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A humanidade olha para cima

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Telescópio Espacial James Webb descortina um universo antes invisível e a curiosidade humana vence ao nos fazer olhar para cima, enquanto a natureza clama que olhemos para a Terra

O horizonte irreconhecível, milhões de graus celsius fervem a superfície do planeta que já não abriga mais vida. A água evapora, a matéria orgânica desintegra e o futuro dessa massa de terra perdida no espaço, que, um dia, já esteve a 149.600.000 km de distância do Sol, agora se encontra perdido no meio do plasma solar. A humanidade, se ainda estiver viva, só pode observar de longe, impotente, o destino do planeta natal ser definido pelas leis cósmicas. Esse é o futuro do Sistema Solar nos próximos bilhões de anos. Antes de esgotar seu combustível, uma fase de aquecimento gradual já deverá ter tornado sua orla interior inabitável. No fim, nada de explosões, pois o gigante de hélio que possibilita a vida na Terra é pequeno nas dimensões estelares, assumindo um diâmetro 100 maior do que hoje como resultado de sua fase como gigante vermelha, restará, então, uma nebulosa planetária espetacular. Ainda haverá humanos? Teremos outra casa?

Perguntas não respondidas que deverem guiar os ímpetos científicos nos próximos séculos. Enquanto isso, enquanto temos casa, os olhos que insistem em olhar para cima tentam ser guiados para baixo, para frente, para os lados. A comunidade ambientalista alerta que, se não mudarmos os hábitos e tentarmos recuperar a Terra, não haverá local para treinar nossos impulsos descobridores: para conquistar as estrelas, precisamos dos recursos e das estruturas desse planeta azul que abriga a vida mais rara do universo, a inteligente.

E é essa inteligência que tanto nos impulsiona quanto nos atrasa. Não foi só a curiosidade humana que levou nossos ancestrais recentes a explorar a Lua na primeira corrida espacial. A narrativa da Guerra Fria foi necessária para conseguir apoio público nos investimentos bilionários que a Agência Espacial Norte-Americana (NASA) precisava para fincar a bandeira azul, vermelha e branca estrelada na superfície do nosso satélite natural.

Mais de 50 anos depois, uma nova corrida espacial colocou multibilionários no tabuleiro da conquista do sistema solar: turismo em Marte, carro no espaço, o homem mais rico do mundo deixando a atmosfera em uma nave de formato peculiar. Se o rico é pop, a NASA consegue um engajamento espontâneo ao divulgar seus novos investimentos, como o Telescópio Espacial James Webb (poderosos óculos da humanidade para o universo distante) e a Missão Artemis (com a exploração não-tripulada da Lua).

Olhamos para cima

Se há uma diferença primordial da sociedade contemporânea em que vivemos para a distopia com pitadas de realidade do filme Don’t Look Up (2021), de Adam McKay, é que olhamos para cima com tamanha intensidade, que as vezes esquecemos do que está a nossa frente. Talvez porque, mais do que ver o infinito do firmamento, o céu nos mostra algo mais enigmático: o passado. A astrofísica Alejandra Romero, formada pela Universidade de Buenos Aires e professora na UFRGS, explica a importância do James Webb para a ciência e seu funcionamento.

“Quando a gente fala, na Astronomia, de mais longe, nós estamos falando de mais atrás no tempo. (…) Este é um telescópio infravermelho, ou seja, ele não é ótico como o Hubble, ele observa o calor (…) e os humanos não enxergam, porque os humanos não enxergam o infravermelho.”

O Telescópio Espacial James Webb (TEJW) foi lançado no dia 25 de dezembro de 2021, custando um total de 8,8 bilhões de dólares. É o maior, mais caro e mais complexo projeto de observação já produzido pela humanidade. Posicionado a 1,5 milhão de quilômetros da Terra, o TEJW possui um espelho 2,5 vezes maior do que o Hubble, até então a mais poderosa janela para o universo distante.

Já sobre a missão Artemis, a doutora em ciências físicas elabora que é um tipo de projeto mais voltado para a colonização de outros corpos celestes. “Se começa com a Lua, que é o objeto que está mais perto, que é um objeto que já foi visitado, então de certa forma a gente já ‘conhece’.” Apesar disso, destaca que levar humanos para outro lugar ainda é uma tarefa muito difícil, visto que somos uma espécie totalmente otimizada para realidade terrestre. “Morar em um ambiente que não tem oxigênio, que não tem uma atmosfera como a nossa. (…) Então, uma coisa é levar um robô e o pulo para levar humanos é um pulo bem grande, e, por isso, que está se atrasando o tempo todo.”

Alejandra fala sobre os sucessivos adiamentos da Missão Artemis. Já foram duas tentativas de lançamento canceladas, a próxima seria no dia 27 de setembro, mas a NASA ainda encontra vazamentos nos foguetes de combustíveis. É importante ressaltar que os foguetes da Artemis são os mais poderosos já construídos, o SLS (Space Launch System), com poder de propulsão 15% maior do que o Saturn V, das missões Apollo. A Missão Artemis I busca colocar o módulo Orion (também maior do que a Apollo) na órbita da Lua, tripulada com manequins em tamanho real para simular humanos. É o primeiro passo para a volta do homem à Lua, já que, até 2025, a NASA planeja enviar pelo menos quatro astronautas para o Polo Sul do satélite natural, território inexplorado. São 93 bilhões de dólares (R$471 bi) investidos no projeto, que pretende estabelecer um módulo lunar fixo abrir caminho, também, para a exploração de Marte.

Alejandra Romero finaliza fazendo um balanço sobre as prioridades da ciência:

“A questão da preservação do meio-ambiente também é uma pergunta que eu me faço, (…) na minha opinião é muito mais fácil investir no meio-ambiente que na exploração espacial e muito mais barato. Se poderia fazer as duas coisas, eu acho. (…) Sanar o meio-ambiente é uma questão muito mais política do que científica, eu vou te dizer, por toda questão econômica da exploração de recursos naturais não renováveis, como o petróleo, ao descarte de lixo, a contaminação do rio etc. (…) É mais fácil vender um sonho de morar em outro planeta, talvez, que lutar contra toda uma estrutura, um monstro, do sistema econômico mundial. (…) Procurar um novo lar, se isso acontecer, vai ser um lar para poucos, não vai ser um lar para todos. É bom explorar outros lugares, mas sempre levando em conta que a Terra deveria ser uma base de onde a gente sempre pode voltar.”

Espaço: arma de guerra

Espaço e política sempre estiveram interligados, na primeira corrida espacial, os soviéticos colocaram o primeiro homem no espaço, Yuri Gagarin, e os americanos o primeiro homem na Lua, Neil Armstrong. Com o passar das décadas governos tiveram que lidar com a opinião pública a respeito dos investimentos na área. Os desastres com os ônibus espaciais Challenger, em 1986, e Columbia, em 2003, exigiram o posicionamento dos líderes americanos e o reposicionamento da NASA. Na última década, uma nova corrida espacial se desenhou com a entrada de bilionários do tabuleiro do espaço. Muitos já olham para a possibilidade de turismo em locais como Marte, e nos minerais que o sistema solar possui e podem ser explorados.

Para Fabrício Pontim, professor de Direito e Relações Internacionais da Universidade LaSalle, mestre e doutor em Filosofia, essa nova era de interesse pelo espaço vai desafiar as relações público privada e pode ser uma nova arma de poder para governos.

