Se antes eu imaginava que sabia aonde estava indo, agora posso afirmar com certeza absoluta que estou mais perdido que Alice no labirinto da Rainha de Copas. O problema? Alice era inteligente e encontrou a saída com a ajuda do Chapeleiro e da Lebre de Março. Eu? Não… Já não vejo o bêbado da Sé há dias, é quase como se ele não fizesse parte da minha imaginação e sim fosse de fato um personagem real que transita entre São Paulo e o País das Maravilhas a pedido da Rainha de Copas, mostrando a fotografia de Alice aqui e acolá, sempre em busca das crianças que desapareceram pela toca do Coelho.
O joguinho que a doutora Claudia me deu, aquele pequeno labirinto em círculos de plástico cujo objetivo é fazer as bolinhas chegarem ao centro, estava no meu bolso. “Parece difícil, mas não é impossível”. Brinquei diversas vezes com ele: em casa, no ônibus, no metrô, no trabalho. Não foi difícil acertar as três bolinhas no centro. Mas, do que estou falando, sou só um jornalista atrasado que tem tempo de sobra para desperdiçar com “joguinhos”. Imagino como seria para a mãe ou o pai que receberam o mesmo brinquedo e se encontram naqueles momentos de completo desespero, a impotência de perder um filho ou uma filha e tudo que lhes resta é sentar no sofá de casa, mãos atadas, e brincar com um mini labirinto. Ao invés da bolinha são seus filhos que precisam encontrar a saída.
Felizmente, para a maioria das famílias, a total complexidade do problema do desaparecimento lhes é desconhecida. Do contrário, ao se deparar com um brinquedo de plástico no lugar de uma solução de fato, cederiam de bom grado a completa insanidade. Quer dizer, a mensagem é bonita, mas é como um cartão de aniversário que você compra numa papelaria e envia pelo correio para alguém que não vê há anos (e nem faz questão).
E, assim como o mini labirinto em círculo, eu estava rodando em círculos pelo problema do desaparecimento. Sempre passando pelo mesmo ponto, uma volta atrás da outra. Completamente perdido… Imagino que foi assim que Alice se sentiu ao cair pela toca do coelho. Aquele abismo profundo, interminável…
… assim como o buraco para o País das Maravilhas, acabei encontrando a luz no fim do túnel… bem, de fato encontrei a saída de “um túnel”.
Saí da estação da Sé e novamente me vi cercado pela atmosfera do centro da cidade, da qual todo paulistano está acostumado. Clima sufocante. Sensação de perigo. Mãos nos bolsos. Os passos apressados. Atrasados, estamos sempre atrasados! O ar continua envelhecido, porém os termômetros da cidade marcavam 29 graus. Dessa vez não estava ali para acompanhar o protesto silencioso da Mães da Sé, afinal eles só acontecem aos domingos. Meu objetivo era outro, há poucos metros de distância da Catedral da Sé. O Ministério Público de São Paulo.
— Você sabia? Eu não sabia. A gente não estuda na faculdade e não entra no Ministério Público pensando o desaparecimento enquanto temática. Vemos o inquérito em que uma pessoa tá morta e não identificada e pode estar sendo procurada como desaparecida. Vemos inúmeros boletins de ocorrência de desaparecimento e acreditamos que todo B.O. leva a uma investigação. A gente vê de forma genérica. Não é assim. Então levamos um susto, porque entre vivos e desaparecidos, estariam ali, presentes, as pessoas que busco ou quero identificar.
Há pelo menos cinco meses que eu tentava marcar uma entrevista com a promotora Eliana Vendramini, também coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, o PLID. Entre nossos desencontros por conta de reuniões de última hora, acreditei que não teria tempo hábil para conversarmos. Foi então que, em um golpe de sorte, conseguimos marcar um novo horário. Quarta, dia 9 de novembro de 2016, às 15 horas.
E lá estava eu, dez minutos antes do horário combinado, seguindo uma das assessoras de imprensa até o conjunto anexo: tivemos que atravessar o MP, sair no estacionamento, dar a volta no prédio, entrar por um corredor estreito para chegar ao elevador que me levaria, novamente, ao nono andar do prédio. Por fim, à sede do PLID.
