Os Sertões – Nota preliminar

publicado na Ed_10_jan/mar.2019 por

Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por escusado apontar.

Demos lhe, por isto, outra feição, tomando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu.

Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazêmo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tomam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.

O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou extintas.

Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada, o equilíbrio,  que Ihes não permite  mais a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.

A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.

A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico, dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica — o tempo.

Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.

E foi, na significação integral da palavra, um crime.

Denunciemo-lo.

E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara a História  como ela merece:

“il s’ irrite contre les demi vérités que sont des demi faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une date, ni une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événements et en changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l’âme; il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien.“[1]

 

Euclides  da Cunha. São  Paulo,  1901

 

[1] “ […] ele se irrita contra as meias-verdades que são meias-falsidades, contra os autores que não alteram nem uma data, nem uma genealogia, mas desnaturam os sentimentos e os costumes, que preservam o desenho dos acontecimentos e mudam-lhes a cor, que copiam os fatos e desfiguram a alma: ele quer sentir como um bárbaro entre os bárbaros e, entre os antigos, com um antigo.” (Tradução literal).

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Crédito da fotografia: Vista parcial de Canudos ao Nascente e ao Sul. 02.26 (1897) / Fonte: Coleção Canudos (Flávio de Barros) / Museu da República

Parte do livro: “Os Sertões: Campanha de Canudos”

Editado por: Icaro Pio e Israel Dias de Oliveira

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