“Ela (a corrida espacial) era, sobretudo, uma forma de demonstração de poder militar e precisão. Quando você consegue pegar um foguete, mirar num lugar na Lua e colocar um satélite exatamente naquele lugar, você está dando um recado sobre o seu poder de precisão. (…) Você tem essa visão romântica, (…) entender o universo, o cosmos, tem essas imagens bonitas que a gente produz. (…) Claro, e que bacana que a gente está falando disso, mas, não dá para esquecer, o principal fator aqui é de infraestrutura, é militar por um lado, e eu acho que é interessante de ver tantos bilionários se interessando, investindo diretamente em um núcleo que é bastante militar. (…) Um foguete é um item balístico, ele é um míssil. (…) Geopoliticamente, isso é interessante também, porque a gente não sabe quem é que vai ser o dono do espaço.”

“No espaço, ninguém pode ouvir você gritar” — a famosa frase de divulgação do filme Alien (1979), de Ridley Scott, possibilita uma reflexão necessária para o futuro da exploração espacial: por convenção, as leis da Terra se aplicam, também, para o espaço, mas o que acontecerá se alguém reclamar um pedaço de Marte para si? Como limitar o poder dos bilionários nesse território inóspito? Como vai ser a opinião pública caso um crime ou um acidente ocorram nas próximas missões? Sobre este último ponto, Pontim comenta. “A regulamentação do espaço ela é um pouco opaca. O consenso é que crimes espaciais são regulamentados pela Convenção de Genebra. Mas nunca teve um crime no espaço, ninguém nunca acusou alguém de roubar recursos no espaço”.

Sobre o papel do Brasil nesse cenário, as finanças do país indicam uma mínima chance de investimentos em um curto prazo. “O que a Agência Espacial Brasileira tem de interessante é a localização geográfica, e, mesmo assim, o Bezos (Jeff Bezos) e o Musk (Elon Musk) lançam da Guiana (Francesa), mas não se lança daqui, do Norte do Brasil. Porque o Brasil poderia ter um espaço-porto, mas isso requer dinheiro, investimento”.

“O futuro do Programa Espacial Brasileiro, neste momento, é totalmente inexistente. Pode mudar, mas eu não vejo como, não no curto prazo teria que mudar muito a balança comercial brasileira. Por que é, literalmente, a coisa mais cara que um Estado pode fazer, e tem um custo político: os Estado Unidos vão olhar para o Brasil e dizer “ué, mas por que vocês estão interessados em segurança espacial? Esse é nosso papel na Organização dos Estados Americanos”.

Não olhamos para baixo

Olhar para as estrelas é fascinante, e é um ato que conduziu diversas civilizações através dos milênios, desde o desenvolvimento da astronomia até o místico ligado às religiões, o zodíaco e a astrologia. Olhar para cima impactou as culturas e a ciência ao redor do globo, mas este ato não pode impedir que olhemos para a Terra, necessário exercício de atenção ao que vem ocorrendo ao nosso redor. Ambientalistas do mundo inteiro vêm alertando para o aumento da temperatura terrestre há décadas. Nos últimos anos, esforços para reduzir o impacto do aquecimento global motivaram a firmação de acordos, como o da Conferência do Clima de Paris, em 2015, onde os governos se comprometeram em reduzir as emissões de gases do efeito estufa até 2030 — tentativa desesperada de frear o aumento da temperatura na Terra, que, em 2016, atingiu 1° (um grau) de anomalia pela primeira vez.

“Os últimos seis anos foram os mais quentes registrados desde 1880, sendo 2016, 2019 e 2020 os três primeiros, de acordo com um comunicado de imprensa da Organização Meteorológica Mundial (OMM) em 15 de janeiro. O ano 2020 foi de 1,2°C acima das temperaturas da era pré-industrial (1880).” O aumento alarmante da temperatura global (unep.org)

Para Carlos Durigan, mestre em ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e diretor da WCS-Brasil (Associação para Conservação da Vida Silvestre), é necessário fazer um arranjo melhor dos investimentos e direcionar recursos que abranjam todas as áreas da ciência, sem privilegiar apenas um setor. “Hoje, nós temos no planeta uma prioridade que é melhorar a forma como nós vivemos e produzimos (…) e reduzir os impactos que nós causamos como espécie, como sociedade”, diz.

Sobre a dicotomia em que vivemos entre os investimentos extravagantes na exploração espacial e o pouco tempo que ainda temos para reverter os colapsos ambientais e climáticos, Durigan avalia:

“muitas dessas fortunas do planeta (…) estão relacionadas às ações destrutivas, (…) como a exploração de petróleo e gás, a mineração em larga escala… Então, nós temos aí, digamos, até uma dívida dessas grandes fortunas no tocante à processos de compensação, e mesmo de reparação, dos estragos causados”.

O ecologista ressalta que as descobertas científicas relacionadas ao espaço são, também, úteis na sobrevivência da espécie humana no futuro, contanto, o futuro próximo urge da necessidade de abrandar a degradação do planeta.

“reduzir emissões para conter o avanço da mudança climática global, (…) conter o desmatamento em áreas naturais, promover restauração florestal. Inclusive, essas atividades elas também geram (…) recursos. Quando nós temos essas ações em curso, elas, inclusive, contribuem na melhoria na forma de produzir riquezas.”

A pegada humana na Terra

Não há como impedir o avanço científico da humanidade nos conhecimentos do universo — e sequer há a necessidade. Os próximos anos devem demonstrar um aumento do movimento político e privado de interesse espacial, com mais imagens extraordinárias do Telescópio Espacial James Webb, além de informações de novas missões para explorar a Lua, Marte, e todo o Sistema Solar. Bilionários encontraram no espaço uma nova forma de arrecadar recursos para aumentar suas fortunas, e transformaram essa busca em um reality show midiático para ter a opinião pública ao seu lado. É necessário senso crítico para distinguir as intenções daqueles que veem nos territórios inexplorados da galáxia a chance de obter mais poder: o interesse científico deve ser nosso maior impulsionador, visto que recursos públicos são investidos no setor.

Para além de acompanhar os pioneiros momentos de conquista do espaço, a sociedade contemporânea não pode mais fechar os olhos para a situação do planeta Terra. Chuvas torrenciais alagam o Paquistão, tempestades tropicais devastam o Caribe, a Indonésia afunda sob o nível de água que sobe, secas e queimadas são registradas da Austrália a Califórnia, ondas de calor varrem a Europa e calotas polares se desprendem dos blocos continentais da Antártida e do Ártico. Olhar ao redor, para esse planeta azul que Caetano Veloso cantou quando saíram as primeiras imagens da Terra vista do espaço, hoje, é mais doloroso do que poético. Guerras e fome tiram o foco pela luta de preservação do meio-ambiente. Durante a pandemia, um terço do Pantanal pegou fogo. Mais do que eleger líderes que ajudem no combate à destruição, é necessário fornecer o exemplo e se interessar pelas questões ambientais.

