Os Sertões – A luta

publicado na Ed_10_jan/mar.2019 por

Capítulo I

Preliminares

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam‑se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Brito Mendes caíra  às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.

Antecedentes

O mal era antigo.

O trato do território, que recortam as cadeias de Sincorá até às margens do S. Francisco, era, havia muito, dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.

Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina‑a a própria opulência. Procuram‑na há duzentos anos irrequietos aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles, esquadrinhando afanosamente os flancos das suas serranias e as nascentes dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região  fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.

De sorte que, sem precisarem despertar pela cultura as energias de um solo em que não se fixam e atravessam na faina desnorteada de faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco, se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o banditismo franco impôs‑se‑lhes como derivativo à vida desmandada.

O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.

A transição e antes de tudo um belo caso de reação mesológica.

Caracterizemo‑la, de relance.

Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes, interpostos tão a propósito na quadra colonial, entre o torvelinho das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador formando o cerne da nossa nacionalidade nascente e criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as utopias românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de esboçarem talvez a única feição útil da nossa atividade naqueles tempos, tiveram desde o começo do século 18, quando se desvendaram as lavras do rio de Contas à Jacobina, perigosos agentes que, se Ihes não derrancaram o caráter varonil, o nortearam a lamentáveis destinos. De feito, transmudaram‑se em contato com os sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente, espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao revés dos já existentes, não tinham o gérmen de uma fazenda de gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região, estacionando largo tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram aparelhos para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas que vão de Macaúbas e Açuruá, novas paragens opulentas, atraindo‑os para o âmago das terras.

Devassaram‑nas até nova barreira, o rio S. Francisco. Transpuseram‑na. Na frente, indefinido, se lhes antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale da rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina, em carta dirigida à rainha Maria II (1794) , afirmava “que as suas minas eram a coisa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade”.

Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás.

Não deram mais um passo além. Ultimara‑se uma empresa deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, nodoando‑os, os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa historia, tão malsinada de indisciplinados heróis, adquiria um de seus mais sombrios atores. Fez‑se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranqüila dos campeiros, uma outra caracterizando‑se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irrequieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.

Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.

É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros — na atividade bifronte que oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, ampara‑o de idêntico modo ante as exigências da vida combatente: dá‑lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projéteis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galena argentífera do Açuruá[1]

É natural que desde o começo do século passado a história dramática dos povoados do S. Francisco começasse a refletir uma situação anômala[2]. E embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que esboçamos.

Exemplifiquemos. Todo o vale do rio das Éguas e, para o norte, o do rio Preto, formam a pátria original dos homens  mais bravos e mais inúteis da nossa terra[3]. Dali abalam para as algaras aventurosas alugando a bravura aos potentados, e têm sempre, culminando‑lhas, o incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do grande rio. Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade mineira de Januária, que conquistaram, tornando a Carinhanha, de onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xique‑Xique, lendária nas campanhas eleitorais do Império.

Não há traçá‑la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra.

Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando‑se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos; abrindo‑se na gruta de âmbito caprichoso, semelhando a nave de uma igreja, escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes candelabros de estalactites; prolongando‑se em corredores cheios de velhos ossuários diluvianos; e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça — tornaram‑no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiás.

Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante observa , de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas  e espingardas.

O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, c a arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário, transudante… E reza. Sonda longo tempo, batendo no peito, as velhas  culpas. Ao cabo cumpre devotamente  a promessa que fizera para que lhe fosse favorável o último conflito que travara: entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos , feliz pelo tributo que rendeu. Amatula‑se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa.

Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira fase de uma decadência que começou em 1856; Xique‑Xique, onde durante decênios se digladiaram liberais e conservadores; Macaúbas, Monte Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam, nas vivendas derruídas  ou  esburacadas à bala, esse velho regímen de desmandos.

São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado.

O conceito é paradoxal, mas exato.

Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços. Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e batendo‑se  lealmente pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas batalhas em que entram, militarmente, arregimentados.

O saque das povoações que conquistam, têm‑no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História inteira.

Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e indigno labéu. O mais frágil “positivo” pode atravessar, inerme e indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os “piquás” atestados de diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só termo da viagem. O forasteiro, alheio às lotas partidárias, atravessa‑os igualmente imune.

Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca — tremendo — ao ver aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampado na volta do caminho…

Mas perde em momentos o modo. O clavinoteiro — chefe aproxima‑se. Saúda-o com boa sombra; dirige‑lhe a palavra risonha; e mete‑lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige um tributo — um cigarro. Acende‑o numa pancada única do isqueiro; e deixa‑o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna.

São numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles valentes desgarrados.

