O maronitas

publicado na Ed_05_out/dez.2017 por

O povo maronita, dizia o papa Benedito, é como uma flor entre os espinhos. Se o pontífice notável tinha essa doce frase para pintar os homens do monte Líbano, os que o sucederam guardaram tão perfumada imagem, e hoje, quando se fala dos maronitas, logo se recordam a flor e os espinhos anti-gos. Tudo, porém, neste mundo tem o vinco fatal do destino. A frase dos papas tornou-se profética, e através da vida imensa os de Maron continuam a perfumar a crença impoluta entre os espi-nhos das hostilidades.

Os maronitas, gente extremamente religiosa, habitam a Síria e descendem dos aramilas, filhos de Aram, de Sem, de Noé. Ascendência tão digna de respeito só os preparou para um longo e pungente sofrer. Desde os tempos dos Apóstolos, dizem os Atos no versículo 22 do capítulo XV, eram cristãos, conservando a fé ortodoxa havida do príncipe dos Apóstolos no ano 38 da era de Jesus Cristo. Quando no quarto século começaram a aparecer no Oriente as heresias e as doutrinas falsas, protegidas pelos sobera-nos coroados de pedrarias, impostas pelas armas, e a fé e a sobe-rania ao mesmo tempo vacilavam, São Maron, chefe dos eremitas da Síria, saiu de sua toca de cilícios e orações e veio salvá-los.

— Quem é esse homem de grandes barbas, meio roto? — indagavam os homens, vendo a figura ressurgida do santo sem pecado.

São Maron não respondia; seguia pelas estradas cheias de sol, na atmosfera de milagre do azul sem mancha, e pregava a dou-trina pura, exortava o povo a conservar a sua verdadeira fé.

— Acredita sempre em Deus, tal qual te ensinaram os Apóstolos, e conservarás a tua liberdade!

A gente, que dos seus lábios ouvia as palavras ungidas pela me-ditação contínua, seguia num novo esplendor de crença, em cada coração a esperança brotava, e em pouco tempo o povo da pro-víncia do monte Líbano era chamado maronita. Os heresiarcas quiseram caluniá-lo, mas Maron era puro como o cristal. São João Crisóstomo, o boca d’oiro, na carta que lhe escrevia, rogava que por ele orasse, e a ironia como a calúnia fenderam-se de encontro ao seu broquel de bondade.

Quando a sua alma irradiou, deixando o invólucro terreno, o povo maronita tinha inabalável a crença para suportar todas as sangrentas perseguições, e tem sido desde então o mesmo ordeiro e persistente auxiliar da obra divina.

Durante as cruzadas, combateu ao lado dos cristãos contra os ímpios. Ao aproximarem-se os exércitos, desciam da montanha, alimentavam e vestiam os cruzados nus e com fome. Sempre que os turcos entravam sedentos de sangue pelo seu território, sofriam como mártires o sacrifício sem protestar. O ódio do Maometano seguia-os, entretanto, na vida simples e indolente dos mosteiros. Em 1860, os drusos, povo pagão e feroz, recordando velhos ódios religiosos, atiraram-se subitamente sobre os pobres maronitas, traídos e abandonados.

A carnificina foi horrenda. A França então, sempre benevo-lente para os cristãos do Oriente, mandou uma esquadra às águas do Levante, forçando o Turco a modificar o governo do Líbano e a dar-lhe uma certa autonomia. Desde essa época o governo é cristão nomeado pelas sete grandes potências europeias, a câma-ra dos representantes faz-se por eleição livre e o chefe da polícia deve ser cristão. O chefe da polícia em todos os povos do Oriente representa um papel formidável.

Extremamente religiosos, os maronitas dependem civil, mi-litar e religiosamente, em qualquer parte em que se achem, dos sacerdotes, e a hierarquia da sua Igreja compõe-se de um prelado, com o título de Patriarca de Antióquia e de todo o Oriente, de doze bispos diretores de doze dioceses e de um número infindável de sacerdotes inteligentes e bons.