— Quanto à criança e o adolescente, em especial, o simples boletim de ocorrência normal não leva a investigação, mesmo sendo mega-hiper-blaster-vulnerável. E isso me impressiona. Porque se eu chego numa delegacia e digo: olha, meu bebê de oito meses desapareceu (esse é um caso real nosso de desaparecimento), minha filha de oito anos desapareceu, meu filho de doze, que já é adolescente, desapareceu, o meu de dezessete… que é um número muito maior, o que mais desaparece é jovem, adulto, masculino, com pico na adolescência aos quinze anos e com diminuição aos vinte e oito.
É fácil imaginar os baralhos de cartas, todos reunidos numa sala, sentados ao redor de uma mesa redonda, jogando dominó, enquanto é formada uma pilha de boletins de ocorrência jogados por debaixo da porta. Um olha para o outro, que dá de ombros.
— A Rainha não está no reino hoje… deixa isso pra lá, Cinco…
E então o jogo continua e a pilha cresce, e cresce, e cresce… guarde essa imagem: centenas de pilhas de papel amontoadas numa sala empoeirada e esquecida por todos…
— Desapareceu. Qual é a alegação da polícia? Desaparecimento não é crime, portanto uma portaria (documento de ato jurídico vindo da presidência, que contém instruções acerca da aplicação de leis ou regulamentos) do delegado geral criou a determinação, que você deve conhecer, de fazer BOs para desaparecimento. Já tá errado! Porque? Todo mundo sabe que boletim de ocorrência é um instituto não para a preservação dos direitos, isso é uma… brincadeira, você vai mover o Estado pra preservar direito? Não. O boletim de ocorrência é um instituto para avaliar indícios de autoria e provas de materialidade de um crime. Portanto ele dá início a uma investigação. Você fazendo um BO de desaparecimento dá a falsa impressão à sociedade de que vai haver a investigação. Todo mundo acha isso, até quem não foi lá… graças à Deus! Né? Mas não há investigação.
Não há investigação? Bem, a essa altura do campeonato nem fico surpreso.
— Eu nunca confiei nos soldados da Rainha, sabe? — disse subitamente o Chapeleiro da Sé, à minha direita. Estava com um chapéu Stetsom, daqueles de vaqueiro, verde escuro, e os mesmos trajes esfarrapados de mendigo.
— Cortem-lhe a cabeça! — vociferou a Rainha de Copas, cada vez mais magra e mais abatida, à minha esquerda, mas não havia nenhuma carta ali para obedecer a ordem e ninguém que estivesse disposto a perder a cabeça.
Ora, e não é que as alucinações voltaram?
— Escuta? — dizia Eliane, como se notasse que eu prestava atenção excessiva ao meu redor. Será que ela também os via? — Não é um crime, mas pode ser! Quando eu digo que um vulnerável desapareceu na delegacia há indícios de crime e vamos à materialidade. E muitos deles, como nós provamos aqui, estavam mortos. Por morte violenta. Então o BO. não é a certeza de um crime, é a dúvida sobre a existência de um crime. Não é toda vez que você chega na delegacia e fala: subtraíram para mim coisa alheia móvel? Sub… não! você diz: “olha, minha carteira sumiu”. “Carteira sumiu” vira inquérito; “pessoa sumiu”, não. Olha a gravidade disso! Pode ser um monte de coisas. Sequestro? Pode ser homicídio? Pode ser algum tipo de coação, pode ser algum tipo de ameaça? Pode ser qualquer coisa! Nós precisamos é investigar. Eu não tô dizendo denunciar, eu tô dizendo investigar… e ele mudou. Pergunta sua: e o adolescente, que faz parte do seu estudo? Não inclui porque dá muuito trabaaalho… adolescente dá muuito trabalho… é o que mais desaparece, segundo nossa pesquisa, entre janeiro de 2013 e dezembro de 2015. O que acontece? Dá trabalho? Sim, mas estamos preocupados com o que mais desaparece. E outra, é o adolescente que é mais cooptado, a gente sabe disso, se não é uma criança até onze anos, a partir de onze, para tráfico de pessoas, para tráfico de drogas, em abordagem urbana violenta… onde nós estamos? E até hoje, posso te contar, não é demérito nosso, é uma luta que eu ainda acho que é melhor não judicializar, nós não conseguimos mudar isso. Eles não investigam desaparecimento de adolescente. Eles se calcam muito naquela onipotência do adolescente: “ah quero baladar, eu quero namorar, eu quero ir num lugar que meu pai não deixa, eu quero usar droga então não vou contar, depois eu volto”. Nessa conta aí nós abrimos mão do princípio da primazia do atendimento à criança e adolescente — ela faz uma pausa para respirar fundo — Esse é o Brasil do desaparecimento…