Cerca de dez ou oito léguas de Xique‑Xique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, ereto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais.

Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados, tornando‑se interventoras neutras ante as facções combatentes. E: uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamenta com os criminosos; balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.

Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido na própria transigência das leis.

Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e desbordando para o norte.

Porque o cangaceiro[4] da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico , com diverso nome Distingue‑o do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba, de lamina rígida e longa, suplanta a fama tradicional do clavinote de boca‑de‑sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam‑se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.

A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá‑las.

A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões.

Capítulo II

Causas próximas da luta

Determinou‑a incidente desvalioso.

Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer‑lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.

O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que, sendo juiz do Bom Conselho, fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.

Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.

O caso passou em dias de outubro de 1896.

Historiemos, adstritos a documentos oficiais:

“Era esta a situação[5] quando recebi do dr. Arlindo Leôni, juiz de direito de Juazeiro, um telegrama urgente comunicando‑me correrem boatos mais ou menos fundados de que aquela florescente cidade seria por aqueles dias assaltada por gente de Antônio Conselheiro, pelo que solicitava providências para garantir a população e evitar o êxodo que da parte desta já se ia iniciando. Respondi‑lhe que o governo não podia move. força por simples boatos e recomendei, entretanto, que mandasse vigiar as estradas em distancia e, verificado o movimento dos bandidos, avisasse por telegrama, pois o governo ficava prevenido para enviar incontinente, em trem expresso, a força necessária para rechaçá‑los e garantir a cidade.

Desfalcada a força policial aquartelada nesta capital, em virtude das diligências a que anteriormente me referi, requisitei do sr. general comandante do distrito cem praças de linha, a fim de seguirem para Juazeiro, apenas me chegasse aviso do juiz de direito daquela comarca. Poucos dias depois recebi daquele magistrado um telegrama em que me afirmava estarem os sequazes de Antônio Conselheiro distantes de Juazeiro pouco mais ou menos dois dias de viagem. Dei conhecimento do fato ao sr. general que, satisfazendo a minha requisição, fez seguir, em trem expresso e sob o comando do tenente Pires Ferreira, a força preparada, a qual devia ali proceder de acordo com o juiz de direito.

Esse distinto oficial, chegando ao Juazeiro, combinou com aquela autoridade seguir ao encontro dos bandidos, a fim de evitar que eles invadissem a cidade.”

Não se podem imaginar móveis mais insignificantes para sucessos tão graves. O trecho acima extratado, entretanto, diz de modo claro que, desdenhando os antecedentes da questão, o governo da Bahia não lhe deu a importância merecida.

Antônio Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de uma peregrinação incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando‑lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma cidade; de Chorrochó à Vila do Conde, de Itapicuru a Jeremoabo, não havia uma só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude; insurgira‑se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras de cidades que invadira; destroçara completamente, em 1893, forte diligencia policial, em Macete, e fizera voltar outra, de oitenta praças de linha, que seguira até Serrinha; em 1894, fora, nu Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão na qual, impugnando a proposta de um deputado, chamando a atenção dos poderes públicos para a “parte dos sertões perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro”, outros eleitos do povo, e entre eles um sacerdote, apresentaram‑no como benemérito do qual os conselhos se modelavam pela ortodoxia a cristã mais rígida; fizera voltar, abortícia, em 1895, a missão apostólica planeada pelo arcebispo baiano, e no relatório alarmante a propósito escrito por frei João Evangelista afirmara o missionário a existência, em Canudos — excluídas as mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos — de mil homens, mil homens robustos e destemerosos “armados até aos dentes”; por fim, sabia‑se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam havia, em toda a parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam… E achou‑se suficiente para debelar uma situação de tal porte uma força de cem soldados.

Relata o general Frederico Solon, comandante do 3.° Distrito Militar:

“A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo dr. governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando‑me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente.

Confiando no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo‑lhe apresentar. sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9.° Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções, o qual, para cumpri‑las, seguiu, a 7 do dito mês, para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do rio S. Francisco, comandando três oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício de sua profissão. O mais correu pelo Estado.”

Aquele punhado de soldados foi recebido com surpresa em Juazeiro, onde chegou a 7 de novembro, pela manhã.

Não obstou a fuga de grande parte da população, subtraindo‑se ao assalto iminente. Aumentou‑a. Conhecendo a situação, os habitantes viram, de pronto, que um contingente tão diminuto tinha o valor negativo de exercer maior atração sobre a horda invasora.

Previram a derrota inevitável. E enquanto os partidários encobertos do Conselheiro, que os havia em toda a roda, se rejubilavam, prefigurando‑a, alguns homens sinceros pediram ao comandante expedicionário para não seguir avante.