A intervenção europeia, entretanto, espalhou pelo mundo a flor pontifícia. A imigração esvazia aos poucos o Líbano. Não se pode viver com farturas em terras tão antigas, as autoridades conservam a influência aterradora do Sultão. Os que primeiro saíram, com os ortodoxos e outros crentes de Jesus, escreveram chamando os que ficavam, a perspicácia maometana facilitou a emigração para enfraquecer os libertos da sua prepotência, e os maronitas vêm para os Estados Unidos, para a Argentina, para o Brasil, num lento êxodo…

Nós temos uma considerável pétala da celebrada flor. Uma das nossas maiores colônias hoje é incontestavelmente a colônia síria. Há oitenta mil sírios no Brasil, dos quais cinquenta mil ma-ronitas. Só o Rio de Janeiro possui para mais de cinco mil.Quando os primeiros apareceram aqui, há cerca de vinte anos, o povo julgava-os antropófagos, hostilizava-os, e na província muitos fugiram corridos a pedra. Até hoje quase ninguém os se-para desse qualificativo geral e deprimente de turcos. Eles, todos os que aparecem, são turcos!

Os sírios, arrastados na sua imensa necessidade de amizade e amparo, davam com a muralha de uma língua estranha, num país que os não suportava. Agremiaram-se, fizeram vida à parte, e, como a colônia aumentava, foram por aí, mascates a crédito, fiando a toda gente, montaram botequins, armarinhos, fizeram–se negociantes. Quem os amparou? Ninguém! Só, por um acaso, Ferreira de Araújo, o Mestre admirável, escreveu defendendo-os. Os sacerdotes maronitas respeitam-lhe a memória, e na data da sua morte rezam-lhe missas por alma, guardando delicadamente uma gratidão duradoura.

No mais, a hostilidade, os espinhos da frase papal.

Há nessa gente operários hábeis, médicos, doutores, homens instruídos que discutem com clareza questões de política interna-cional, jornalistas e até oradores. A vida é dura, porém; jornalistas e doutores vendem alfinetes e linhas em casas pouco claras da Rua da Alfândega, da Senhor dos Passos, do Núncio e dos subúrbios. A totalidade ainda ignora o português.

Conversei com alguns maronitas, sempre de uma amabilidade penetrante. Um deles, dando-me a satisfação da sua prosa torren-cial, falou como um estrategista da guerra russo-japonesa. Esse homem não falava, redigia um artigo de jornal com a retórica empolada que fez a delícia dos nossos pais e ainda hoje é a força do jornalismo dogmático. Eu ouvia-o de lábios entreabertos.

— Se a justiça de Deus não desapareceu, se a vida humana de-corre dos desejos da divindade, é possível crer que os japoneses possam vencer?

— Oh! não!

Eu respondera, como no teatro, mas estava interessado por esses organismos simples, criados na chama de uma crença ina-balável, desses românticos do Oriente.

Todos são feitos de exagero, de entusiasmo, de amor e de ilu-são. Os dois jornais sírios têm os títulos simbólicos e extremos: A Justiça, A Razão. Os homens naturalmente perdem o limite do na-tural. Numa outra casa em que sou recebido, um gordo cavalheiro preocupa-se com o problema da colonização.

— A colonização síria — diz — é a melhor para o Brasil. Os brasi-leiros ainda não a compreenderam. O sírio não é só o comerciante, é também agricultor, operário. Desprezam-nos? Este país não vê que conosco, povo tranquilo e dócil, não poderia haver compli-cações diplomáticas? Os espanhóis, os portugueses, os italianos enriquecem, partem, pedem indenizações. Nós, pobres de nós!, não pedimos nada, queremos ser apenas do Brasil.

Não respondo. Talvez bem cedo os sírios sejam assimilados à família heterogênea da nossa pátria. Essas criaturas têm qualida-des muito parecidas com as dos brasileiros.

Vários negociantes que comigo discutem, porque os sírios discutem sempre, são como jornais retóricos e brandos; diziam naturalmente:

— No Amazonas perdi há pouco 400 contos. A colônia síria teve na baixa do café um prejuízo de 70 mil contos. As últimas remes-sas de fazendas elevam-se a 200 contos.

