“Enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara…”
Lenine – Paciência
A história de Verônica é contada pelos olhos da psicóloga Marina Moreira, graduada pela Universidade Uniban e especialista em Psicopatologia, Psicofarmacologia e Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), em 2008. Marina já atuou em mais de 200 casos envolvendo homens ex-presidiários e chegou a acompanhar o estado clínico de quarenta e cinco egressas.
Com toda a sua bagagem na profissão, nunca chegou a presenciar um quadro em que o paciente tenha retornado ao mundo do crime, mas já vivenciou momentos de pura tensão. Um deles, quando ainda atuava em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Franco da Rocha no atendimento aos adolescentes da Fundação Casa, e em uma consulta rotineira, um jovem de 13 anos de idade, com o corpo mal desenvolvido e severamente magro ordenou: “E aí tia, faz aí o papel que eu quero voltar pra casa”, segurando uma faca e apontando para o pescoço da psicóloga. A carta referia-se à autorização dela sobre o retorno do garoto para a Fundação Casa. Mas, antes de o menino sumir pelos corredores da UBS, ela perguntou: “Por que você quer voltar pra lá?”. E com a resposta na ponta da língua, ele respondeu: Porque lá eu como pipoca, tia. E não apanho da minha mãe”.
Marina chegou a escutar a morte bater em sua porta ao ser assaltada no próprio consultório, onde presta atendimento há treze anos para juízes, advogados, delegados, além de egressos e ex-presidiárias. Felizmente, no dia seguinte, quando foi abrir um boletim de ocorrência, já tinham devolvido todos os seus pertences.
— Eles me respeitavam ali demais, demais, demais! Então, eu acho que foi algum deles que me assaltou, e aí quando viram a minha identidade, falou: “poxa, é a doutorinha do meu filho”. Eles me devolveram tudo e ainda colocaram dinheiro extra.
Mesmo com toda a sua formação técnica e preparatória para lidar com a carga emocional das pessoas, não existe maneira certa de encarar quando você se apega a uma situação. A de Verônica, por exemplo, foi totalmente inusitada. Nascida no estado de Minas Gerais, a moça mudou-se para São Paulo aos 12 anos de idade, quando ainda era uma menina. Seu histórico marcado por abuso sexual dentro da família e abandono dos pais fizeram a moça procurar abrigo nas ruas de São Paulo. E para sobreviver entrou no mundo da prostituição, daí em diante, a passos curtos, caminhou para as drogas.
Mas Verônica era ambiciosa e o seu coração ansiava por abrir o seu próprio negócio. Juntou toda a sua renda, economizou nos gastos e investiu o seu faturamento em um negócio certeiro: um prostíbulo. Aos poucos, a casa mudava a estrutura simples, dando lugar a um ambiente ostensivo com direito a homens responsáveis pela segurança do local. Foi justamente um desses salvaguardas que o coração de Verônica escolheu para se apaixonar. A moça, que tinha perdido sua virgindade atuando como garota de programa, aos 31 anos, tinha se tornado uma mulher de corpo e alma. E mesmo sendo a empresária que tinha tudo o que desejava, na hora que lhe convinha, ela só teria de aprender a conviver com a rejeição de seu amor entregue ao seu próprio funcionário, que a olhava sem distinção das outras mulheres daquele lugar.
Foi em uma noite comum que Verônica provou o veneno da traição. Depois de contratar Licinha, uma garota virgem para trabalhar na casa de prostituição e leiloar a sua virgindade em alto valor, a agenciadora sentiu o peso da traição dupla. Encontrou em um dos quartos da danceteria, Sérgio, o seu homem e Licinha, em meio ao ato sexual. Sem pensar nas consequências, como forma de vingança, pegou o único objeto que tinha visto em um criado mudo daquele aposento: a arma do segurança. Sem cogitar, ela atirou nos dois, que se encontravam despidos, na cama. O casal faleceu na hora.
Uma funcionária, que tinha se assustado com os disparos, subiu até o segundo andar para conferir se estava tudo bem. Verônica, com medo e assustada com toda a situação, atirou novamente, fazendo a sua terceira vítima. Ela foi presa e levada para o presídio de Franco da Rocha no mesmo dia.
Marina conheceu Verônica por meio das cartas trocadas dentro do presídio. A psicóloga, que nunca tinha atendido um paciente de forma tão tecnológica, agiu da maneira que julgou ser o mais correto.
— Eu falei: Não posso ser sua psicóloga, mas eu posso te ouvir. É a Marina, não é a psicóloga, — escreveu Marina, em uma carta como resposta à Verônica.
As cartas foram trocadas por, pelo menos, três anos. Verônica já tinha completado dois anos, quando foi autorizada pela doutora a conversa por cartas. As duas só se conheceram quando a mulher entrou em regime semiaberto e passou a frequentar as consultas rotineiras. O processo de desmistificação da maneira como Verônica enxergava o sexo e a superação dos traumas gerados ainda na infância foi árduo, mas necessário. E mesmo após o tratamento, Verônica ainda estava ligada à sua antiga vida.
— Ela disse que queria voltar, mas queria ser a prostituta funcionária. E aí foi e não voltou mais — respondeu a psicóloga.
— Como você soube da morte? — perguntei, curiosa.
— A amiga dela de lá me achou. E aí ela me avisou “Você estava certa, mataram ela!”.
— E quando você a avisou? — indagou Natália.
— Eu disse que aquela volta pra ela, era a primeira ida da vida dela. O ser humano está em transformação, e ela se modificou muito, estava voltando com o corpo de mulher, com a ganância de mulher, mas com a ingenuidade de uma moça rejeitada e apaixonada — explicou Marina, com a voz fria.
Verônica voltou para São Paulo, no mesmo lugar onde ocorreram as três mortes para trabalhar da única forma que julgava saber, quando foi assassinada.
— Você ficou chocada como pessoa quando soube do assassinato? — questionei.
— Quando um paciente seu morre, morre uma parte sua também.
Capítulo do livro: “O sol não é mais quadrado: a vida de ex-presidiárias na sociedade”