estava previsto para sair sete dias após a coleta. Mas não deu tempo de esperar pelo resultado. Precisou buscar ajuda antes.
Ainda assim, sentia medo de estar ali.
Tanto que não aguentou ficar sentada esperando pelo parecer dos exames de eletrocardiograma e tomografia a que foi submetida no local. Incentivada pela família, disse aos recepcionistas que iria comer alguma coisa — na verdade, foi realizar um teste rápido de farmácia. Queria sanar imediatamente a suspeita que os atormentava.
O presságio se confirmou dentro de instantes: embora cientificamente impreciso, o resultado foi positivo para a doença. A mulher de 34 anos sentiu vontade de chorar. Ao pensar nas pequenas Lifanny e Liuanny, de 12 e 4 anos, foi o que fez.
— Eu tô com medo, minhas filhas em casa, não sei o que fazer… — disse com a voz aflita à Nilson, irmão que lhe acompanhou até a farmácia, e ao esposo Wagner.
Mais de 70% de seus pulmões estavam comprometidos. Foi o que os médicos, já com o resultado da tomografia em mãos, comunicaram quando o casal retornou ao hospital naquela mesma noite. Mais tarde, ela também receberia diagnóstico positivo para a Covid-19. Em seu ventre, Leorrany Vitória começava a ficar sem oxigênio.
A criança, cujo segundo nome tinha sido escolhido por Kika para simbolizar a alegria em meio ao luto sombrio e inominável que vivia por seu primogênito assassinado em 2019, precisou vir ao mundo prematuramente. O bebê-vitória nasceu na madrugada do dia 21, com 36 semanas e dois dias, 45 cm e 2,745 kg. Em estado crítico, a mãe só pôde vê-la de longe com as enfermeiras, em braços que não eram os seus. “Wagner, eu achei a bebê a coisa mais linda. Tá mais esperta que eu”, disse em uma mensagem de texto enviada ao marido, depois de ter ficado algumas horas na UTI após a cesárea de emergência. O parto, segundo o Hospital Geral de Taipas, ocorreu sem intercorrências — e sem a presença do esposo, orientado a esperar fora da sala de operações pelo risco de contaminação.
Tão logo voltou para o quarto, contudo, as mensagens que passou a enviar à família eram de tirar o sono de seus entes queridos. “Eu espero, tá muito horrível”, respondeu ao seu tio Edgard no dia seguinte ao nascimento de Leorrany. O ex-paciente oncológico (cujo apoio emocional que Cristina lhe deu durante o tratamento quimioterápico o homem se recorda até hoje) tentou acalmar a sobrinha, dizendo que sua respiração iria melhorar.
Troca de mensagens entre Cristina e Edgard no dia 22 de março de 2021. Foto: Acervo pessoal.
Cristina, que estava recebendo suporte de oxigênio, também reclamava que sentia muito calor e que os enfermeiros demoravam horas para trocar suas vestes. Não sabia, porque ninguém havia lhe explicado, mas o hospital, conforme a instituição informou a este livro-reportagem, estava “reduzindo a manipulação da paciente para evitar complicações” em seu quadro respiratório fragilizado. Movimentos simples poderiam desestabilizar ainda mais o nível de O2 em sua corrente sanguínea[9].
— Não tô aguentando — escreveu a Wagner na madrugada do dia 22, às 4h42. — Já pedi antialérgicos pra tosse. Não tem, ninguém me dá*. Meus pontos [da cesárea] estão gritando — prosseguiu, dois minutos mais tarde.
Procurado, o Hospital Geral de Taipas disse que “não procede a alegação de falta de antialérgico na unidade” e que “todas as medicações prescritas ao caso foram aplicadas”.
O marido de Cristina já estava dormindo, mas pegar o celular pela manhã foi a primeira coisa que fez:
No dia seguinte, seu quadro clínico se agravou e Cristina retornou para o leito de UTI. Logo, logo, a família receberia a notícia angustiante de que não havia outro jeito para ajudar a mulher a res- pirar que não fosse a intubação orotraqueal. O dispositivo mecânico ao qual o tubo é conectado à garganta é capaz de empurrar oxigênio para dentro de pulmões deteriorados, mas a medida é temida pelos danos que causa e pelas reduzidas chances de sobrevivência que proporciona — em 2020, 80% dos intubados no Brasil haviam morrido[10]. Era o último recurso terapêutico para tentar salvar sua vida.
Troca de mensagens entre Cristina e Edgard no dia 22 de março de 2021. Foto: Acervo pessoal.
Valquiria, cunhada de Cristina, estava encarregada de receber os boletins diários do hospital. No início, a dura tarefa havia ficado nas mãos de Wagner e Cristiane, uma das irmãs de Kika. Mas o som do telefone começou a causar um efeito tão for- te sobre os dois que, meu Deus!, sentiam que o coração fosse sair pela boca toda vez que o objeto g r i t a v a.
