Será que alguém vai querer me apresentar para a família algum dia?

publicado na Ed_16_jul/set.2020 por

“Queimadenses, eia avante, prossigamos sem temer, nossa história é de lutas”. Esse trecho do hino de Queimados, cidade da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, sintetiza muito bem o início da vida de Lucas da Silva Gonçalves. Nascido no dia 30 de abril de 2002, em Queimados, sua vida teve o primeiro impasse ainda no parto. A cesariana de sua mãe, Cleide Lúcia da Silva Gonçalves, não saiu como planejada.

Lucas nasceu, mas uma hemorragia pós-parto deixou sua mãe em estado grave por horas. Naquele momento, Cleide decidiu que se sobrevivesse, não teria mais filhos. E, de fato, manteve a decisão. Pós-operatório finalizado, mãe e filhos salvos. Porém, a complicação na cesariana deixou sequelas.

— Eu nasci com os pés congênitos (tortos), minha mãe teve de passar por vários desafios comigo e escutou muita coisa por minha causa. Eu só comecei a andar com 2 anos de idade, durante a festa do casamento de um tio.

Depois de duas cirurgias e muita fisioterapia ao longo da infância, Lucas conseguiu superar as dificuldades físicas. Além de sua mãe, as inspirações para sua recuperação foram as personagens femininas dos desenhos animados que assistia na TV. Heroínas não só da ficção, mas também de sua vida: Barbie, Três Espiãs Demais, Polly e O Clube das Winx.

O interesse pelas personagens, no entanto, era em segredo, pois Lucas e a família eram frequentadores de uma igreja protestante.

— Eu sempre tive medo das pessoas me flagrarem assistindo essas coisas por ser ‘coisa de menina’, então eu fingia que estava dormindo ou que tinha colocado no canal sem querer.

Conforme crescia, Lucas começava a externalizar suas preferências, evidenciando cada vez mais a discrepância entre suas atitudes e a de seus primos. Com relação às brincadeiras, ele sempre preferiu a companhia e as bonecas das primas.

— Mas quando um adulto ou primos mais velhos chegavam repentinamente, eu escondia a boneca e pegava o meu Max Steel.

Com isso, Lucas passou sua infância com receio de transparecer suas predileções e se esquivando da crítica dos familiares.

— Eu omitia meu lado afeminado porque os adultos sempre me falavam que era errado. Com 10 anos, eles diziam para eu falar mais grosso e ter postura de garoto da minha idade.

*

Contudo, não era possível se esconder para sempre. Em fevereiro de 2013, Lucas foi transferido para outra escola. Apesar dos novos colegas, os desafios eram os mesmos de sua instituição anterior. A puberdade, no entanto, respondeu questões latentes desde a infância na mente de Lucas.

— Depois de alguns meses, eu comecei a me enturmar com o pessoal da sala. E, pela primeira vez, eu comecei a sentir interesse por um colega de classe.

John Michael, de pele branca, cabelo castanho claro, um metro e setenta de altura e barriga trincada, foi o primeiro crush de Lucas.

Ambos participavam da mesma roda de amigos e, certa vez, durante o intervalo de aula, uma situação inusitada aconteceu.

— Ele se aproximou de mim e perguntou se eu gostava de pornografia, pois ele tinha bastante desse conteúdo no celular.

Inicialmente sem reação, Lucas respondeu positivamente e John mostrou-lhe o vídeo de um casal heterossexual tendo relação íntima.

— Ele me disse que o corpo dele era parecido com o do homem no vídeo e perguntou ‘Você quer ver?’. Eu fiquei super nervoso e respondi que não.

Apesar da resposta negativa, Lucas sonhou, na noite daquele dia, que ambos namoravam no banheiro da escola.

— Mas tudo ficou apenas na imaginação. Depois daquele dia, ele nunca mais falou comigo sobre nenhum assunto envolvendo sexo.

Após o sonho erótico com seu colega, Lucas teve certeza de sua homossexualidade e começou a se expor mais. Seu círculo de amizade aumentou e também a sua participação em sala de aula. Lucas recebia elogios dos professores e boas notas por suas respostas quase sempre acertadas.

