Dia 9 de junho de 2013. Até essa data, a morte sempre tinha sido uma questão de imaginação para mim. Aquela que vemos nos desenhos e videogames, onde o personagem que falece torna a viver no próximo episódio ou temos a opção de “tentar novamente” — caso do jogo GTA, Grand Theft Auto.
Antes de continuarmos, para entender o que será contado neste livro, primeiro preciso dividir com você, leitor, o que aconteceu na minha vida.
Cresci em meio a uma família próspera e pacífica, pelo menos do ponto de vista de uma criança inocente que nada sabe, ainda, do mundo. Éramos quatro: minha mãe, meu pai, meu irmão e, alguns anos depois que nasci, um cachorro. Cinco, em verdade.
Minha memória mais antiga data de quando eu tinha por volta de quatro anos e estava no apartamento em que morávamos — de aproximadamente 90 metros quadrados e que ficava na Rua Alves Guimarães, em Pinheiros. Na sala de estar havia dois sofás: um de dois e outro de três lugares, azuis, um pouco mais escuros que o céu, de tecido macio e gostoso para se dormir ao longo das tardes infindáveis que só uma criança tem. Abrangendo toda a área dos sofás e da mesa de centro estava um tapete de sisal onde eu brincava com meu carrinho, acelerando e freando com as próprias mãos. Nesse momento, minha mãe me disse:
— Filho, acho que está na hora de você começar a ir para a escolinha.
Eu, que nada entendia, disse:
— Tá bom. — e, a partir desse momento, não sabia que teria exatamente mais 13 anos ao lado dela, apenas.
Comecei minha jornada estudantil aos quatro e terminei aos 17 anos — como bem diz o conteúdo programático escolar que temos. Ao longo desse período, sempre estudei em colégio particular: primeiro em uma escola localizada na Rua Cardeal Arcoverde que, na época, chamava-se Panda. Aos seis anos de idade mudei de colégio e fui para um localizado no bairro das Perdizes — Colégio Santa Marcelina —, na Rua Cardoso de Almeida e que, conforme os anos foram passando, tornou-se a minha segunda casa.
No fim desse ciclo, quando estava no segundo ano do colegial, as dificuldades financeiras vieram e a minha vida — e da minha família — mudou completamente de uma hora para a outra. No ano seguinte, já no terceiro colegial, não tínhamos mais dinheiro para bancar os estudos e minha mãe, em todo o seu desespero maternal, conseguiu me matricular em outro colégio, dessa vez o Batista Brasileiro, no qual terminei meus estudos e, após inúmeras batalhas, me formei.
Em paralelo, meu pai, com seus 72 anos, viu suas receitas sumirem de um momento para o outro e desencadeou uma rotina de nervoso contínua, sem ter perspectiva de mudança daquele momento em diante. Seu dia a dia passou de um homem ativo e trabalhador, para a preocupação contínua de manter as contas em dia e prover o melhor para a sua família. Porém, por mais que diversos caminhos fossem traçados na tentativa de reverter a situação, nenhum dava retorno.
Nesse mesmo ano da formatura, senti os sintomas da Síndrome de Crohn, a qual foi desencadeada pelo estresse que passei. Sempre fui do tipo de pessoa que não grita, extravasa, nem compartilha seus anseios, mas sim, sempre guardei minhas raivas e angústias comigo; e isso, meu caro, foi a minha derradeira derrota para a doença.
No auge da minha maturidade de 17 anos, não sabia o que estava acontecendo comigo, apenas desfrutava de longos períodos de cólicas abdominais, sem ter um diagnóstico formado por um médico, nem conseguir me tratar adequadamente para estabelecer a melhor qualidade de vida que tive nos anos anteriores. Lembro-me, com extrema clareza, que passei quase um ano de cama para conseguir cuidar do quadro que nenhum profissional da saúde conseguia descobrir qual era. Para dar uma ideia: em março de 2012, eu já tinha 1,68m de altura. Naquele momento, estava pesando 65 quilos. Em apenas uma semana perdi 11 Kg. E, no final do mesmo ano, subi para 86 quilos. Tudo isso aconteceu por conta dos medicamentos utilizados e das restrições alimentares que tive, pois meu corpo reagia mal a todo o alimento que eu ingeria. Em particular, fui afetado pelas altas doses de cortisona que tomei durante esse período.
No ano seguinte, já em 2013, entrei na faculdade de jornalismo e comecei a trabalhar, pois notei que minha mãe já entrava em uma fase de colapso financeiro derradeiro e que eu precisava ajudar de alguma forma. Além disso, as tentativas de ter algum retorno financeiro que foram empregadas por meu pai não adiantaram e ele, com o estresse acumulado, adoeceu. Consegui meu primeiro emprego em uma academia em que, durante muitos anos, fiz aula de natação. Ganhava 500 reais por mês e aturava uma senhora — a dona da academia — que mais parecia uma bruxa maléfica que maltratava os funcionários — todos — e que tinha uma vida vazia.
Nesse mesmo ano, tudo aconteceu junto. Meu pai, já debilitado, teve um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em janeiro, foi para o hospital e, de lá, nunca mais saiu. Em março, meu cachorro que estava com 11 anos de idade faleceu e, em junho, exatamente no dia 9 daquele mês, minha mãe morreu.