As dificuldades encontradas na aquisição de elementos essenciais à marcha ali retiveram a força até ao dia 12 em que partiu, ao anoitecer, quando, certo, já chegara a Canudos a nova da investida[6]. Partiu sem os recursos indispensáveis a uma travessia de duzentos quilômetros, em terreno agro e despovoado, orientada por dois guias contratados em Juazeiro.

De sorte que logo em princípio o comandante reconheceu inexeqüível dar à marcha uma norma capaz de poupar as forças das praças. No sertão, mesmo antes do pleno estio, é impossível o caminhar de homens equipados, ajoujados de mochilas e cantis, depois das dez horas da manhã. Pelos tabuleiros o dia desdobra‑se abrasador, sem sombras; a terra nua reverbera os ardores da canícula, multiplicando‑os; e sob o influxo exaustivo de uma temperatura altíssima aceleram‑se de modo pasmoso as funções vitais, determinando assaltos súbitos de cansaço. Por outro lado raro é possível o itinerário disposto de maneira a aproveitarem‑se as horas da madrugada ou da noite. É forçoso avançar a despeito das soalheiras fortes até às cacimbas dos pousos dos vaqueiros.

Além disto, aqueles lugares estão, como vimos, entre os mais desconhecidos da nossa terra. Poucos se têm afrontado com o aspérrimo vale do Vaza‑Barris que, das vertentes orientais da Itiúba até Jeremoabo, se prolonga inóspito, desfreqüentado , tendo, de léguas em léguas, esparsas, insignificantes vivendas. É o trecho da Bahia mais assolado pelas secas.

Por um contraste explicável entre as disposições orográficas, rodeiam‑no, contudo, paragens exuberantes: ao norte o belo sertão de Curaçá e as várzeas feracíssimas estendidas para leste até Santo Antônio da Glória, perlongando a margem direita do S. Francisco; a oeste as terras fecundas centralizadas em Vila Nova da Rainha. Emolduram, porém, o deserto. O Vaza‑Barris, quase sempre seco, atravessa‑o, feito um oued tortuoso e longo.

Piores que os “gerais, onde ficam vários[7]”, as vezes mais atilados pombeiros[8], sem rumo, desnorteados pela uniformidade dos plainos indefinidos, as paisagens sucedem‑se, uniformes e mais melancólicas mostrando os mais selvagens modelos, engravecidos por uma flora aterradora.

A própria caatinga assume um aspecto novo. E uma melhor caracterização da flora sertaneja, segundo os vários cambiantes que apresenta acarretando denominações diversas, talvez a definisse mais acertadamente como a paragem clássica das catanduvas, progredindo, extensa, para o levante e para o sul até às cercanias de Monte Santo[9].

A pequena expedição penetrou‑a logo ao segundo dia de viagem, quando, depois de repousar bivacando duas léguas além de Juazeiro, teve que calcar, seguidamente, quarenta quilômetros de estrada deserta, até uma ipueira minúscula, a lagoa do Boi, onde havia uns restos de água. Dali por diante caminhou no deserto com escalas por Caraibinhas, Mari, Mucambo, Rancharia e outros pousos solitários, ou fazendas. Alguns estavam abandonados. O estio prenunciava a seca.

Os raros moradores, ou por evitá‑la, ou aterrados pelas novas alarmantes, haviam abalado para o norte tangendo por diante os rebanhos de cabras, únicos animais afeitos àquele clima e àquele solo.

Uauá

A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia penosíssima.

Este arraial — duas ruas desembocando numa praça irregular — é o ponto mais animado daquele trecho do sertão. Como a maior parte dos vilarejos pomposamente gravados nos nossos mapas, é uma espécie de transição entre maloca e aldeia — agrupamento desgracioso de cerca de cem casas mal feitas e tijupares pobres, de aspecto deprimido e tristonho

Alcançam‑no quatro estradas que, a partir de Jeremoabo passando em Canudos, de Monte Santo, de Juazeiro e Patamuté, conduzem para a sua feira, aos sábados, grande número de tabaréus sem recursos para viagens longas a lugares mais prósperos. Ali chegam por ocasião das festas como se procurassem opulenta capital das “terras grandes[10]”; entrajados das melhores vestes, ou encourados de novo; pasmos ante os mostradores de duas ou três casas de negócio, e contemplando no barracão da feira, no largo, os produtos de uma indústria pobre em que aparecem, como valiosos espécimens, courinhos curtidos e redes de caroá. Nos demais dias, aberta uma ou outra venda, deserta a praça, Uauá figura‑se um local abandonado. E foi num destes que a população recolhida, aguardando a passagem das horas mais ardentes, despertou surpreendida por uma vibração de cornetas.