O Brasil do desaparecimento. Interessante. É como se estivéssemos de fato na cidade que fica do outro lado do País das Maravilhas. Alice some daqui e aparece lá e quando ela some lá…
— Então essa foi a primeira notícia que eu vi no seu tema que é gravíssima e que não vai mudar… e tem mais! Só o estado de São Paulo, só o PLID São Paulo, conseguiu isso. Em qualquer outro estado da federação, não há investigação de desaparecimento de vulnerável: criança, adolescente ou pessoa que não possa entender e se determinar… Então, não sei se você sabia disso.
Fiz que sim.
— Você não sabia, né? — perguntou o Chapeleiro.
Fiz que não.
— Assim você deixa qualquer um louco. Nosso trabalho é de atendimento humanizado, assim como eu te atendo porque a gente pesquisa, eu atendo a família porque ela precisa de alguém para olhar. Pergunta: por que a ReDESAP deu errado? O que é a ReDESAP? Foi uma tentativa de banco de dados nacional para crianças e adolescentes desaparecidos. Resposta: porque não era humanizado, além da briga por verba do Ministério da Justiça e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. A verdade é que a mãe, ou parentes, tem muitos pais também, entravam, passavam os dados e ninguém ligava pra eles. Ninguém falava nada. Não tinha um lado contrário. Imagina o desespero? E qual era a maior frase? “Doutora, ninguém me ligou… isso é normal?”, “mas a senhora tá falando que seu filho desapareceu há cinco anos”, “então, mas é normal?”. Essa reiteração foi que nos fez, pelo empírico, chegar ao que estava acontecendo e… ninguém sabia.
Assim nascem os investigadores solitários, tal qual os familiares dos desaparecidos. Sua rotina é interrompida de forma abrupta e eles são jogados em uma busca alucinada por respostas.
— Você tem aquele jornal ali de 2014 — Eliana aponta para um jornal preso na parede por um alfinete, uma edição amarelada da Folha de S. Paulo. Ao lado dessa, menos antiga, outra manchete dizia “137 mil desaparecidos em 2015” — em que nós tínhamos 18 mil desaparecidos declarados como tal em São Paulo e no estado só 51 inquéritos policiais. É uma sub investigação. Essa lógica é empírica e é o cerne da sua pesquisa! Você podia perguntar: pra que serve o BO então? Para uma coisa muito boa, que também não é usado: um banco de dados de todas as crianças, adolescentes, maiores, capazes, doentes, são muitos que estão desaparecidos, mas ela não cruza dados. E a maior prova a gente já deu: a questão do redesaparecimento. O Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio do PLID, apurou que pessoas oficialmente reclamadas como desaparecidas estão sendo enterradas como indigentes sem que seus familiares sejam informados, causando o chamado redesaparecimento. A inconstitucional omissão está documentada e ocorre nos serviços públicos de autópsia da capital, Instituto Médico Legal e Serviço de Verificação de Óbito (SVO), bem como na Polícia Civil, ferindo os direitos fundamentais da personalidade que foi cada cadáver, os direitos da sua família, bem como o direito de informação de ambos. O PLID contatou famílias que procuravam seus parentes há mais de 14 anos, embora o Estado os tivesse localizado em menos de alguns dias do registro do desaparecimento. A perpetuação da dor do desaparecimento, causada pelo poder público, se traduz em inarredável dano moral e ainda gera burocracia para o exercício do luto digno.