Queremos olhar cada vez mais longe, nos sentires nas estrelas, vagando pela velocidade da luz, como em Star Wars. Lutando contra esse impulso tão humano, com a cabeça na Lua, olhar para Terra se torna mais do que um ato de perceber o redor, mas olhar para baixo. É como se nosso ponto de observação fosse a Estação Espacial Internacional, ou os telescópios vagando pelo sistema solar, talvez os satélites na atmosfera — que tanto retransmitem as séries que vimos daqui. Olhamos para cima, esperando que as estrelas deem um sinal, e a mais próxima delas nos avisa, sob altas temperaturas, que ainda vai nos engolir.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(A Flor e a Náusea — Carlos Drummond de Andrade)

Crédito das fotos: Israel Dideoli
Publicado originalmente em: Medium.com

“A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta”, diz líder Kayapó

publicado na Ed_23_abr/jun.2022 por

Mesmo homologada desde 1993, a terra indígena Menkragnoti, onde vive o povo de Doto Takak Ire, os Kayapó, além de dois grupos de indígenas isolados, não está segura. A liderança conta que o garimpo ilegal vem crescendo desde 2019, o que forçou a criação de bases de vigilância nas fronteiras. Além do perigo do garimpo, as mudanças climáticas, diz, também estão se fazendo sentir, mudando o regime de chuvas e afetando o cotidiano dos habitantes tradicionais daquelas terras.

Nos quase 5 mil hectares da TI Menkragnoti, que compreende os estados do Pará e Mato Grosso, vivem cerca de 1.200 indígenas — o povo Mebêngôkre Kayapó Mekrãgnoti divide o espaço com os isolados do Iriri Novo e de Mengra Mrari. Doto Takak Ire cresceu na aldeia Pukany e, por 20 anos, trabalhou com a Funai na proteção de suas terras e direitos. Porém, se distanciou quando, sob o governo Temer, “a Funai foi enfraquecendo e eu comecei a pagar para trabalhar”.

Hoje a liderança Kayapó vive fora da aldeia e trabalha como relações públicas do Instituto Kabu, que desenvolve projetos e ações em 12 aldeias nas TIs Baú e Menkragnoti. Eram 14, mas em 2019 duas aldeias deixaram o Instituto depois de terem feito acordos pró-mineração.

Cercados pelos mineradores, os Kayapó criaram bases de vigilância para monitorar e diminuir o estrago. Hoje existem seis bases e planos para que outras sejam construídas nas duas TIs. Toda semana, um grupo de seis indígenas segue o rio e monitora os locais de risco portando suas armas tradicionais e se guiando a partir dos aprendizados provenientes de capacitações sobre a forma de abordagem, oferecidas pelo Ibama de 2010 a 2019 — com a chegada do governo Bolsonaro, o programa também foi paralisado. Como parte do Programa de Proteção Territorial, os guerreiros abordam e dialogam com os invasores, além de monitorar os resultados via satélite.

“A gente está vendo que está na cara, o governo quer abrir espaço, quer abrir a terra indígena. Só com o anúncio dele, o garimpo aumentou e a destruição aumentou”, afirma Doto Takak Ire ao criticar o PL 191/2020, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados e pretende liberar a mineração e a geração de energia elétrica nas terras tradicionais, sem a garantia de que os habitantes dos territórios tenham poder de decidir sobre o futuro de suas comunidades. “Se for o caso do Congresso aprovar [o PL 191], a gente vai ter que ir ao Supremo, pedir pro Supremo barrar esse papel que quer destruir o nosso futuro, o nosso sonho.”

A Agência Pública conversou com Doto Takak Ire na 18ª edição do Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Durante 10 dias, entre 4 e 14 de abril, povos indígenas de todo o país se reúnem para debater e pressionar as autoridades em defesa de seus territórios.

Doto Takak Ire trabalhou com a Funai por 20 anos e agora é relações públicas do Instituto Kabu (Crédito da imagem: Andressa Anholete/Agência Pública)

Como alguém que trabalhou na Funai, como você vê a diferença da Funai de antes do governo Bolsonaro e de agora?

Antigamente, a Funai ajudava os povos indígenas, ajudava na fiscalização, ajudava a proteger a floresta. Mas depois quando o Bolsonaro assumiu, a Funai não existe mais e não está atuando mais nas aldeias.

Antes do [governo de Jair] Bolsonaro, a Funai havia criado uma CTL, que é a Coordenação Técnico Local, em que até os funcionários que eram chefes de posto atuavam nas aldeias. A nova gestão tirou todos os chefes de posto e levou para o município mais próximo, e dali a Funai começou a enfraquecer, começou a faltar dinheiro na CTL e a administração da época passou para a coordenação regional, aí que as coisas mudaram.

Em que momento você decidiu parar de atuar junto a Funai?

Tinha muito problema interno e a pressão dos garimpeiros e madeireiros, que achavam que a Funai que autorizava eles a entrar, era quem mandava ali. Eu não pude levar essa pressão dos madeireiros e dos garimpeiros e tive que sair, [pensei]: ‘não vou me arriscar aqui, e também ao mesmo tempo ninguém está dando apoio, a coordenação regional não está dando apoio, então tenho que sair’. Por isso que eu saí. E hoje você está vendo que a Funai não está indo para a aldeia, não está visitando as aldeias, não está construindo mais projetos etnosustentáveis. A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta.

Eu falei isso para o presidente e para os diretores da Funai, falei para eles que eles só estão ajudando quem está com atividade ilícita, só dão ouvido para quem está envolvido com essas atividades. E ele não respondeu nada.

A Funai também está fazendo política entre os povos Kayapó. Por exemplo, eles chegam nos indígenas e perguntam: ‘você está envolvido com garimpeiro? Com madeireiro?’. Aí os funcionários falam: ‘você tem que fazer isso, isso e isso’. [Depois falam dos indígenas que estão protegendo] e começam a usar um contra o outro, falam que as ONGs estão ganhando muito dinheiro nas costas dos indígenas e que eles têm direito sim de explorar ouro, madeira. A Funai não vê a lei. A extração de ouro e madeira dentro da Terra Indígena é proibida por lei.

Duas aldeias saíram recentemente do Instituto Kabu, porque elas foram cooptadas para a mineração. Como isso afeta a relação de vocês lá?

Fica muito ruim, fica muito ruim para quem está lutando pela defesa da floresta. Sabe por quê? Eu estou defendendo aqui e você quer derrubar [a floresta], então vai ser uma briga entre nós dois. Se eu não deixo você derrubar, mas você quer derrubar, vai ter uma briga. Isso está acontecendo, está causando problema. É o papel da Funai chegar naquela comunidade, naquela liderança e conversar com os dois para pedir as pazes. Antigamente a Funai fazia assim, ela ia lá na aldeia, conversava com a liderança, ajudava a expulsar os garimpeiros, mas hoje não.

Antes a Funai fazia as pazes e hoje ela estaria fazendo o contrário?

O contrário. Fazendo outra liderança brigar com outra. A gente não quer destruir a floresta. Agora o governo, a Funai, eles querem derrubar a floresta. Está bem claro que o governo Bolsonaro está usando a minoria contra a maioria.

Como a não renovação do PBA [Plano Básico Ambiental – Componente Indígena] em 2020, dinheiro que vinha da compensação das obras da BR 163, afetou a manutenção dos projetos e a segurança financeira dos indígenas da sua terra? Pode explicar isso melhor?