Era a tropa.

Entrou pela rua em continuação à entrada e fez alto no largo. Foi um sucesso. Entre curiosos e tímidos, os habitantes atentavam para os soldados — poentos, mal firmes na formatura, tendo aos ombros as espingardas cujas baionetas fulguravam — como se vissem exército brilhante.

Ensarilhadas as armas, a força acantonou.

Fez‑se em torno um círculo de vigilância: postaram-se sentinelas à saídas dos quatro caminhos e nomeou‑se o pessoal das rondas.

Feito praça de guerra, o vilarejo obscuro era, entretanto; uma escala transitória. A expedição, depois de breve descanso, devia abalar imediatamente para Canudos, ao alvorecer do dia subseqüente, 20. Não o fez. Ali, como em toda a parte, variavam, díspares, as informações, impedindo ajuizar‑se sobre as coisas.

De sorte que todo aquele dia foi despendido inutilmente, em indagações, sendo resolvido o acometimento para o imediato, depois de demora prejudicialíssima. E ao cair da noite operou‑se um incidente só explicado na manhã seguinte: a população, quase na totalidade, fugira. Deixara as vivendas, sem ser percebida em pequenos grupos deslizando, furtivos, entre os claros das guardas avançadas. No repentino êxodo lá se foram os próprios doentes, famílias inteiras, ao acaso, pela noite dentro, dispartindo espavoridos, descampados em fora.

Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os demais lugares convizinhos estava sob o domínio de Canudos. Habitavam‑no dedicados adeptos de Antônio Conselheiro; de sorte que, mal a força fizera alto no largo, haviam‑se aqueles precipitado para o arraial ameaçado, onde chegaram no amanhecer de 20, levando o alarma…

Aquela fuga de uma população em massa delatava que os emissários haviam tido tempo de voltar prevenindo os moradores do contra‑ataque, resolvido pelos homens de Canudos. Ficaria, assim, o campo livre aos lutadores.

Os expedicionários não ligaram, porém, grande importância ao caso. Aprestaram‑se para continuar a marcha na manhã seguinte; e inscientes da gravidade das coisas repousaram tranqüilamente, acantonados.

Primeiro combate

Despertou‑os o adversário, que imaginavam ir surpreender.

Na madrugada de 21 desenhou‑se no extremo da várzea o agrupamento dos jagunços…

Um coro longínquo esbatia‑se na mudez da terra ainda adormida, reboando longamente nos ermos desolados. A multidão guerreira avançava para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. Parecia uma procissão de penitência, dessas a que há muito se afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os estios longos geram os flagícios das secas.

O caso é original e verídico. Evitando as vantagens de uma arrancada noturna, os sertanejos chegavam com o dia e anunciavam‑se de longe. Despertavam os adversários para a luta.

Mas não tinham, ao primeiro lance de vistas, aparências guerreiras. Guiavam‑nos símbolos de paz: a bandeira do Divino e, ladeando‑a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam‑se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos altares. Alguns, como nas romarias piedosas, tinham à cabeça as pedras dos caminhos e desfiavam rosários de coco. Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados. Seguiam para a batalha rezando, cantando — como se procurassem decisiva prova às suas almas religiosas.

Eram muitos. Três mil. disseram depois informantes exagerados, triplicando talvez o número. Mas avançavam sem ordem. Um pelotão escasso de infantaria que os aguardasse, distribuído pelas caatingas envolventes, dispersá‑los‑ia em alguns minutos.

O arraial na frente, porém, não revelava lutadores a postos. Dormia.

A multidão aproximou‑se, tudo o indica, até beirar a linha de sentinelas avançadas. E despertou‑as. Os vedetas estremunhando, surpresos, dispararam, à toa, as carabinas e refluíram precipitadamente para a praça que ficava à retaguarda, deixando em poder dos agressores um companheiro, espostejado a faca. Foi, então, o alarma: correndo estonteadamente pelo largo e pelas ruas; saindo, seminus, pelas portas; saltando pelas janelas; vestindo‑se e armando‑se às carreiras e às encontroadas… Não formaram. Mal se distendeu às pressas, dirigida por um sargento, incorreta linha de atiradores. Porque os jagunços lá chegaram logo, de envolta com os fugitivos. E o recontro empenhou‑se brutalmente, braço a braço, adversários enleados entre disparos de garruchas e revólveres, pancadas de cacetes e coronhas, embates de facões e sabres — adiante, sobre a frágil linha de defesa. Esta cedeu logo. E a turba fanatizada, entre vivas ao Bom Jesus e ao Conselheiro, e silvos estridentes de apitos de taquara, desdobrada, ondulante, a bandeira do Divino, erguidos para os ares os santos e as armas, seguindo empós o curiboca audaz que levava meio inclinada em aríete a grande cruz de madeira — atravessou o largo arrebatadamente…

Este movimento foi instantâneo e foi, afinal, a única manobra percebida pelos que testemunhavam a ação. Dali por diante não a descrevem os próprios protagonistas. Foi uma desordem de feira turbulenta.