Mas se a exposição lhe trouxe um boletim azul, também lhe trouxe muitos problemas. Afinal, ele agora era observado não somente pelos mestres, mas por demais alunos, inclusive os de fora de sua turma. A exposição estimulava o bullying dos garotos contra Lucas, especialmente devido a sua voz fina.

— Enquanto estava na fila do refeitório, eles batiam na minha nuca. Também me lembro de um garoto que sempre perguntava se eu gostava de mulher. Então eu contei para minha mãe e ela foi na escola. Pelo menos naquele dia, ninguém me perturbou mais.

Na igreja, a mudança de Lucas foi igualmente notada. No entanto, a represália por causa de seu comportamento expressivo ocorreu sutilmente.

— Uma vez meu líder de dança me chamou para conversar e pediu para eu mudar meu jeito de dançar e também apagar as fotos no meu Facebook, pois não eram legais.

Para Lucas, o líder não concordava com o modo afeminado dele, pois isso era péssimo para um menino da igreja.

Na família, a transformação de Lucas foi negligenciada durante um tempo, pois um problema de maior gravidade — sua mãe foi diagnosticada com câncer de mama — surgiu. Tendo todas as atenções voltadas para os cuidados médicos dela, incluindo a de seu pai, Willian de Azevedo Gonçalves, Lucas não teve coragem de revelar sua orientação sexual para os pais por medo de agravar a situação. Os únicos familiares que sabiam da verdade eram seus primos, que lhe ajudavam a encarar a situação de sua mãe com mais esperança.

Parte de seu acalento se originou também na escola. Conforme crescia e as pessoas se acostumavam com seu comportamento, o bullying cessava. Em 2017, ao mudar de escola novamente, Lucas teve receio de enfrentar novos problemas por conta de seu jeito. Contudo, a realidade foi inversa.

— No ensino médio, eu conheci pessoas incríveis que não me julgavam por eu ser afeminado. Pelo contrário, sempre me trataram com muito amor e carinho. Depois de um tempo me aceitei e não me importei mais com a opinião alheia. Só queria ser eu.

Embora, até então, seus pais ainda não estivessem cientes de sua homossexualidade. Sua mãe ainda estava em tratamento. A mama havia sido retirada, porém, uma metástase agravou sua condição. Lucas entendia que não era o momento certo para se abrir, mas sim, de aproveitar o tempo com os pais.

Mesmo depois de diversas intervenções e sessões de quimioterapia, a mãe de Lucas faleceu em 2018 sem saber da homossexualidade do filho.

— Eu nunca tive a oportunidade de contar para minha mãe e isso partiu o meu coração. O que me deixou mais conformado é que depois de um tempo da morte dela, minha tia me relatou que durante um de seus passeios juntas, ela confidenciou me aceitar como eu era. Saber disso me deixou com o coração aquecido.

*

Agora, morando com seu pai apenas e sem distrações, foi difícil para Lucas esconder a verdade dele. Assumir-se homossexual para seu patriarca não aconteceu de maneira planejada.

— Um dia meu pai pegou meu celular e achou os grupos gays no WhatsApp. Ele viu e me chamou para conversar posteriormente.

Durante a conversa, Lucas contou que era gay. A reação inicial não foi favorável, mas o desfecho foi amigável.

— Meu pai surtou e começou a falar sobre a Bíblia e que eu deveria morrer, que tudo era errado, que não poderia gostar de homens. Eu fiquei muito mal. Mas passado um tempo, ele não comentou mais sobre o assunto. Hoje ele age como se eu nunca tivesse dito nada.

Ao finalmente se admitir gay para a família, Lucas pode deixar-se se apaixonar. E o amor chegou em sua vida no último ano do ensino médio, em 2019, quando trabalhava com amigos na biblioteca do colégio. Por meio de uma amiga, Lucas conheceu Allan de maneira inesperada.

— Eu precisava entregar um livro para Karim, quando a encontrei, ela estava conversando com um rapaz. Negro, olhos castanhos, alto, cabelo escuro. Fomos apresentados, mas sem querer atrapalhar o papo deles, eu apenas entreguei o livro pra ela e fui embora.