O PBA era pra ser executado, mas quando o Bolsonaro assumiu ele cortou. O que ocorreu? O presidente da Funai, que acredita que as organizações não-governamentais são das ONGs de fora [do país], mandou o pessoal investigar o Kabu, mas eles não encontraram nada. O próprio investigador descobriu que o problema está na Funai, mas ele [Marcelo Xavier, presidente da Funai] nunca foi atrás. Então a gente paralisou a BR 163 para tentar negociar, mas o presidente da Funai não foi lá. Em vez de ajudar, ele fez um pedido de ação contra minha pessoa, pensando que eu mandei paralisar a BR 163 para garantir o meu direito. Mas não é.

E como está este processo contra você?

Já foi arquivado.

Sem a ajuda da Funai no combate à mineração, como vocês tentam impedir que mais gente vá por esse caminho?

Eles [os que apoiam a exploração das terras] são minoria, são fraquinhos. Agora os [indígenas kayapó da aldeia Gorotire, localizada na TI Kayapó, que têm mineração em suas terras] estão chegando aí no ATL, eles estão aí, fizeram uma reunião ontem, eles estão afim de fechar o garimpo porque eles estão vendo que o efeito está acontecendo. Eles não estão pescando mais, [por conta da] contaminação do rio, dos peixes e dos animais. Chegou o momento que eles querem apoio, eles estão pedindo apoio para fechar o garimpo.

Mesmo sendo ilegal, a mineração em terras indígenas continua acontecendo. Ainda assim, existe o PL 191, que vai tornar mais fácil que esse tipo de empreendimento cresça dentro dos territórios. Qual é a importância de se posicionar contra isso?

É muito importante. É muito importante para quem está defendendo a floresta. A gente está vendo que está na cara, o governo quer abrir espaço, quer abrir a terra indígena. Só com o anúncio dele, o garimpo aumentou e a destruição aumentou.

Hoje com a tecnologia a gente grita, quando eu falo uma coisa aqui, você copia e já manda para outros, já manda para outros, já manda para outros. [Derrotar o PL é] muito importante para quem está precisando e pedindo ajuda. Tem muitos parentes que não têm terra para sobreviver. Eles precisam de ajuda, eles precisam dessa defesa. A preocupação é de todos. Quem está pegando dinheiro fácil [com a mineração] acha que é bom, mas pode trazer problemas para o futuro da família dele.

Qual a importância do Acampamento Terra Livre no meio disso?

A gente está junto aqui para ajudar os parentes que estão necessitando de uma terra, de uma floresta para sobreviver, porque o Bolsonaro não está demarcando… Esse ano, vai ter também [o julgamento do] Marco Temporal, e eu vou trazer a minha família todinha, meu filhinho vai andar aqui para aprender, para no futuro ver alguma imagem e dizer ‘pai, eu era criança e eu vi isso’. É muito importante esse encontro. Espero que essa luta vá passando de gerações para gerações.

Agora há um outro tema, que é sobre mudanças climáticas. Como você percebe essa mudança do clima lá na floresta?

A gente está vendo que o clima realmente está mudando. Não está chovendo na época da chuva, está chovendo fora da época, igual carnaval fora da época, entendeu? Muita gente está tendo que aprender como é que a gente [indígenas] faz para manter essa floresta em pé. Espero que as lideranças continuem defendendo a floresta para mais ou menos manter o clima no nível, mas realmente está mudando muito. Chuva fora da época da chuva, fora da época do verão. Tá tendo isso e a gente sabe que não somos nós que estamos desmatando. A gente é defensor da floresta e estamos vendo que realmente mudou.

Ou seja, não são vocês que estão causando isso, mas já está gerando efeito em vocês?

Isso.

Essa mudança das chuvas afeta de alguma forma as atividades no território?

Eu não fico muito na aldeia, só vou na época de final do ano ou meio de férias. Mas a gente vê que antes os Kayapó não frequentavam o rio Pixaxá. Depois de 20 anos, os Kayapó voltaram a frequentar, porque é o limite da terra indígena, entre o branco e a TI.

Quando a gente chegou lá não tinha peixe nenhum, mas cinco anos depois, com a presença dos Kayapós, que prenderam barco, prenderam arma, prenderam caça e pesca dos caras, cinco anos depois a gente viu os efeitos e que os peixes voltaram. Com o
desmatamento, com a destruição dos peixes e pesca predatória, a gente vê o efeito sim. Antes não tinha peixe, hoje se for lá você vai ver bastante peixe.

Então os conhecimentos indígenas dos Kayapó estão conseguindo recuperar algumas partes antes desmatadas?

Algumas partes do limite da TI, a gente continua conservando, a gente vai continuar, a gente vai lutar. As plantações de soja se aproximaram, encostou na TI e os venenos vão para o rio na época da chuva, então a gente está defendendo e a gente vai continuar com as criações das bases nos locais críticos, onde tem invasores. Depois que a gente criou as bases, não estão chegando mais as pessoas que estão destruindo.

Estão acontecendo várias reuniões internacionais, nas quais vários indígenas foram para falar sobre mudanças climáticas e como a gente pode parar isso. O senhor acha que o caminho para a gente superar esse processo está em ouvir os conhecimentos indígenas e entender que vocês sabem o que fazer ali, que são capazes de cuidar disso do jeito de vocês?

Realmente a gente pode usar esse nosso conhecimento para ajudar muito mais ainda. Não adianta você chegar lá e querer mandar nas TI, somos nós que temos esse conhecimento, a gente tem experiência. Eu acho que é muito importante falar das mudanças climáticas com a gente, a gente está vendo os efeitos e que realmente o clima mudou.

O senhor falou que a tecnologia permite que o que você fala aqui vá para outros lugares, chegue em mais pessoas. Nesse ano temos tanto as eleições, quanto a votação do PL 191, Marco Temporal, muitas pautas importantes e relevantes para defender os povos indígenas. Quais são as mensagens que o senhor gostaria de deixar para as pessoas, também não-indígenas, e para os deputados que vão decidir isso?

Eu vou deixar a mensagem aqui pros parentes, e pros não-parentes, que vamos lutar, vamos dar exemplo, vamos lutar junto para ajudar a barrar esse processo. É um processo criminoso, e, se for o caso do Congresso aprovar [o PL 191], a gente vai ter que ir ao Supremo, pedir pro Supremo barrar esse papel que quer destruir o nosso futuro, o nosso sonho. Isso eu peço para os parentes indígenas e não-indígenas, ajudar a fortalecer o nosso acampamento Terra Livre.

E, por favor, gente, vamos lutar, vamos não voltar mais no Bolsonaro, vamos votar no Lula, para ver se pelo menos ele respeita e dá ouvido pra gente.

Também existem muitas críticas ao ex-presidente Lula por parte do movimento indígena, que afirma que ele poderia ter feito mais pelos povos. Como está sendo a negociação para garantir que, caso eleito, ele priorize os povos indígenas?

A gente vai ter que elaborar um documento para ele assinar, fazer um compromisso com os povos indígenas, não só nós Kayapós, mas com o indígena do Brasil inteiro. Tem que fazer compromisso com os indígenas, porque são os primeiros habitantes do Brasil.

A gente está tentando trazer ele pra cá e ele assinar antes, fazendo um compromisso. Não do passado, porque no passado ele fez a barragem de Belo Monte, destruiu as famílias lá e acabou com o sonho das famílias que estão sofrendo lá. Ele errou. Eu sei que se eu errar, eu vou aprender com isso, mas tem gente que erra e nunca vai aprender. Espero que Lula entenda isso e aprenda com o erro.