Na maioria, as praças, protegidas pelas casas, e abrindo‑lhes as paredes em seteiras, volveram à defensiva franca.

Foi a salvação. Os matutos conjuntos à roda dos símbolos sacrossantos, no largo, começaram de ser fuzilados em massa. Baquearam em grande número; e tornou‑se‑lhes a luta desigual a despeito da vantagem numérica. Batidos pelas armas de repetição, opunham um disparo de clavinote a cem tiros de Comblain. Enquanto o soldado os alvejava em descargas nutridas, os jagunços revolviam os aiós, tirando sucessivamente a pólvora, a bucha e as balas do demorado processo da carga de seu armamento grosseiro; enfiando depois pelo cano largo do trabuco a vareta; cevando‑o devagar, socando lá dentro aqueles ingredientes como se enchessem uma mina; escorvando‑o depois; aperrando‑o afinal, e ao cabo disparando‑o; realizando o heroísmo de uma imobilidade de dois minutos na estonteadora ebriez do tiroteio…

Renunciaram, por isto, transcorrido algum tempo, à operação inexeqüível. Caíram sobre os contrários, de facão desembainhado e ferrão em riste, vibrando as foices reluzentes.

Mas foi‑lhes ainda nefasta esta arremetida doida. Rareavam‑se‑lhes as fileiras sem vantagem contra adversários abrigados, ou aparecendo de golpe nas janelas, que se abriam em explosões de descargas. Numa delas, um alferes, serodiamente espertado, bateu‑se longo tempo, quase desnudo, abocando, sobre o peitoril, a carabina ao peito dos assaltantes, sem errar um tiro; até cair morto, sobre o leito em que dormira e não tivera tempo de deixar.

O conflito continuou, deste modo, ferozmente, cerca de quatro horas, sem episódios dignos de nota e sem vislumbrar um único movimento tático; batendo‑se cada um por conta própria, consoante as circunstâncias. No quintal da casa em que se aboletara, o comandante se ateve à missão única compatível com a desordem: distribuía, jogando‑os por sobre a cerca, cartuchos, sofregamente retirados, às mancheias, dos cunhetes abertos a machado.

Reunidos sempre em volta da bandeira do Divino, estraçoada de balas e vermelha como um pendão de guerra, os jagunços enfiavam pelas ruas. Contorneavam o arraial. Volviam ao largo, vozeando imprecações e vivas, em ronda desnorteada e célere. E foram, lentamente, nesses giros revoltos, abandonando a ação e dispersando‑se pelas cercanias. Reconheciam a inutilidade dos esfoços feitos, ou imaginavam atrair os antagonistas para o plaino desafogado da várzea.

Como quer que fosse, abandonaram, a pouco e pouco, o campo. Em breve, ao longe, desapareceu, listrando uma ponta das caatingas, a bandeira sagrada que reconduziam a Canudos.

Os soldados não os encalçaram. Estavam exaustos.

Uauá patenteava quadro lastimoso. Lavraram incêndios em vários pontos. Sobre os soalhos e balcões ensagüentados, à soleira das portas, pelas ruas e na praça, onde dardejava o sol, contorciam‑se os feridos e estendiam‑se os mortos.

Entre estes, dezenas de sertanejos — 150 — diz a parte oficial do combate, número desconforme ante as dez mortes — um alferes, um sargento, seis praças e os dois guias — e dezesseis feridos da expedição. Apesar disto, o comandante, com setenta  homens válidos, renunciou prosseguir na empresa. Assombrara‑o o assalto. Vira de perto o arrojo dos matutos. Apavorara‑o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas conseqüências o desanimavam. O médico da força enlouquecera… Desvairara‑o o aspecto da peleja. Quedava‑se, inútil, ante os feridos, alguns graves.

A retirada impunha‑se, por tudo isto, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, idéia que fazia tremer  aqueles triunfadores. Resolveram‑na  logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram dali sob um sul ardentíssimo.

Foi como uma fuga.

