Ela saiu do trabalho, um salão de beleza nos Jardins, bairro nobre de São Paulo, região da Avenida Paulista, rumo ao centro. O destino era a Avenida Vieira de Carvalho, bem próximo à Praça da República, um dos pontos LGBTs mais movimentados da cidade. O ano era 2007 e ela caminhava ao encontro de um velho amigo para brindar um fim de semana qualquer, mas o que era para ser uma noite de alegria, se transformou no pior dia de sua vida.
Antes de chegar ao bar, Renata foi cercada por nove skinheads. Um deles se aproximou e, sem qualquer palavra, iniciou a agressão. O agressor vestia um coturno com uma placa de ferro: o primeiro chute a fez voar alguns metros; o segundo, atingiu seu rim. Por um momento, Renata deixou de ser o alvo das pancadas, quando toda a raiva dos espancadores foram direcionadas ao seu amigo.
Minutos depois de agredida, Renata foi até a Secretaria da Educação, na Praça da República, pois o local estava sendo protegido pela Guarda Civil Metropolitana, a GCM. Para aumentar a revolta e o ódio, a GCM informou que não poderia ajudá-la.
A dor aumentava, ela precisava ir para casa. Chamou um táxi. Chegando, Renata tentou dormir, mas ficou o resto da noite sentindo muita dor. Às seis horas da manhã, ligou para o Serviço de Atendimento Móvel Urgência, da Secretaria Municipal Saúde (SAMU). Após realizar diversos exames, recebeu o diagnóstico: havia perdido um rim. A partir desse momento, passaria a viver com uma série de restrições alimentares, inclusive carne vermelha, e teria que ingerir três litros de água por dia.
— Quando me recuperei, quinze dias depois, fui atrás da parte burocrática. Fiz o Boletim de Ocorrência para saber o que poderia ser feito. Não conseguimos prender as pessoas, pois as câmeras não pegaram o rosto dos agressores, não foi possível identificar ninguém. Como ficou por isso mesmo, entrei com uma ação contra o Estado. Ganhei em primeira instância, mas eles recorreram e acabei perdendo. O juiz alegou que, por eu “ser assim” e estar naquele horário na rua, a culpa era minha. O sentimento que paira hoje é o de injustiça, esses meninos fazem isso e não existe uma lei que criminalize esse tipo de coisa, pois a lei da homolesbotransfobia ainda está no Senado, mas não tem previsão de aprovação.
A aprovação PL122, Projeto de Lei que criminaliza a homofobia (hoje chamada de homolesbotransfobia, para incluir lésbicas e pessoas trans), é uma luta antiga do movimento LGBT, uma vez que o Brasil é o país que mais mata gays, lésbicas e transexuais em todo mundo: a homofobia é a discriminação e a violência motivadas pela aversão à orientação sexual, consequentemente a lesbofobia refere-se ao mesmo ato contra lésbicas e a transfobia é o preconceito baseado na identidade de gênero, contra pessoas trans; sendo assim, o termo homolesbotransfobia é a universalização da luta pelo fim do preconceito contra LGBTs.
A ineficiência da legislação é frequente. A Lei Estadual 10.948, de 05 de novembro de 2001, por exemplo, condena toda e qualquer forma de discriminação motivada por orientação sexual ou identidade de gênero, mas a agressão à Renata comprova que a previsão legal é ineficiente.
— No momento em que a lei de proibição ao fumo em locais fechados foi sancionada, todos os estabelecimentos tinham placas, já com a lei 10.948, que tem 16 anos, ninguém nunca ouviu falar.
A história de Renata de Morais Pessoa começou há 40 anos, em João Pessoa, Paraíba, cinco dias antes do Carnaval de 1977, que naquele ano aconteceu em 22 de fevereiro. As tragédias a acompanham desde a sua infância.
Dos seus 12 irmãos, apenas ela e mais cinco sobreviveram. Nessa época, a mortalidade infantil no Nordeste tinha números alarmantes: 100 crianças mortas para cada 1.000 nascimentos. As principais causas eram a desnutrição e as infecções respiratórias e digestivas.
Quando Renata tinha sete anos, sua mãe cometeu suicídio: por conta de uma depressão pós-parto, ateou fogo ao corpo enquanto os filhos olhavam pela janela. A partir daí, foram morar com a avó, pois não tinham contato com o pai.
Aos 10 anos, Renata sentia que era diferente. Isso fez com que as coisas fossem difíceis na escola, pois ela sofria muito bullying: levava pedradas por não se encaixar nos padrões.