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*Colaborou: Matheus Santino

*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Imagens apontam garimpo ilegal em área solicitada por parceiro do ex-presidente do ICMBio

publicado na Ed_23_abr/jun.2022 por

O presidente da Confederação Nacional de Mineração (CNMI), o empresário Bruno Cezar Cecchini, foi indiciado ao lado de outras 14 pessoas físicas e jurídicas pela Polícia Federal de Goiás (PF-GO) por supostamente chefiar uma organização criminosa para exportar ouro ilegalmente do Brasil para a Europa. Cecchini, conforme revelado pela Agência Pública, atua na CNMI junto ao ex-presidente do ICMBio, o coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo Homero de Giorge Cerqueira, que se apresenta como diretor da entidade. A confederação foi registrada na Receita Federal neste ano e afirma atuar em defesa dos interesses dos grupos garimpeiros para regularização do garimpo em áreas protegidas.

A partir de análise de imagens de satélite e consulta a processos minerários da Agência Nacional de Mineração (ANM), a Pública também encontrou indícios de atividades de garimpo em áreas requisitadas por Bruno Cecchini e uma cooperativa de garimpeiros ligada a ele, a Coopermix Gold (Cooperativa Mineral da Bacia do Tapajós de Itaituba), dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, criada pelo Governo Federal em Itaituba, no sul do Pará.

Em março deste ano, Cecchini e o coronel Homero participaram de uma audiência pública que discutiu propostas para a regularização da atividade garimpeira no interior da APA do Tapajós. Ela é a Unidade de Conservação (UC) mais afetada por extração de ouro irregular no país, segundo estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De acordo com o estudo, foram nove toneladas do minério extraído ilegalmente de lá só entre 2019 e 2020.

Imagem aérea mostra mina ilegal não identificada na APA Tapajós, em Itaituba

APA do Tapajós é a UC mais afetada por extração de ouro irregular no país. Crédito da imagem: Marizilda Cruppe/Greenpeace

Apesar de não constar no quadro societário da Coopermix Gold, há registros em vídeo nos quais Cecchini se apresenta como presidente da cooperativa. Além disso, a filha e a esposa do empresário estão entre os sócios formais da cooperativa, sediada em Itaituba.

Procurada pela Pública, a defesa do empresário Bruno Cecchini e de seus familiares afirmou que: “as matérias veiculadas tratam apenas de elementos de informação, que não passaram pelo filtro do Ministério Público Federal e muito menos da Justiça Federal, pois não existe sequer denúncia oferecida”. O empresário e seus familiares também disseram à reportagem que “negam veementemente a prática de qualquer ilícito e em caso de eventual existência de ação penal rebaterão a tempo e modo todas as acusações.” A defesa do empresário não quis dar entrevista pelo fato da investigação da Polícia Federal correr em sigilo. Cecchini também não se manifestou sobre os indícios de garimpo no interior da APA Tapajós apurados pela reportagem.

Garimpo ocorre há anos em áreas cobiçadas por Cecchini e Coopermix na APA do Tapajós, sugerem imagens

O garimpo que Cecchini e a CNMI buscam legalizar na APA do Tapajós já aconteceria há anos dentro da área de proteção. A Pública analisou imagens de satélite e encontrou registros que indicam atividade garimpeira em áreas que foram requisitadas por Cecchini e pela Coopermix. Há imagens até mesmo de 2014, que sugerem que o garimpo já acontece na região há bastante tempo, antes mesmo dos pedidos serem protocolados na ANM.

Um exemplo é uma grande área no limite leste da APA, em direção à fronteira de Itaituba com o município vizinho de Novo Progresso. Lá, há uma mancha requisitada pela Coopermix para lavra de ouro, cassiterita, columbita e tantalita em 2020 e que avança em trechos da unidade de conservação. A autorização para garimpo da ANM saiu apenas em outubro de 2020, porém, a reportagem encontrou imagens que indicam garimpo no local desde 2014.

Imagens de satélite de julho de 2020 indicam atividade garimpeira em meio à floresta

Imagens de satélite de julho de 2020 indicam atividade garimpeira em meio à floresta

Imagens de satélite de julho de 2020 indicam atividade garimpeira em meio à floresta
Imagens de satélite de julho de 2020 indicam que atividade garimpeira ocorre dentro de áreas pedidas pela Coopermix dentro da unidade de conservação do Tapajós — e que tiveram autorização da ANM apenas em outubro do mesmo ano. Crédito da imagem: Satélite Google

De acordo com dados públicos consultados pela reportagem, a autorização da Coopermix, válida até 2025, já trouxe lucros. Mais de 312 kg de minério de ouro foram extraídos da área correspondente ao título só no ano de 2021. O metal foi vendido somente a duas empresas: a F’D Gold e a Carol DTVM. Ambas respondem a ações civis públicas do Ministério Público Federal (MPF) no Pará por exploração ilegal de ouro. Aos questionamentos da Pública, o representante da Carol DTVM respondeu que não tem “conhecimento desse fato” e que vai “verificar para acionar nossa área competente”. Já a F’D Gold não deu retorno até o fechamento da reportagem.

O garimpo não é necessariamente proibido em APAs: atividades econômicas são permitidas e devem seguir as diretrizes e regras estabelecidas pelo plano de manejo, caso exista — o da APA do Tapajós ainda não foi concluído. Além disso, para funcionar legalmente, o garimpo precisa da permissão de lavra garimpeira (PLG) concedida pela ANM, que, por sua vez, depende de uma licença de operação (LO). De forma geral, segundo a Lei Complementar 140/2011, a LO deve ser emitida pelo estado, que pode delegar a tarefa ao município no qual o empreendimento se localiza, conforme ocorre em Itaituba.

Imagem aérea mostra extensão do rio Tapajós, com pequenas áreas verdes ao redor

Cecchini não se manifestou sobre os indícios de garimpo no interior da APA Tapajós. Crédito da imagem: Jannes Stoppel/Greenpeace

Como a APA do Tapajós é de domínio federal, a Secretaria Municipal de Itaituba deve receber o aval do ICMBio antes de conferir as licenças, o que, segundo apuração da Pública, não aconteceu no caso da PLG em nome da Coopermix. A assessoria de imprensa do ICMBio confirmou que nunca emitiu nenhuma ALA – Autorização para o Licenciamento Ambiental – “para atividades de PLG dentro da APA do Tapajós”, o que indica que a LO e posterior permissão da Coopermix foram conferidas sem a anuência do órgão ambiental federal. Questionada, a ANM admitiu que, em processos desse tipo, não cobra a autorização do ICMBio antes de outorgar as PLGs “por entender que tal atribuição compete ao órgão ambiental licenciador”. A reportagem procurou, então, a Secretaria de Meio Ambiente de Itaituba, que não se manifestou.

A Pública também encontrou imagens que indicam mineração em outra área requisitada por Cecchini dentro da APA. Embora o pedido de lavra deste segundo pedido não tenha sido autorizado pela ANM, há imagens de abril de 2016 que mostram intensa atividade de garimpo na região.