Dentre os casos de redesaparecimento não há crianças. Alguns adolescentes entre 17 e 18, mas nenhuma criança, pois chamam muita atenção.
— E ainda está difícil, não digo que não tenha melhorado, porque a dialética foi muito boa. Não foi fácil, tem mudado, mas tá muito longe do ideal quando se fala em procurar pessoas.
Em um artigo escrito por Eliana, ela destaca a importância do banco de dados que é capitaneado pelas Polícias Civis de cada Estado. Segundo ela, o sistema PLID trouxe a possibilidade de observação de quadros estatísticos em tempo real, por faixa de idade, gênero, naturalidade, nacionalidade, local de ocorrência, local de localização, circunstâncias da localização, motivação e tipo de identificação, permitindo uma visão global do fenômeno social “desaparecimento”, além de buscas efetivamente guiadas.
Só no ano de 2013, 23.194 pessoas foram dadas como desaparecidas no Estado de São Paulo, e esse número aumentou no ano seguinte, o que não significa que essas vítimas permanecem desaparecidas e, sim, que a maioria desses registros comporta a análise de um tema a solucionar, por via de regra, de grande interesse social, a exemplo do tráfico de pessoas (para os mais variados fins), da violência urbana (especialmente policial) e do tráfico de drogas, bem como do trato dos doentes, sejam mentais, por drogadição ou por alcoolismo. Significa, portanto, que os próprios registros de desaparecimento nos levam a temas de relevo nas políticas públicas, que nunca foram relegados, como é relegado o desaparecimento em si.
Muitas pessoas desaparecem por muitos anos ou para sempre, a exemplo das 7.501 crianças do Estado de São Paulo ainda por serem localizadas. Além dessas, o artigo de Eliana destaca o desaparecimento de outras 1.717 crianças durante os meses de janeiro e setembro de 2014, índice superior ao de 2013, quando 1.478 foram dadas como desaparecidas. Já no caso de adolescentes, entre janeiro e setembro de 2014, 10.024 desapareceram, a maior taxa de desaparecimento desde 2012, quando foram registradas apenas 6.499 ocorrências.
— Havia uma sala, quase que desse tamanho, com inquéritos policiais arquivados a rodo no Rio de Janeiro, assim como é em todo o Brasil, por falta de identificação dos cadáveres. Pilhas e mais pilhas se amontoavam umas nas outras com algumas centenas de milhares de folhas. Se não sabemos quem morreu, como descobrir quem matou?
Essa máxima, apresentada e difundida em despachos das autoridades policiais que atuavam no Centro Integrado de Apuração Criminal (CIAC), justificava, no final de 2009, o arquivamento de grande parte dos cerca de 50.000 inquéritos provenientes das Delegacias Especiais de Acervos Cartorários (DEAC).
— O procurador geral à época, isso foi em 2012 mais ou menos, disse: “escuta, chama o promotor Pedrão Mourão”, que é o grande cérebro e é quem merece os parabéns pela idealização do até então PIV, se chamava PIV, “e… sei lá, dá um jeito nessa sala, porque não é possível que a gente arquive tudo isso sem identificar pessoas, elas podem ser desaparecidas e outra, nós estamos deixando de identificar autores de crimes”. E o que ele fez? Apesar de um grande promotor, ele também é um grande conhecedor da tecnologia da informação. Então montou um banco de dados! Primeira coisa que ele falou foi: “não adianta eu ver esse bando de papel, eu tenho que montar um banco de dados”. Montou e começou a cruzar dados, a identificar os corpos, a reabrir as investigações e a fazer o trabalho decente que um promotor faz, que é um trabalho de investigação. Por isso que se chama Programa de Identificação e Localização Desaparecidos, porque muitos deles estão dentre os mortos dos inquéritos dos policiais. Só que essa história foi se avolumando, ganhou um prêmio, menção honrosa, Inovare 2011, por ter identificado várias pessoas, não só no começo, nos inquéritos, mas numa tragédia ambiental que ocorreu numa região serrana do Rio de Janeiro. E aí o PIV virou PLID, foi nominado dessa forma e começou a chamar os outros MPs pra fazer convênio, porque se tivermos PLID em todos os MPs, teremos um banco nacional, apontando as diferenças regionais, porque São Paulo tem muito problema de violência urbana, o Rio mais ainda do que nós. A gente abriu um diálogo. O estado do Para está preocupado com o tráfico de pessoas; Amazonas? Fronteira! Tráfico de índios, de crianças, de tudo que você puder imaginar, mais o poder da droga e os fazendeiros.