A travessia para Juazeiro fez‑se a marchas, em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, fardas em trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da derrota. Parecia que lhes vinham em cima, nos rastros, os jagunços. A população alarmou‑se, reatando o êxodo. Ficaram de fogos acesos na estação da via‑férrea todas as locomotivas. Arregimentaram‑se todos os habitantes válidos, dispostos ao combate. E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja…

Capítulo III

Preparativos da reação

O revés de Uauá requeria reação segura.

Esta, porém, preparou‑se sob extemporânea disparidade de vistas entre o chefe da força federal da Bahia e o governador do Estado. Ao otimismo deste, resumindo a agitação sertaneja a desordem vulgar acessível às diligencias policiais, contrapunha‑se aquele, considerando‑a mais séria, capaz de determinar verdadeiras operações de guerra.

De tal modo, a segunda expedição organizou‑se sem um plano firme, sem responsabilidades definidas, através de explicações recíprocas entre as duas autoridades independentes e iguais. Compôs‑se a princípio de 100 praças e 8 oficiais de linha, e 100 praças e 3 oficiais da força estadual.

Assim constituída, seguiu, a 25 de novembro, para Queimadas, sob o comando de um major do 9.° Batalhão de Infantaria, Febrônio de Brito.

Simultaneamente o comandante do Distrito apelava para o governo federal requisitando, para a aparelhar melhor, 4 metralhadoras Nordenfeldt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250 soldados: 100 do 26.° Batalhão, de Aracaju, e 150 do 33.º, de Alagoas.

Todo este aparato era justificável. Sucediam‑se informações alarmantes, dando, dia a dia, realce à gravidade das coisas. À parte os exageros que houvessem, delas se colhia a grandeza do número de rebeldes e os sérios empecilhos inerentes à região selvagem em que se acoitavam.

Estas novas, porém, baralhavam‑nas sem número de versões contraditórias agravadas pelos interesses inconfessáveis de uma falsa política sobre a qual nos dispensamos de discorrer.

Nem os apontaremos, embora largo tempo se perdesse, inútil, nesse agitar estéril de minudências desvaliosas — enquanto as linhas telegráficas vibravam da orla dos sertões para o Brasil inteiro, e permanecia, expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição, à frente de 243 praças de pré.

Baldo de recursos e a braços com toda espécie de dificuldades; oscilando no desencontro das informações; ora em desalentos, afigurando‑se‑lhe insuperável a empresa; ora cheio de inesperadas esperanças no alcançar o fim que se propunha, dali abalou somente em dezembro, para Monte Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia novo reforço de cem praças.

Esta avançada já ia adstrita a um plano de campanha.

O comandante do Distrito compreendera a situação. Planeara atacar a revolta por dois pontos, fazendo avançar para um objetivo único não uma, mas duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9.° de Infantaria Pedro Nunes Tamarindo. Era um plano compatível com as circunstâncias da luta: estabelecer antes de tudo um cerco à distancia; bater os insurretos parceladamente e apertá‑los em movimentos envolventes de forças pouco numerosas e adestradas.

Realmente, libertas, estas, da morosidade própria às grandes massas, ajustar‑se‑iam melhor às escabrosidades do terreno, e do mesmo passo enfraqueceriam todas as causas de insucesso. Por outro lado, por mais original que seja o método combatente dos matutos — guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga! — rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer, permitindo dar aos grupos dispersos o centro unificador de um objetivo prefixado. Atacá‑los, atraindo‑os para diferentes pontos, é vencê‑los.

Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas sertanejas tinham organização militar correlativa[11] — visando a formação sistemática de “tropas irregulares”, que, sem o embaraço das unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem folgadamente no trançado das matas e sobre as asperezas do solo, auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares.

Daí as façanhas que crivam a nossa história nos 17 e 18 séculos; o sem conto de revoltas debeladas ou quilombos dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de “capitães‑do‑mato”, através de batalhas ferocíssimas e sem nome. Imitando o próprio sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam‑nos graças à mesma norma que se traduz por uma fórmula paradoxal: — dividir para fortalecer.

Devíamos, num transe igual, adotá‑la. Era sem dúvida um recuo inevitável à guerra primitiva. Mas, quando não o impusesse o jagunço solerte e bravo, impunha‑o a natureza excepcional que o defendia.

Vejamos.

A guerra das caatingas

Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando‑lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes — e formulam leis para a guerra, pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios feldmarechais — guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque heróico trocado pelo lápis calculista — se ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens.

Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território — orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias — se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, aos dois beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando‑lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores.

Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam‑se para o combate; agridem. Trançam‑se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem‑se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu.

E o jagunço faz‑se o guerrilheiro‑tugue, intangível…

As caatingas não o escondem apenas, amparam‑no.

Ao avistá‑las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende. Segue pelos caminhos em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados.