Imagens de satélite de 2016 já mostram intensa atividade garimpeira dentro da APA e numa região solicitada por Cecchini junto à Agência de Mineração. Crédito da imagem: Satélite Google

Diversos pedidos de mineração de Cecchini passam por alguma área da APA do Tapajós — todos eles protocolados num período de menos de dois anos. Em abril de 2020, em um intervalo de dez dias, o empresário protocolou 11 pedidos de lavra garimpeira que incidiram em trechos da APA. Em maio de 2021, foram cinco pedidos de pesquisa de ouro.

Já a Coopermix Gold protocolou dez pedidos de lavra garimpeira na região em março do ano passado, e uma em novembro do mesmo ano.

A esposa de Bruno, Claudia Rosa Cecchini, por sua vez, também cadastrou pedidos de mineração na ANM que passam por algum trecho da APA do Tapajós. Foram cinco requerimentos de lavra nos dias 9 e 10 de março de 2021 — pouco antes dos requerimentos da Coopermix, que aconteceram no dia 11.

Avião de pequeno porte parado em pista de aeroportoAvião apreendido pela PF pertencia à RJR Minas Export Eireli, ligada a Bruno Cecchini. Crédito da imagem: Divulgação/Polícia Federal

Barras de ouro apreendidas em aeroporto levaram polícia a Cecchini

A investigação que terminou com o indiciamento de Bruno Cecchini começou após uma apreensão realizada em junho de 2019 no Aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia. Na ocasião, 111 kg de ouro em barras foram apreendidos em malotes escondidos no banco de uma aeronave monomotor. A partir de indícios colhidos naquele dia, a PF começou a voltar os olhos para o empresário Bruno Cecchini.

No dia da apreensão, a PF prendeu os dois ocupantes da aeronave: o piloto Danilo Jorge Fulanetti (posteriormente liberado) e o único passageiro daquele voo, José Celso Rodrigues Silva. José é ligado a Bruno Cecchini em outras empresas, inclusive na própria Coopermix, da qual é diretor e parte do quadro societário. O registro das marcas da aeronave (PT-RIX) apontou que ela pertencia à empresa RJR Minas Export Eireli, uma extratora e negociante de produtos minerais. À época, a RJR tinha em seu quadro societário Julia Leão Cecchini, uma das filhas de Bruno, e o próprio José Celso Rodrigues Silva, o passageiro preso em flagrante.

Quando foram ouvidos, Julia e José Celso forneceram à PF elementos que teriam formado a convicção dos policiais de que era Bruno o operador de fato da RJR. Alguns elementos da investigação, que corre em sigilo, tornaram-se públicos a partir de manifestações do MPF e da PF que apareceram em decisões da Justiça Federal.

Segundo o inquérito da PF, Julia Leão Cecchini, quando foi ouvida, embora constasse no quadro societário da RJR, afirmou que “nada sabe sobre a empresa e o transporte do ouro apreendido, nem tampouco conhece José Celso Rodrigues, apesar dele também figurar no contrato social como sócio, asseverando, ao final, entretanto, que seu pai administrava a empresa mencionada [a RJR]”.

José Celso, por sua vez, “esclareceu que foi o pai de Julia, Bruno, quem lhe ofereceu para abrir uma empresa de venda de ouro em nome do declarante e de sua filha, auferindo 0,5% do lucro obtido, não sabendo onde o ouro era adquirido, mas tinha conhecimento que era destinado à cidade de São Paulo para o refino e, em seguida, remetido para a Europa”. José Celso também complementou em seu relato à PF ”que em 2017 Bruno disse que passaria a empresa para o nome de Julia tendo em vista a maioridade alcançada.”

Para a PF, “tanto Julia, como José Celso, apenas emprestaram seus nomes para constar no contrato social da empresa, ocultando o real proprietário que é Bruno Cezar Cecchini, o qual admitiu efetivamente administrar a empresa, constituída em 2017.” José Celso Rodrigues não respondeu aos questionamentos da reportagem enviados por e-mail e a reportagem não conseguiu contato pelo telefone.

O próximo passo da PF foi buscar a origem do ouro apreendido em Goiânia. A fonte declarada seria uma lavra em Colniza (MT), pertencente à RJR, no entanto, visitas dos policiais e imagens de satélite indicaram que não havia sinais de mineração no local. Para a polícia, as diligências levaram à conclusão de que as notas apreendidas eram falsas.

Barras de ouro apreendidas pela Polícia Federal expostas em cima de uma mesa brancaMalotes apreendidos pela PF continham cerca de 111 kg de ouro. Investigações posteriores apontam que o ouro tinha origem ilegal. Crédito da imagem: Divulgação/Polícia Federal

Polícia aponta ligações de Cecchini com financiadores do garimpo ilegal no MT

Dois dias após a apreensão no aeroporto, a PF alega ter recebido uma denúncia anônima dizendo que o ouro apreendido vinha do município de Alta Floresta (MT) e que teria sido vendido pela empresa Texas Gold, do empresário Willian Ribeiro. Segundo a PF, “Willian possui outras cinco ou seis lojas Texas Gold nos arredores da referida cidade, que funcionam como pontos de compra de ouro de garimpeiros clandestinos.” A denúncia afirmava que Bruno Cecchini era o comprador do ouro e que o fazia por meio de empresas das quais seria “proprietário oculto”, como a RJR e a BJR, sediadas em Goiânia e registradas no nome de suas filhas. Ainda de acordo com a PF, Bruno teria ligações com pessoas que exportariam o ouro ilegal para a Itália.

Em documentação apreendida pela PF, constava a informação de que, de fato, o ouro vinha da Texas Gold. Esta empresa mantinha, segundo a PF, um escritório em um imóvel pertencente à empresa ligada a Bruno Cecchini, a RJR. A PF afirma que tanto o proprietário da Texas Gold, Willian Ribeiro (conhecido como “Cowboy”), como seu irmão, Wilson Ribeiro Filho, atuam na compra de ouro ilegal, notadamente no município de Nova Aripuanã (MT), alçado anos atrás a polo do garimpo no país, e então chamado por grupos de garimpeiros de “Nova Serra Pelada”.

Bruno Cecchini é um homem branco na faixa dos 60 anos, calvo e com olhos castanhos; ele veste terno preto e camisa brancaBruno Cecchini foi indiciado ao lado de 14 pessoas físicas e jurídicas pela PF-GO por supostamente chefiar uma organização criminosa para exportar ouro ilegalmente do Brasil para a Europa. Crédito da imagem: reprodução

Wilson chegou a ser preso pela Polícia Militar do Mato Grosso no aeroporto de Nova Aripuanã transportando 6,5 kg de ouro ilegal também em junho de 2019. Na ocasião, o ouro apreendido trazia as mesmas marcas do apreendido em Goiânia. Em outubro, Wilson foi preso novamente ao lado do irmão, Willian Ribeiro, na Operação Trype 2 da PF sob a acusação de financiar o garimpo ilegal no norte do Mato Grosso. Os irmãos tiveram seus respectivos pedidos de prisão preventiva revogados em janeiro de 2021. A Pública entrou em contato com Willian e Wilson, mas não obteve resposta.

Outro ponto em que as diligências da PF convergem com a denúncia anônima é em relação à exportação do ouro para a Itália. De acordo com a investigação, de fato, o ouro apreendido no aeroporto de Goiânia tinha como destino o país europeu. A carga já estava vendida para uma empresa goiana, com filiais em São Paulo, e de sócios italianos: a C.H.M do Brasil Metais. A carga apreendida no aeroporto de Goiânia tinha como destino São Paulo, onde seria entregue à C.H.M para depois ser enviada à Itália, conforme declarações da própria C.H.M prestadas à Justiça.