Renata viveu em João Pessoa até os 17 anos. Em 1994, foi morar com seus irmãos mais velhos em Juazeiro, na Bahia.
— Quando encontrei um dos meus irmãos, ele disse que não iria me abrigar, pois eu era a vergonha da família. Daí fui atrás de outro irmão que me disse que não queria que eu tivesse contato com a família deles, porque eu iria passar a minha doença pras minhas sobrinhas. Eles achavam que eu era homossexual, mas eu sabia que não era, nunca me senti assim.
Quando finalmente Renata notou que era uma mulher trans (toda pessoa que se identifica e revindica o reconhecimento como mulher), ela sabia que não podia continuar em Juazeiro, uma vez que muitas de suas amigas eram assassinadas quando assumiam a transexualidade.
Já que não podia contar com a ajuda da família, procurou emprego em um teatro local, hoje conhecido como Centro de Cultura João Gilberto. Fez aula de teatro e música. Aos 27 anos, decidiu mudar-se para São Paulo. Foi nessa época que escolheu o seu novo nome, Renata Peron, que traz inúmeros simbolismos: Renata, em latin, significa renascida; Peron vem do filme “Evita”, que conta a história de Eva Peron, primeira-dama argentina da década de 40, interpretada por Madonna no filme – a cantora é um dos ícones da cultura pop e uma das mais amadas entre o público LGBT.
Assim que chegou na capital paulista, em 2004, deu início às sessões de hormonioterapia, tratamento com uso de hormônios femininos. Queria se tornar uma cantora conhecida de MPB e samba. Como não tinha família ou conhecidos na cidade, teve que encontrar uma forma de sobreviver sem entrar para a prostituição. Venda de cosméticos, pequenos shows em bares e praças, imitação de estátua: essas foram as formas que Renata encontrou para ganhar a vida.
Durante três anos, entre empregos informais e bicos, juntou dinheiro para realizar a transição, que incluía a lipoescultura (procedimento cirúrgico de remodulação física com o objetivo de eliminar gorduras localizadas) e o implante prótese de silicone, em uma clínica especializada.
Até a finalização do processo transitório, Renata preferia dizer que era uma drag queen em vez de uma mulher trans. Diferente de pessoas trans, a drag é uma personagem criada por artistas que se vestem, ou se “montam”, como preferem dizer, com roupas femininas.
Durante esse período, Renata Peron participou de diversos programas televisivos musicais. Uma dessas aparições, em 2010, foi na 2ª temporada do programa “Qual o seu talento”, espécie de Show de Calouros, transmitido e produzido pelo SBT.
Renata chegou à semifinal interpretando a canção “Canibal”, da cantora baiana Ivete Sangalo. No ano seguinte, também no SBT, participou do Programa do Ratinho, no quadro “Eu também faço”: o desafio era interpretar a música “Como nossos pais” com “voz de homem e voz de mulher”, como anunciou o apresentador Carlos Roberto Massa, o Ratinho.
Além dos palcos, Renata frequentou a universidade. Iniciou a graduação em Assistência Social na Universidade Nove de Julho (Uninove), no campus Memorial, na Barra Funda. Voltar a estudar, depois de 15 anos, foi um desafio: o medo de sofrer preconceito era grande. Mas, a partir do momento que ela decidiu começar, estava determinada a sair de lá com um diploma, disposta a enfrentar o que viesse pela frente.
— Nos primeiros dias, fiz um discurso de empoderamento trans. Deixei claro que se não quisessem ter contato comigo estava tudo bem, contanto que houvesse respeito. Por ser um curso de humanas, havia mais mulheres na sala de aula e apenas três homens, mas fui muito bem recebida por todos eles. Meu sentimento é de dever cumprido, pois lá eu consegui provar que uma travesti pode ser e fazer o que quiser, a única coisa que precisamos é de oportunidades iguais. Foram três anos e meio de curso, me formei no meio do ano passado.
Renata faz parte de uma minoria de mulheres trans que conseguem chegar à universidade. Para se ter uma noção, apenas quatro mulheres trans e travestis possuem doutorado no país: Jaqueline Gomes de Jesus foi a primeira brasiliense transexual a chegar ao doutorado; sua pesquisa é na área de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, curso oferecido pela Universidade Federal de Brasília (UNB). Hoje ela é um dos nomes mais conceituados quando se fala em questões de gênero e está cursando o pós-doutorado em Trabalho e Movimento Sociais na Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro.