Em 27 de março, a temida hora chegou — por volta das 18h — e a familiar-âncora não recebeu nenhuma ligação em seu celular. Valquiria achou estranho. Aguardou alguns minutos. Não aguentou mais: sacou o aparelho nas mãos e telefonou para o estabelecimento de saúde. Pediu que a transferissem para o setor de pacientes com Covid-19, onde sua cunhada estava intubada. Do outro lado da linha, uma voz explicou-lhe que o Hospital Geral de Taipas estava enfrentando intercorrências na ala de pessoas com a doença. Mas que ficasse tranquila: estava tudo bem com Cristina e, até o final da noite, dariam uma atualização mais completa.
Duas horas se passaram e nada. A cunhada de Kika pegou o celular e ligou de novo. Mesma coisa — intercorrências, mas
o médico plantonista iria entrar em contato tão logo pudesse. No grupo de WhatsApp da família, uma enxurrada de perguntas ansiosas afligia a mulher de 42 anos. Ela esperou mais um pouco e telefonou outra vez.
Nada novo sob o sol.
Tiane e Wagner não aguentaram esperar. Os dois foram até a porta do hospital naquele dia 27. Se assustaram com o que viram: ambulâncias entrando e saindo, entrando e saindo… Três dias antes, o estabelecimento estadual tinha atingido 100% de ocupação dos leitos de UTI para pacientes com coronavírus[11].
Saíram dali com a mesma informação repassada à Valquiria, mas o dobro de pavor.
Nunca tinham duvidado dos riscos da Covid-19 — embora vissem muitos moradores andando sem máscara no bairro onde viviam —, menos ainda após a internação de Cristina. Mas testemunhar com seus próprios olhos a situação caótica enfrentada pelos hospitais no Brasil, ainda que à distância, deixou-lhes com o estômago embrulhado.
Cristina antes de ser intubada no hospital. Fotos: Acervo pessoal.
[1] O nome foi alterado para preservar a privacidade do profissional, que, até a conclusão deste livro, não obteve retorno do hospital para conceder entrevista.
[2] Fonte: G1 – “Cidade de SP tem 13 hospitais com 100% de lotação dos leitos de UTI para Covid-19” | https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/03/10/cidade-de-sp-tem-13-hospitais-com-100percent-de-lotacao-dos-leitos-de-uti-para-covid-19.ghtml
[3] Fonte: https://www.who.int/news/item/09-09-2020-every-woman-s-right-to-a-companion-of-choice-during-childbirth
[4] Fonte: Nota Técnica Nº 9/2020 – COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS “Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia de Covid-19” | https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uplo-ads/2020/04/SEI_MS-0014382931-Nota-Tecnica_9.4.2020_parto.pdf
[5] Fonte: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/toda-atencao-ao-alerta-amarelo/
[6] Procurado para justificar a decisão, o Hospital da Luz disse por e-mail que “em respeito à privacidade dos pacientes e em cumprimento à Lei Geral de Proteção de Dados, informações de saúde são compartilhadas apenas com próprios pacientes ou respectivos responsáveis legais”.
[7] Fonte: “Amamentação e Covid-19”, Organização Mundial da Saúde (OMS) |https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/breastfeeding-and-covid-19
[8] “Para o paciente, a gente não tem nenhuma comprovação científica de que isso [a reprodução de áudios] traz um benefício, mas há literaturas que colocam como algo indicado. Para os familiares, eu avalio como algo bem positivo, porque eles encontram uma maneira de estar presentes no tratamento”, explicou Thais de Lima Bezerra, psicóloga clínica responsável por uma iniciativa desse gênero no Hospital PUC-Campinas, em matéria ao G1, agosto de 2020. Fonte: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/08/02/covid-19-hospitais-de-campinas-usam-audios-de-familiares-para-auxiliar-no-tratamento-de-pacientes-em-coma.ghtml
[9] Procurado, o Hospital Geral de Taipas explicou que “a troca de roupas foi realizada de acordo com a rotina de higienização — contudo, em virtude do quadro clínico grave, a manipulação foi reduzida para evitar complicações.”
[10] Fonte: “Exclusivo: 80% dos intubados por covid-19 morreram no Brasil em 2020” | BBC |https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56407803
[11] Fonte: G1 | “Cidade de SP tem 13 hospitais com 100% de lotação dos leitos de UTI para Covid-19” | https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/03/10/cidade-de-sp-tem-13-hospitais-com-100percent-de-lotacao-dos-leitos-de-uti–para-covid-19.ghtml
Capítulo V – Angústias paralelas, do livro-reportagem “Maternidade interrompida: Histórias de mulheres grávidas e no pós-parto vítimas da Covid-19”, escrito por Camila Mazzotto de Carvalho.
E-Book disponível para compra em https://editoraflutuante.com.br/livraria/maternidade-interrompida-ebook/
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Muito importante esta amostra do livro ,já comprei ,precisaria ser publicado em “papel” e gritar nas vitrines das livrarias .
Obrigado Maria Cecilia, esperamos que em breve possamos colocar o livro no impresso.