A C.H.M. foi posteriormente investigada pela Polícia Federal em outro inquérito, que apontou que a empresa comprou ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Kayapó, no Pará, conforme noticiado pela Repórter Brasil. De acordo com dados obtidos pela PF, o ouro comprado na TI também tinha como destino final a Itália, mais precisamente a gigante italiana Chimet SPA Recuperadora e Beneficiadora de Metais, a 44ª empresa em faturamento daquele país. A C.H.M tem como sócios os italianos Mauro Dogi e seu filho, Giacomo. Mauro trabalhou como operário na Chimet entre os anos de 1990 e 1995, antes de mudar-se para o Brasil. O relatório da Operação Terra Desolata, que apontou a participação da C.H.M na compra de ouro ilegal oriundo da terra indígena no Pará, aponta que a empresa fez transações financeiras que ultrapassam os R$ 880 milhões com a RJR Minas Export, ligada a Bruno Cecchini. O mesmo relatório aponta que a RJR fez transações no valor de R$ 100 milhões com grupos de garimpeiros ilegais do sul do Pará.

A C.H.M do Brasil Metais afirmou que “jamais adquiriu ouro extraído ilegalmente”, que “ao efetivar cada transação de compra, a C.H.M sempre solicitou das empresas vendedoras toda a documentação exigida por lei, que demonstrava a licitude do produto comercializado” e que as exportações de ouro foram autorizadas pelos órgãos competentes. A empresa afirmou que cumpre todas as determinações legais impostas a ela e que realiza processos de verificação documental para prevenir-se quanto a compra de ouro ilegal.

As decisões da Justiça Federal consultadas pela Pública mostram que a PF ampliou as investigações sobre as atividades da RJR e apura a legalidade da comercialização de mais de uma tonelada de ouro da empresa. “Segundo informou a autoridade policial, as provas, até então reunidas no inquérito policial, demonstram que não apenas o ouro apreendido foi usurpado da União pelos investigados, mas, também, outros mil e quatrocentos quilos de ouro, quantidade esta constante de notas fiscais emitidas pela RJR Minas Export Ltda, no período de 04/08/2019 a 22/08/2019, e transportada por meio de documentação legal falsa”, segundo decisão proferida no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Outras empresas ligadas a Bruno Cecchini também estão sendo investigadas. Ao todo, ao menos dez empresas estariam envolvidas no esquema de envio ilegal de ouro à Europa segundo o MPF informou à Pública.

No último dia 25 de março, a PF comunicou o indiciamento de 15 pessoas físicas e jurídicas pelos crimes de organização criminosa, usurpação de bem da União, extração de ouro sem autorização legal, receptação qualificada, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. na investigação iniciada em junho de 2019. De acordo com o comunicado, “além da carga apreendida, foi identificado pela Polícia Federal que o grupo criminoso investigado extraiu, explorou, transportou e comercializou mais de 1,5 toneladas de ouro ilegal extraídos de garimpos ilegais do Mato Grosso, o que equivale atualmente a mais de R$ 457 milhões”.

Conforme revelado pelo portal Folhamax, de Mato Grosso, entre os indiciados estão Bruno Cecchini e duas de suas filhas, José Celso Rodrigues Silva, os italianos Mauro e Giacomo Dogi, sócios da C.H.M do Brasil Metais, e os irmãos e empresários mato-grossenses Willian e Wilson Ribeiro.

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Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Esse tal Riocore (parte 04)

publicado na Ed_13_out/dez.2019 por

Nasce um fenômeno

“Eu não acreditava na força do Forfun”, disse o ex-produtor de eventos Luiz Carlos Rosa, recordando o primeiro show que fez com a banda. Era um domingo, última semana dos recessos escolares de julho de 2004, com o tema Aproveite suas férias até o último instante. O evento aconteceu na extinta casa de show Ballroom, no Humaitá, espaço tradicional na época. Naquela noite, Carbona e Ramirez já haviam se apresentado. No meio da apresentação da terceira banda, Leela, os garotos na plateia já estavam desesperados porque as mães, preocupadas com a hora, ligavam querendo busca-los. Luiz lembra de ver gente a sua frente aos prantos, chorando apoiados na mesa de som. Ele e o produtor tiverem de ficar atendendo às ligações para justificar que a festa tinha acabado de começar e elas podiam se acalmar. Quando os astros da noite finalmente subiram ao palco, a equipe ficou impressionada ao ver mais de

2.000 jovens pulando entusiasticamente, gritando as músicas em total frenesi. “Aí eu senti firmeza”, rememora, e sentiu que deveria ir até eles depois, nos bastidores e dizer “Vocês são espetaculares, entenderam? Talvez eu possa até estar errado, mas acho que vão ter um caminho de luz para sempre na vida de vocês”.

O renomado produtor musical Liminha passou pela mesma experiência de ser surpreendido pelos rapazes. Na época, Guilherme Araújo estava empresariando a banda e notava certo amadorismo neles, e na cena como um tudo, por isso pensou que alguém com certa bagagem musical e experiência na área os levaria ao profissionalismo ideal. Por meio de uma outra empresária com quem tinha amizade, conseguiu convencer o ex-Mutante a assistir uma apresentação no Garden Hall, na Barra da Tijuca. Do mezanino da casa, Liminha ficou impressionado com o que viu, sentiu que estava numa bolha da qual nada conhecia. A banda nunca tinha tocado na rádio, nunca apareceu na televisão, e estavam lá com os ingressos esgotados, sendo tratados como verdadeiros Pop Stars. O empresário dos rapazes sabia que a reação seria mais ou menos essa, pois os shows eram “Um encontro de amigos e uma grande experiência de entrega, de emoção, de cantar, de pular, de ser feliz. As pessoas eram muito felizes ali”.

“Mais do que a técnica, por vezes limitada, de bandas jovens de Punk Rock, acho que

ele gostou foi da vibração, da performance, da resposta da galera. Notou, na minha opinião, que ali tinha algo bacana a ser lapidado”, observa Rodrigo Costa, baixista do grupo. Desde a primeira demo, Das pistas de skate às pistas de dança, o Forfun conquistava um público apaixonado por onde ia. Era assim no Rio de Janeiro, era assim nas outras cidades e estados. Deste modo, mergulharam com Liminha no estúdio do produtor, o Nas Nuvens, e de lá saíram com Teoria Dinâmica Gastativa, o primeiro de estúdio dos rapazes, que foi lançado e distribuído em 2005 pelo selo Super Music. De acordo com a reportagem da Folha de São Paulo na época, o selo, em parceria com a Universal Music, foi criado especialmente para impulsionar o grupo, que vendeu mais de 6.000 cópias naquele mesmo ano de acordo com o jornal.

O álbum se tornou um dos precursores da cena carioca, à frente de outras bandas que davam também, alguns antes deles, os primeiros passos no relacionamento com gravadoras, como Emoponto, Dibob e Darvin. “Acredito que este feito é consequência do esmero de Liminha e do Victor Farias, técnico de som do estúdio, em pegar aquelas músicas que soavam toscas, mas tinham fórmulas boas, em produções de mais alto nível, tornando-as verdadeiramente radiofônicas, dinâmicas, bem timbradas, etc. Coisa que na época era novidade para a nossa ‘turma’. Acabamos dando um salto de qualidade que nos alçou a outros patamares, ao trabalhar diariamente com pessoas da mais alta qualidade no que fazem e tendo padrões mais elevados”, argumenta o baixista.