A princípio eu os acreditei um bando de Vanderbilts, falando com desprendimento do ouro e das riquezas. Mas não. Um sacer-dote amigo nos desfaz o sonho. Há fortunas restritas. A totalida-de, porém, tem relações com o alto comércio, compra a crédito para vender a crédito aos mercadores ambulantes do interior e às vezes a situação complica-se, quando lhes falta o pagamento dos últimos, tudo por causa do exagero, a mania de aparentar riqueza. Cada cérebro oriental tem um Potosí nas circunvoluções.

— Os sírios chegam, ganham dois mil réis por dia e já estão con-tentes. Nunca serão verdadeiramente ricos, porque aparentam ter oito quando apenas têm dois.

Este feitio os há de fazer compreendidos dos brasileiros.

Mas os maronitas, sob a proteção do velho santo austero, são essencialmente bons, de uma bondade à flor da pele, que se desfaz em gentilezas ao primeiro contato com um bombom. Os homens falam sempre, as mulheres olham com os seus líquidos olhos insondáveis, e por todas essas casas, há, inseparável da vida, o mistério da religião, no amor que as mulheres, algumas ine-favelmente belas, proporcionam, nos negócios, nas ideias e nas refeições. Quando um maronita enferma, a primeira coisa que faz é chamar um padre para se confessar; quando um negócio vai mal, aconselha-se com o sacerdote, só casa pelo seu rito, o único verdadeiro e, trabalhando para viver, funda irmandades, colégios e pensa em edificar capelas.

De 1900 data a fundação da Irmandade Maronita, posterior a outras duas que se desfizeram. Foram sócios fundadores: Dieb Aical, Arsanius Mandur Galep Toyam, Seba Preod Curi, Miguel Carmo, Acle Miguel, João Facad, Antonio Nicobá, Antonio Kairur, Bichara Bueri, Gabriel Ranie, Salbab, José Chalhub e Bichara Duer. Brevemente abrirá as suas portas o colégio dos Jovens Sírios.

Apesar da permissão para dizer missa em todas as igrejas cató-licas e de celebrarem aos domingos na Saúde e em Cascadura, já compraram o terreno na Rua do Senhor dos Passos para edificar a capela maronita, e a propaganda se faz mesmo entre os sírios ortodoxos e maometanos, porque uma ordem do Papa lhes in-dica que pela bondade façam voltar à crença única as ovelhas tresmalhadas.

Atualmente há três padres maronitas em São Paulo e quatro no Rio, os Revs. Pedro Abigaedi, Pedro Zaghi, Luiz Trah e Luiz Chediak. Andam todos de barba cerrada, usam óculos e são sua-vemente eruditos. Trah, por exemplo, esteve oito anos na Bélgica e discursa como um regato tranquilo; Chediak é professor, e cada palavra sua vem repassada de doçura.

É sabido que a reconciliação dos maronitas com a Igreja ro-mana data de 1182. A reconciliação foi incompleta a princípio, mas hoje é quase integral. Os padres, podendo casar, abandonam essa ideia; há o maior respeito pelo Sumo Pontífice, e a política do Vaticano consegue aos poucos outras reformas.

Como os padres me levassem a ver o terreno donde a igreja maronita surgirá, interroguei-os a respeito do rito da sua seita.

— É quase idêntico ao romano – dizem-me. – A liturgia é redi-gida em siríaco. É uma necessidade. Há sírios que sabem de cor o sacrifício da missa. Talvez o mesmo não aconteça numa igreja romana, que conserva o latim.

— A começar pelos sacristãos.

— Há além disso as missas privadas, a regra é a de Santo Antônio e seguimos o martirológio de São Maron.

— Dizem que os maronitas foram a princípio monotelistas…

— Dizem tanta coisa no mundo! Eles tinham parado diante de uns velhos muros.

— Será aqui a igreja?

— Querendo Deus!

E não sei por quê, vendo-os tão simples diante das paredes carcomidas, esses sacerdotes de um povo religiosamente bom, eu recordei a frase profética dos papas. O povo maronita é como uma flor entre espinhos, mas uma flor cujo viço é eterno. Os espinhos continuam persistentes, mas a velha flor espalha-se pelo mundo, recendendo a mais doce ternura e a mais profunda crença…

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Crédito da imagem: CC0 Public Domain

Capítulo do livro: “Religiões no Rio”, seção “No mundo dos feitiços”. Obra de Domínio Público.

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