É que nada pode assustá‑los. Certo, se os adversários imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em momentos. Aqueles esgalhos far‑se‑ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E lá se vão, marchando, tranqüilamente heróicos…

De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro…

A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem‑se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem‑se, impacientes, em roda. Nada vêem.

Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras.

E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda.

Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto. Forma‑se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vareda estreita. Distende‑se pela orla da caatinga. Ouve‑se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas…

Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projéteis dos atiradores invisíveis batendo em cheio nas fileiras.

A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções enérgicas. Destacam‑se outras unidades combatentes, escalonando‑se por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; — e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega‑se contra os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expansão irradiante de cargas. Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo formidável da caatinga.

As seções precipitam‑se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam‑se no cipoal que as agrilhoa, que Ihes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô‑lo. Contornam‑no. Volvem aos lados. Vê‑se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte‑se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos…

Circuitam‑nos, estonteadamente, os soldados. Espalham‑se, correm à toa, num labirinto de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem‑se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras…

Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando‑se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz‑se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem‑se maiores, acrescidas a confusão e a desordem; —enquanto em torno, circulando‑os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projetis tio adversário.

De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.

As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou perdidas; golpeados de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos…

Reorganiza‑se a tropa. Renova‑se a marcha. A coluna estirada a dois de fundo deriva pelas veredas em fora, estampando no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes. Alonga‑se; afasta‑se; desaparece.

Passam‑se minutos. No lugar da refrega , então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos…

Agrupam‑se na estrada. Consideram por momentos a tropa, indistinta, ao longe; e, sopesando as espingardas ainda aquecidas, tomam precípites pelas veredas dos pousos ignorados.

A força vai prosseguindo mais cautelosa agora.

Subjugam o animo dos combatentes, caminhando em silencio, o império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos. O comandante rodeia‑os de melhores resguardos: ladeiam‑nos companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia‑os um esquadrão de praças escolhidas.

No descair de encosta agreste, porém, escancela‑se um sulco de quebrada que é preciso transpor. Felizmente as barrancas, esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de gramíneas; cactos esguios avultando raros, entre blocos em monte; ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca…

Desce por ali a guarda da frente. Seguem‑se‑lhe os primeiros batalhões. Escoam‑se, vagarosas, as brigadas pela ladeira agreste. Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito já está toda a vanguarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feito uma torrente escura transudando raios…

E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá‑la estacar  de súbito.

Passa,  ressoando, uma bala.

Desta  vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto, parecendo feitos por um atirador único.

A disciplina contém as fileiras; debela o pânico emergente; e, como anteriormente, uma seção se destaca e vai, encosta acima, rastreando a direção dos estampidos. O torvelinho dos ecos numerosos, porém, torna aquela variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa naqueles ares ardentes, continuam lentos, assustadores, seguros.

Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores pesquisam‑nos inutilmente.

Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos. E quando as últimas armas desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, desenterra‑se de montões de blocos — feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas — um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o trágico caçador de brigadas…

Estas seguem desenfluídas de todo. Daí por diante velhos lutadores têm pavores de crianças. Há estremecimentos em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas macegas. O exército sente na própria força a própria fraqueza.

Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimigo, que o assombra e que foge.

A luta é desigual. A força militar decai a um plano interior Batem‑na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar‑se‑lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo.

Então — nas quadras indecisas entre a “seca” e o “verde”, quando se topam os últimos fios de água no lodo das ipueiras e as últimas folhas amarelecidas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e foge ante o flagelo iminente, aquele segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a jornada se alongue, e as habitações rareiem, e se extingam as cacimbas e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde sesteiam os vaqueiros fatigados.

Cercam‑lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece‑as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.

O umbu desaltera‑o e dá‑lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam‑no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás — sustentam‑lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem‑se cordas flexíveis e resistentes… E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro apenas lobriga a fosforescência azulada das cumanãs dependurando‑se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta‑lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante…

A natureza toda protege o sertanejo. Talha‑o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.

Capítulo IV

Autonomia duvidosa

Ia-o demonstrar a campanha emergente… cópia mais ampla de outras que em todo o Norte têm aparecido, permitindo aquilatar‑se de antemão tais dificuldades.

As medidas planeadas pelo general Solon denotavam, portanto, exata previsão de sucessos semelhantes, na luta excepcionalíssima para a qual nenhum Jomini delineara regras, porque invertia até os preceitos vulgares da arte militar.

Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham‑se bem como o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha, onde uma revolta, depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a Europa, só cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama, “as colunas infernais” do general Turreau — pouco numerosas mas céleres, imitando a própria fugacidade dos vendeanos, até encurralá‑los num círculo de dezesseis campos entrincheirados.