De repente imaginei todos os animais da Praça da Sé, os baralhos de soldados, o Rei, a Rainha de Copas, a Lagarta, a Lebre de Março, o Caxinguelê e o Chapeleiro apinhados na antiga sala de inquérito com suas colunas intermináveis de documentos, reunidos para julgar o culpado pelo desaparecimento de Alice. E, apontado como principal suspeito estava o Valete. Eu estava sentado na posição do júri, ao invés do Rei ou da Rainha.
— Chame a primeira testemunha — disse o Caxinguelê, sonolento antes de retornar para seu bule de chá. Assim o fiz e disse que desse um passo adiante o Chapeleiro. Ele trazia a mão a fotografia de Alice.
— Quando foi a última vez que você a viu?
— Ora, logo após o julgamento do Valete, não, não, não, não. Não esse… o outro! Aquele em que ele foi acusado de roubar as tortas.
Ao lembrar do episódio, a Rainha se empertigou em seu assentou e… “Cortem-lhe a cabeça!”.
— Como tá hoje? — perguntou Eliana, para si mesma — Também tá no relatório que vou te passar integral. Hoje existem mais de doze estados, tá no meu artigo também que fizeram, como se fosse uma assinatura de tratado internacional, né? Fizeram menção de participar, mas não ratificaram, não começaram. Quem tá funcionando? MP Rio, MP São Paulo. E a troca de informação, o redesaparecimento lá e cá, por exemplo, foi incrível! Porque descobrimos uma lógica que eles confirmaram que existia lá, eles têm uma lógica lá que a gente confirma que tem aqui. Somos muito unidos. O PLID, em si, é um banco de dados. Tem tudo: nome, características de pele, localização, a pessoa que pede o trabalho, os dados até então, documentos escaneados. E ele pretende se congregar com os outros: então o Rio lê tudo que eu faço, inclusive documentos e fotografias. O que ele não tem, que outros sistemas já têm, e que queremos unir: biometria e DNA. E se você olhar a lei do estado de São Paulo sobre desaparecidos de 2014, essa lei exige DNA e biometria. Não temos, a proposta inaugural não era essa, mas não temos sequer um banco nominal nacional. Não adianta dar um passo maior que a perna. Queremos, no mínimo, o nominal. E a gente tem como se unir. A Polícia Federal tem o biométrico, chama CADE, e temos ligação com o Instituto Nacional de Identificação, ele não é só para desaparecidos, mas abriu um link para isso ano passado e já recebemos alguns casos. E de DNA, existe a famosa lei sobre identificação criminal, cujo artigo 8º, do decreto que regulamentou essa lei diz que pode ser usado para desaparecidos. Então essa já é uma pauta do último congresso do júri do estado de São Paulo, em que fiz uma tese sobre isso, que foi aprovada: de usar o banco de dados de DNA para identificar vítimas também do inquérito, porque isso vai fazer com que a gente busque os autores e não desaparecer mais com essas vítimas em nenhum momento como indigentes.
A próxima a se sentar no banco de testemunhas foi a Lagarta.
Repeti a pergunta feita ao Chapeleiro, ao que a Lagarta deu uma longa tragada em seu narguilé e respondeu com toda a calma do mundo:
— Não digo.
— Anote isso — disse o Rei para uma das cartas ao seu lado — a Lagarta não sabe de nada.
— Isso não faz sentido, você disse que a viu ainda em seu cogumelo.