Outra mulher trans pós-graduada é Daniela da Silva Prado, que obteve o título de doutora em 2011 após entregar a tese sobre “Brito Broca: comparatismo à francesa” à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH).
Um ano depois, foi a vez de Luma Nogueira de Andrade, com a tese “Travestis na escola: Assujeitamento e resistência à ordem normativa”, entregue à Universidade Federal do Ceará (UFC).
No começo de 2017, Megg Rayara Gomes de Oliveira se tornou a primeira travesti negra a conquistar o título de doutora após entregar a tese sobre Racismo e Homofobia à Universidade Federal do Paraná (UFPR).
No caso de Renata, para conseguir terminar a graduação, ela teve que fazer uma escolha: ou continuava a faculdade ou pagava aluguel. A alternativa encontrada foi morar em um local de ocupação. Hoje o seu endereço é um prédio no centro da cidade, na Rua Conselheiro Nébias, esquina com a rua Vitória, ocupado pela Frente de Luta por Moradia (FLM).
O processo para viver em uma ocupação é conhecer algum líder dos movimentos de moradia e checar se há acessibilidade para pessoas LGBTs. Caso não haja, os movimentos realizam um trabalho de conscientização com os moradores a fim de explicar que, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero, todos estão no mesmo barco e tem o mesmo objetivo: a moradia.
— A ocupação é um espaço de muito respeito, pois todos estão ali com um intuito único. Por mais que haja preconceito velado, eles respeitam as regras de quem administra. Se a pessoa tem uma cabeça boa, ela dita as regras de que todos são iguais e que temos que respeitar todas as pessoas. Aí a galera segue essas regras, não passo nenhum tipo de transfobia nesse lugar. Respeito todos e todos me respeitam. Vivemos bem, dentro das circunstâncias de viver em uma ocupação, pois existem regras, se vai gente na sua casa só pode ficar até nove horas da noite, se alguma visita vai dormir é preciso avisar a administração com antecedência; pra quem não gosta de seguir regras, isso é ruim, mas no mais é tudo bem.
De casa até o trabalho, Renata leva cerca de 20 minutos a pé. Ela trabalha como recepcionista na SP Escola de Teatro, com sede na Praça Roosevelt, 210. A praça, localizada logo ao final da Rua da Consolação, próximo ao Sesc, é um importante epicentro de agitações culturais da cidade. Também é ponto de encontro de skatistas. Além disso, a Roosevelt tem sido palco de dispersão de muitas manifestações políticas.
A SP Escola de Teatro, criada em 2005, é um projeto da Associação Amigos da Praça (ADAAP) e tem como objetivo promover a formação em Arte Cênicas. Atualmente, oferece os cursos de Atuação, Cenografia, Figurino, Direção, Dramaturgia, Humor, Iluminação, Sonoplastia e Técnicas do Palco.
O Diretor Executivo é o ator Ivam Cabral, e a equipe de funcionários é composta por mais de 50 pessoas. Na recepção, além de Renata, há mais três mulheres trans: Brenda Oliver, Kimberly Luciana e Paloma Assunção. Apesar de reconhecer o local como uma empresa inclusiva, Renata tem sua crítica:
— Se você entra aqui como recepcionista, o máximo que você pode ser, ao sair daqui e ir para uma outra instância, é continuar servindo. Por exemplo: uma menina que tava na recepção, agora vai trabalhar numa biblioteca; mas ela não é o cérebro pensante daquele espaço, ela é a menina que arruma os livros, que descarrega as caixas. A menina da produção é uma líder que comanda o grupo e tem autonomia para resolver? Não, ela é uma pessoa mandada. Então a gente não tem carreira. Não é uma instituição que pensou num projeto que faça a travesti ser pensante. Eles avançam em criar um projeto que nos coloca aqui, mas não avança nesse sentido de ampliar esse direito de estarmos aqui; a gente é só demanda de execução de tarefas.
Com uma rotina agitada, Renata divide as horas dos seus dias entre o trabalho e as demais atividades. De segunda a sexta, das 13 até 22 horas, está no trabalho. Como também é atriz, toca três projetos: os ensaios da peça “Pobre Super-Homem – Avesso do Herói” e do monólogo “Bendita sois entre as mulheres”, que retrata a sua vida de forma poética, e as gravações de uma série intitulada “Rotas do ódio”, que será exibida pelo canal por assinatura Universal Channel.