Não se olhou, porém, para o ensinamento histórico.

É que se preestabelecera a vitória inevitável sobre a rebeldia sertaneja insignificante.

O governo baiano afirmou “serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo comandante do  Distrito significavam mais prevenção que receio”; e aditava “não ser tão numeroso o grupo de Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens etc.”

Contravinha o chefe militar entendendo ter a repressão legal vingado o círculo das diligências policiais, cumprindo‑lhe não mais prender criminosos, “mas extirpar o móvel de decomposição moral que se observava no arraial de Canudos em manifesto desprestígio à autoridade e às instituições”, acrescentando que a força federal deveria seguir bastante forte para se subtrair à contingência de “retiradas prejudiciais e indecorosas”. O governo estadual, porém, agindo dentro do elástico art. 6.° da Constituição de 24 de fevereiro, cerrou a controvérsia levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado, e repelindo a intervenção que lhe implicava incompetência para manter a ordem nos seus próprios domínios. Deslembrara‑se que em documento público se confessara desarmado para suplantar a revolta e que, apelando para os recursos da União, justificava, naturalmente, a intervenção que procurava encobrir.

Vinha serôdio o falar em soberania apisoada pelos turbulentos impunes. Ademais ninguém se iludia ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da novrose. A desordem local ainda, podia ser núcleo de uma conflagração em todo o interior do Norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior dos próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já à Bahia, mas ao país inteiro.

Foi o que sucedeu. A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível, miraculosamente erguida pelos exegetas constitucionais, a soberania do Estado…

Para a resguardar melhor foi removido da Bahia o chefe da força militar, que traçara a sua atitude retilineamente pela lei. E somente depois disto a coluna do major Febrônio — até então oscilante entre Monte Santo e Queimadas e objetivando nas contramarchas as vacilações do governo — seguiu reforçada pela tropa policial e adstrita as deliberações do governo baiano.

Perdera‑se esterilmente o tempo — que o adversário aproveitara, aparelhando‑se a um revide enérgico. Num raio de três léguas em roda de Canudos, fizera‑se o deserto. Para todos os rumos e por todas as estradas e em todos os lugares, os escombros carbonizados das fazendas e dos pousos avultavam, insulando o arraial num grande círculo isolador, de ruínas. Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história.

[1] Vide “Descrições praticas da Província da Bahia” pelo tenente coronel Durval Vieira de Aguiar.
[2] Caetano Pinto de Miranda Montenegro, vindo em 1804’ de Cuiabá ao Recife, andando 670 léguas, passou pela Barra. do Rio Grande, e no relatório que enviou aò visconde de Anadia, diz, referindo-se aqueles lugares que “em nenhuma parte dos domínios portuguesesa vida dos homens tem menos segurança”. (Liv.-16. Corr. daCorte, 1804—1808.)
[3] “Quem precisa de Jagunços no rio S. Francisco manda-os contratar nesse grande viveiro. O cliente com a munição é o preço; o mais arranjam facilmente conforme o valor da impunidade que a influência do patrão oferece”. Tenente-coronel Durval. Idem.
[4] Derivado de cangaço, complexo de armas que trazem os malfeitores. “O assassino foi á feira debaixo do seu cangaço, dizem os habitantes do sertão.” Franklin Tavora, o Cabeleira.
[5] Mensagem do Governador da Bahia ao Presidente da Republica — 1897.
[6] Pormenor curioso: a força seguiu a 12, ao anoitecer, para não seguir a 13, dia aziago. E ia combater o fanatismo…
[7] Ficar vario — diz-se do viajante que perde o rumo na uniformidade das chapadas.
[8] Pombeiro — positivo, camarada.
[9]Catanduva, cativa, mato mim (ceia, mato; altiva, mau) Beaurepaire Rohan. Dicionário de vocábulos brasileiros.
[10]Terras grandes — frase vaga com que os matutos designam o litoral que não conhecem. Com ela abrangem o Rio de Janeiro, na Bahia, Roma e Jerusalém — que idealizam próximas umas de outras e muito afastadas do sertão. E o resto do mundo, a civilização inteira, que temem e evitam.
[11] Vide a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro:— As instruções regias de 24 de Fevereiro de 1775 ao capitão-general das Minas.

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Crédito da fotografia: Questura policial em Canudos. 02.11 (1897) / Fonte: Coleção Canudos (Flávio de Barros) / Museu da República

Seção  “A luta” do livro: “Os Sertões: Campanha de Canudos”

Editado por: Icaro Pio e Israel Dias de Oliveira

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