— Não disse. — E assim, ela se transformou numa borboleta e foi embora, sem mais respostas…
Nesse momento, lembrei-me do Caminho de Volta. Já que estávamos falando sobre bancos de DNA, perguntei se a ideia do PLID era fazer algo semelhante.
— O IML informou que encampou o Caminho de Volta, e refez o convênio. Mas o projeto tá parado, né? Tem mãe aqui no PLID que pede para eles tirarem o sangue e eles disseram que não vão tirar. Isso pra mim é um absurdo. Além de não estar mais na DHPP, o projeto não está colhendo o material hemático na própria USP. Não… não é por falta de verba, né? E isso eu já estou cobrando. Então assim, se eles (Caminho de Volta) não quiseram pegar um trabalho que já estava pronto, agora vão ter que pegar porque é lei, de 2015. Então é assim, o imbróglio é bem maior, mas vão ter que colher, e o que me foi dito em uma reunião, mas não foi confirmado, pois está em trâmite de ofício, é que eles encamparam. A Superintendência da Polícia Técnico Científica encampou o Caminho de Volta. Eu já até mandei um ofício, se estão colhendo, para onde eu mando os familiares? Porque eu vou divulgar isso. É lei federal.
Enquanto conversávamos, Eliana pedia para que eu anotasse o nome de todos os documentos que ela pretendia me passar referente ao PLID.
— Por que o DETRAN tem e a gente não aproveita? Por que a Polícia Federal tem para passaporte e a gente não aproveita? Por que o Instituto Nacional de Identificação tem e a gente não aproveita? Porque não existe um banco biométrico inventado para desaparecidos? Eu costumo dizer que desaparecimento é um tema invisibilizado. É uma redundância, mas um fato. Então as pessoas que vivem isso, e pode ser qualquer um de nós, estão fadadas a virar investigadores solitários, entende? Queremos acabar com isso na medida da obrigação de cada um: o Ministério Público, a polícia, órgãos de saúde, segurança pública e assim por diante… porque estamos defendendo o direito coletivo.
— Porque não se pode aproveitar o banco de dados da Polícia Federal?
— Dá e nós queremos, que é o CADE. Queremos congregar uma coisa à outra, mas ele não é só para desaparecidos. Temos medo, por exemplo… a gente tem que pensar em tudo, inclusive no que é errado, embora seja exceção: vamos supor que alguém tá procurando um desaparecido, mas sabe que o desaparecimento dele é o envolvimento com o tráfico. Aí mistura direitos humanos com direitos criminais, e nós não queremos isso. O que mais tem de biométrico? — ela fez uma pausa, tentando lembrar — Ah, agora vai ter o eleitoral, não pode começar junto com o Tribunal Eleitoral? É uma boa ideia! É uma ideia que eu já tive, mas não sei se vai vingar. É… a única coisa que eu imagino é aproveitar um banco biométrico que já comece com a nossa visão, que seria o do eleitoral, mas ele já começou. E nós temos uma reunião com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que é especializado em desaparecidos forçados, para começar a montar um banco estadual para provar que o federal pode ser feito, a partir de 2 de dezembro. As famílias viram vítimas, a sociedade vira vítima, a polícia, o MP e a segurança. Se for falar de gastos eu falo de todos. Já que o que importa é o bolso, então vamos falar do bolso, né? O órgão humano bolso. Não tem por que pensar nisso. Tem que fazer o banco de dados e dentro dele tem que tá a técnica da biometria. Aí você fala “pô, mas o PLID não tem”, pois é, mas com o pouco que ele tem, nós encontramos soluções.
Aguardávamos a próxima testemunha tomar seu lugar no banco. Enquanto isso, o Rei perdia a paciência com o réu.
— Se não foi você que a levou, então quem foi? — perguntou ao Valete.
— Ora, ela pode muito bem ter desaparecido através do espelho… não? —os demais animais ecoaram em uníssono: “sim, através do espelho!”.
De fato. Havia descartado essa hipótese. Um espelho poderia muito bem servir para refletir realidades inversas…
Crédito da imagem: Domínio Público
Capítulo do livro “Alice através da toca do coelho: um livro-reportagem sobre crianças desaparecidas“