Em suma, uma família que durante meus 17 anos tinha sido composta por pai, mãe, dois filhos e um cachorro, fora desmantelada em pouco tempo e apenas os dois filhos estavam presentes. Meu irmão, na época, morava com a sua noiva e, por inúmeros motivos, fazia meses que não nos falávamos; talvez mesmo, anos.
Perda maternal
Lembro de dar boa noite para a minha mãe e pegar no sono em seguida. Na cena seguinte, acordei ouvindo uma respiração pesada. Levantei para ver o que estava acontecendo e descobri que essa respiração vinha de minha mãe. Nesse momento — caso você, leitor, nunca tenha passado por isso, atente-se às próximas linhas —, sem explicação, um instinto natural despertou em mim, meu estado de recém-acordado foi embora e, como se alguém tivesse sussurrado no meu ouvido, uma frase ficou extremamente clara na minha mente: minha mãe está morrendo.
Nesse instante, de chinelo, bermuda de tactel e camiseta branca, corri para o interfone e chamei o porteiro da noite, Paulo, e disse:
— Paulo, acho que minha mãe está morrendo!
— Kalil, como assim? — ele tinha a surpresa em sua voz, misturada com um leve choque.
— Liga para a polícia!
A policial que me atendeu na central foi solícita e calma, expliquei a situação e ela me contou que estava direcionando uma ambulância para a minha casa e que eu aguardasse. Passados cinco minutos chegou um carro de polícia, dois homens fardados subiram e adentraram a minha casa e, nisso, indiquei onde minha mãe estava. Um dos policiais entrou no quarto para vê-la, tentou acordá-la, mas sem sucesso, enquanto o outro ficava comigo na sala.
Eu, no auge do meu desespero, questionei ao policial “minha mãe está morta, não é?” e o oficial, com sua experiência, apenas me indicava que aguardasse o SAMU.
Quando o chamado completou entre 15 e 20 minutos, os paramédicos chegaram e tentaram ressuscitá-la, acionaram uma ambulância com um médico e tentaram de tudo, mas ela já havia partido. Sem tempo de dizer “tchau”, apenas se foi.
Lembro-me da médica, uma senhora de seus aproximadamente 55 anos de idade, ir ao meu encontro e me dizer “infelizmente, ela não sobreviveu”. No momento, a gente não sabe o que isso significa. A ficha demora a cair e, naquele instante, um bombardeio de informações começou. Papel para assinar, delegacia para ir, BO para registrar, familiares para avisar, tudo uma verdadeira confusão e você, que ficou vivo, apenas senta e espera as coisas acontecerem.
Liguei para um casal de primos que minha mãe havia reencontrado algumas semanas antes após anos sem se falarem e pedi auxílio, no que vieram rapidamente e me ajudaram a passar por aquela fase. Não só me ajudaram como me adotaram.
Em paralelo, liguei para o meu irmão e falei com ele após anos sem termos uma conversa. Infelizmente, foi para dar uma notícia ruim. Encontramo-nos no 14º DP e a noite foi apenas uma criança.
O corpo de minha mãe foi cremado e toda a minha história, então, começava a ganhar um novo rumo que eu jamais imaginaria. Meus medos aumentaram, mesmo que inconscientemente. Minha tristeza se manteve durante um tempo e, acima de tudo, senti-me completamente perdido, sem saber o que fazer, sem entender como a vida funcionava e chocado pelo fato de ter que seguir em frente, mesmo sem ter o apoio que sempre tive durante todos os anos que tinha vivido até então.
Passei por todas as fases: desmontar a casa de minha mãe, fazer o inventário, fazer a mudança das minhas coisas, estabelecer um quarto em minha nova casa, mas, acima de tudo, começar a desvendar o meu novo caminho. Perdi a redoma que me protegia: agora, o mundo viria com tudo, sem filtros, para cima da pessoa que, até aquele momento, eu era.
Enquanto tudo isso acontecia, paralelamente, o processo de luto se instaurava em meu dia a dia sem que eu percebesse. Primeiro, comecei a negar o fato de minha mãe ter morrido. Não diretamente com essas palavras, mas, sim, questionando o porquê daquela situação. O fato de não compreender me angustiava e tornava minha raiva maior. Em seguida, barganhei o fato com terceiros.
Comecei a me questionar quanto ao motivo dela ter partido e não fulano ou ciclano. Mesmo após tantos questionamentos — e sem encontrar as respostas para eles —, entendi que nada poderia fazer e uma tristeza se abateu em mim, de forma a me colocar numa fase de inércia e calmaria. Percebi, então, que nada disso adiantaria. Que ela havia partido, mas que eu, que aqui estava, precisava seguir em frente e construir minha vida, minha jornada, ter minhas conquistas e minha história.
Decidi, então, aceitar que a vida assim é, sem ter todos os porquês para todas as perguntas, mas sim, ter um novo caminho a cada dúvida e a cada provação.
O que pretendo com este livro, então? Justamente registrar esta via-sacra que tantos vivem, uma lembrança e ode à fragilidade humana — e à nossa imensa capacidade de superação e, portanto, fortaleza. São histórias que mostram as fases do luto e como podemos lidar com cada uma delas e passar por esses momentos.
Não se assuste: nas próximas páginas você poderá chorar, rir, ou nenhum dos dois; mas, com certeza, ficará marcado para sempre e se lembrará, mais cedo ou mais tarde, das provações que aqui serão descritas e comentadas.
Crédito das imagens: Hiago Catirsi
Capítulo do livro: “Luto: O processo após a morte de alguém querido“