Lucas não ficou para a conversa, mas depois daquele dia, não tirou mais Allan da cabeça. Para sua sorte, o reencontro de ambos ocorreu dias depois.

— Eu fui à uma loja com uns amigos e aproveitei para vasculhar alguns livros enquanto eles estavam em outra seção. Acabei encontrando o Allan. Ele me cumprimentou, mas logo se despediu. E eu não pude deixar de reparar no quanto ele era atraente.

Num misto de paixão e atração, Lucas nem desconfiava, mas o próximo encontro dos dois iria mudar sua vida. Na segunda-feira posterior ao encontro na loja, ele o viu no corredor da escola.

— Eu estava atrasado, mas não pude deixar de falar com ele. Ele me abraçou e sussurrei no ouvido dele para me abraçar mais forte, e assim ele fez. Naquele momento, eu senti que poderia tentar algo mais.

*

No mesmo dia, Lucas e Allan se encontraram no final da aula para irem embora de ônibus. No trajeto, ambos descobriram gostos em comum. Sendo um deles, a admiração pelo youtuber Klébio Damas, um dos maiores do Brasil sobre cultura LGBTQIA+.

No meio do caminho, ambos decidiram ir para a casa de Lucas e assistir aos vídeos recentes do youtuber. E, entre um vídeo e outro no sofá, o primeiro beijo aconteceu. O sentimento juvenil, no entanto, transformou aquele simples beijo em algo mais. Na semana seguinte, Lucas pediu Allan em namoro. A resposta foi negativa, mas Allan garantiu que eles poderiam manter uma relação casual.

E foi assim durante meses. Na escola, eles eram mais reservados, mas fora dali, não tinham receio de nada. Lucas, porém, não se contentava apenas com beijos periódicos, ele queria dar os próximos passos, e foi nessa tentativa de avançar que Allan, pela primeira vez, revelou a faísca de uma chama que iria causar-lhe dor.

— Ao fim de uma aula, pegamos nossas coisas para ir embora caminhando. Ao chegar na rua onde tínhamos de nos despedir, eu pedi para acompanhá-lo até a casa dele. Sem precedentes, ele ficou bravo comigo e disse não. Eu tentei convencê-lo, mas desisti. Deixei-o e fui embora sozinho.

Para Lucas, a atitude de Allan foi um tanto inesperada, tendo em vista que ele não escondia sua sexualidade. Ainda assim, o casal conversou e tudo parecia bem, até que, dias depois, Allan mencionou uma festa que daria em sua casa.

— Eu perguntei se poderia ir, pelo menos como amigo. Ele disse não.

A resposta foi decepcionante, porém, a justificativa foi ainda pior.

— Sem pestanejar, ele disse que não me levaria pois acreditava que a família dele não estava preparada para lidar com um menino afeminado. Ele tinha vergonha de mim. Eu era ótimo, desde que sua família não soubesse.

Depois desse dia, Lucas e Allan mantiveram contato, mas nunca mais a relação foi a mesma. Apesar disso, o relacionamento se deu por mais algum tempo. No fim do ensino médio, a despedida prevista foi adiada, pois Lucas e Allan decidiram se reencontrar em fevereiro, após Lucas voltar de uma visita à casa da tia, em São Paulo.

Ambos mantiveram contato durante as férias. Entretanto, ao retornar para Queimados, Lucas descobriu que Allan já estava envolvido com outra pessoa. Em quarentena devido a pandemia de COVID-19, Lucas avalia sua relação com Allan como um aprendizado para ter sempre mais amor próprio.

— Espero que dê tudo certo na vida dele e que seja feliz. Eu estou muito bem, aproveitando para me aprimorar. Passei muito tempo enaltecendo alguém que não deveria. Mas de vez em quando, paro e penso: será que algum dia, alguém vai querer me apresentar para a família ou vai ser sempre escondido?

Crédito da ilustração: Kate Scarpi

Capítulo do livro: Gay Demais Para Ser Levado a Sério

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