— Vivo tentando conciliar. Quando a gente faz o que a gente gosta, parece que a gente não trabalha. Quando você precisa da grana pra viver, aí se torna chato, quando é pela obrigatoriedade. O que menos gosto das atividades é ir para a SP, pois lá eu sou só recepcionista, o que eu gosto mesmo é encenar, fazer entretenimento.
Renata integra três exceções das estatísticas: está acima da expectativa de vida de mulheres trans e travestis, que é de 35 anos; tem diploma universitário; possui carteira assinada, em uma realidade em que 90% das mulheres trans e travestis estão na prostituição.
Ciente disso, ela entende o papel de líder: seu objetivo é conscientizar pessoas trans sobre os conceitos básicos de políticas sociais, direitos humanos e cidadania. A partir dessa visão, em 2015, ela criou o Centro de Apoio e Inclusão Social de Travestis e Transexuais (CAIS), ONG focada em causas trans:
— Para se ter uma instituição, você precisa ter muita determinação e garra, e saber que quando você assume uma coisa como essas, você se torna luta. Então você tem que assumir a responsabilidade total.
Em dois anos, a CAIS realizou ações como o projeto “Sou trans, quero dignidade e …”, que a cada ano contará com um complemento. Em 2016, o tema foi “Quero dignidade e respeito”. Neste ano, além da “2ª Caminhada Pela Paz” realizado na véspera do Dia da Visibilidade Trans, comemorado em 29 de janeiro, o tema “Sou trans, quero dignidade e emprego”, conta com o subprojeto K-lendárias.
Trata-se de um documentário realizado em parceria com a Ponte Jornalismo, como também um calendário com 12 personagens, sendo quatro mulheres trans, quatro travestis e quatro homens trans. Eles e elas representam as profissões dos seus sonhos.
O intuito do K-lendárias é mostrar a importância da inserção de pessoas trans no mercado de trabalho. Paralelo a esses projetos, a CAIS iniciou no mês de abril de 2017 discussões sobre cotas junto à Câmara Municipal de São Paulo.
— Vamos apresentar na Câmara dos Vereadores um projeto sobre cotas para pessoas trans, uma vez que há cotas para negros e deficientes. Queremos cotas em concursos públicos municipais, estaduais e federais, e em empresas privadas. Nós contatamos a assessoria do vereador Toninho Vespoli (PSOL) e agora estamos aguardando a reunião com os demais vereadores para apresentar a nossa ideia. Além do Toninho, temos o apoio de Sâmia Bomfim (PSOL) e de Eduardo Suplicy (PT). Pode ser que isso não seja aprovado, há muita chance de não ser, mas precisamos fomentar essa discussão. Como exigir que a travesti e a transexual largue a vida da prostituição sendo que não há um projeto que a ajude a obter colocação no mercado de trabalho? Uma discussão que a CAIS quer promover é o fato de que somos pessoas e pagamos impostos. Temos tantos deveres, agora precisamos ter algum direito.
Aos 40 anos, Renata se sente realizada em algumas coisas e frustradas em outras. Entre as suas realizações estão o emprego formal, o diploma e a presidência da CAIS; já nas frustrações, não ser conhecida nacionalmente como cantora e a dificuldade de encontrar um homem que a ame e a assuma. Assim como a Luiza, personagem do primeiro capítulo deste livro-reportagem, as desilusões amorosas fizeram com que Renata tivesse medo de se jogar em um relacionamento, pois é muito difícil para uma travesti ser reconhecida e apresentada como companheira de um homem.
Renata é uma das figuras mais conhecidas no meio LGBT, possui um DVD e um álbum em homenagem a Noel Rosa, além de três álbuns independentes. Ela planeja conseguir uma sede própria para o CAIS. Hoje as reuniões acontecem numa pequena sala emprestada pela SP Escola de Teatro.
— Fizemos dois anos agora e precisamos organizar toda a papelada e a documentação pra conseguir alugar um espaço. Aí sim poderemos abrir as portas para o público. A minha ideia é fazer um café filosófico, convidar travestis para ouvir e serem ouvidas, trazer pessoas do meio acadêmico para conscientizar essas meninas quanto à importância de saber como e onde reivindicar os seus direitos — onde ir, quem buscar, saber o que fazer em cada tipo de situação.
Crédito da ilustração: Marcela Saraiva
Capítulo do livro “Transresistência: histórias de pessoas trans no mercado formal de trabalho“