No decorrer de sua trajetória, a banda passeou por estilos tão diversos que surpreendiam os fãs a cada álbum. Polisenso foi o primeiro do grupo a dialogar com variações de Reggae – Vitor Isensee saiu da segunda guitarra para assumir sintetizadores e programação de efeitos – e a adotar uma postura mais crítica, buscando certa espiritualidade, questionando os valores e comportamentos da sociedade. Em Alegria Compartilhada, já muito distantes do Pop Punk inicial, misturaram tudo com Rap e Samba, o que lhes rendeu a vitória no Prêmio Rock Show de 2011 na categoria Disco do Ano. No último trabalho, Nu, trouxeram toda a diversificação mais uma vez, e ainda voltaram um pouco para o Hardcore. “Eles sempre se reinventaram”, disse Thiago Calviño. O baterista, já quando a sua banda, Asterisco Zero, tinha acabado, passou um período sendo produtor de estrada do grupo, de quem também sempre foi muito amigo. “Uma coisa que eu posso dizer foi que eles viveram muito isso, se dedicaram muito. Toda aquela parte de evolução deles, que eu acho que também fez muito com o que o público se mantivesse fiel, era a verdade deles. Eu cansei de chegar no estúdio dizer ‘Meu Deus do céu, o que é que vocês estão fazendo, cara? Vocês estão indo por outro caminho’. Eles amarradões respondiam ‘Não é, cara?’”.

O Forfun foi, sem sombra de dúvidas, a maior banda surgida no circuito de Rock da

época, ainda que tenha passado por todas essas mudanças – e talvez inclusive por isso mesmo, como disse Thiago. Sempre que se fala nesse período, estão como o primeiro nome mencionado na lista de músicos, produtores e fãs. As páginas de fã-clubes mais ativas ainda hoje são dedicadas a eles, assim como o nome das festas que relembram aquele tempo remetem a seus trabalhos. Para Mateus Simões, do Phone Trio, além do carisma e da autenticidade, sempre chamou atenção o quanto eles eram “de bom coração”. “Sempre pensaram nos outros, chamavam banda para abrir, mesmo que não tivesse nada a ver. Eles gostavam e chamavam. O Danilinho me abraça toda vez que me vê, ele não aperta a minha mão. Não estavam nem aí com o que diziam sobre as músicas deles serem bobas, no início. Eles faziam o que eles queriam fazer, chegavam do jeito que gostavam de se vestir, são assim até hoje. Estavam no lugar certo, na hora certa, mas tocavam com qualidade, preocupados com o som, queriam só fazer amigos e bola pra frente”.

Quando o grupo acabou, em 2015, não foi sem polêmica. Danilo, Vitor e Nicolas seguiram juntos em outra banda, a BRAZA, enquanto Rodrigo seguiu carreira solo e depois se envolveu em outros projetos e grupos. Os fãs acreditam que essa ruptura não foi simplesmente artística, e sim por divergências ideológicas e políticas, que teriam gerado uma série de desentendimentos dentro e fora da banda. Num primeiro momento, os artistas evitaram entrar em discussões ou dar explicações mais detalhadas, mas já em meio às campanhas presidenciais deste ano, o baixista declarou abertamente seu apoio ao candidato Jair Bolsonaro. Nada disso, no entanto, apaga a trajetória do quarteto. Calviño garante que eles sentem muito orgulho de todo que fizeram. Rosa, apesar de achar que o Liminha tentou, sem sucesso, fazer deles um Cidade Negra, acredita que se eles decidirem voltar em algum momento, é certo de que encherão a casa novamente, colocando a galera para pular e suar como sempre fizeram. “A vibe deles são eles mesmos. É Forfun, é para se divertir. O Forfun vai ser Forfun sempre”.

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Crédito das imagens: Pixabay License

*Texto construído a partir do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Esse tal de Riocore: uma grande reportagem sobre o cenário Pop Punk e Hardcore carioca dos anos 2000”, apresentado em dezembro de 2018 à Universidade Veiga de Almeida.

Esse tal Riocore (parte 05)

publicado na Ed_13_out/dez.2019 por

Adeus e até logo

Entre 2006 e 2008, a cena nacional estava no auge. Músicas no rádio, programas de televisão, trilha sonora de novela adolescente, premiações. No Rio de Janeiro, Darvin lançava álbum homônimo pela EMI e Emoponto chegava com o disco Incondicional pela Universal Music. No ano seguinte, Dibob apresenta A ópera do Cafajeste pela Som Livre, Scracho e Catch Side estreiam, respectivamente, com A grande bola azul e O sonho não acabou, ambos independentes. Enquanto isso, Forfun, Fresno, Hateen, NX Zero e Moptop, bandas de certo modo diferentes entre si, mas unidas pelo contexto, foram reunidas no projeto MTV ao vivo: 5 bandas de Rock. Em seguida, quando Darvin explode com o single Pensa em mim e Forfun inova com Polisenso, Emoponto anuncia turnê de despedida e lança o último CD, Trilogia parte III, apenas em formato digital. Dali em diante, percebe-se que cada qual seguiu seu próprio caminho. Uns buscavam formas diferentes de fazer o mesmo som. Outros se experimentavam por novos gêneros e surgiam com propostas cada vez mais distantes do Pop Punk original. “Uma busca egoísta, mas necessária”, diria Caio.

Cabe fazer uma analogia com as estratégias dos sufistas para pegar a melhor onda. Eles chamam de arrebentação a linha do mar onde as ondas quebram, e quem está na prancha precisa ficar atento sobre seu posicionamento para encontrar o momento certo de entrar antes que ela se desfaça. Está bem no fundo, na origem a melhor de todas. Apenas os mais persistentes conseguem passar pela arrebentação, no surf como na música. Muitas bandas começaram sem que conseguissem dar os próximos passos, foram levadas pela maré. Isso não significa que eram melhores ou piores, pois a questão é que realmente não dá para todo mundo, como diz o baixista do Scracho: “Olha, a arte é assim. Ela, apesar de ser democrática, não necessariamente é justa. E na verdade não é nem questão de justiça, é questão de conexão”.

Mesmo conscientes de que estavam próximos do fim, Scracho e Forfun eram os únicos que ainda seguiam estabelecidos. Não precisavam mais de festivais, esgotavam bilheteria sozinhos, enquanto outros viviam entre longas pausas ou num compasso mais arrastado de apresentações e novos trabalhos. Foi então uma surpresa para os fãs quando, em maio de 2015, Caio, Dedé e Diego anunciaram que cada um iria atrás de seus projetos individuais, depois de 11 anos de carreira. Em menos de duas semanas, outro golpe: Forfun também encerrou o ciclo que durou 14 anos, comunicando a todos também pelas redes. O lamento veio por ambos, inclusive de músicos que cresceram juntos. Ainda que cada um dos grupos tivesse seus motivos particulares, para o público, não poderia ser uma mera coincidência: era um sinal de que estava na hora de seguir em frente.

Todos sabiam que não iriam cantar para sempre músicas de adolescente, nem o público seria forever young. A euforia inicial teve de ceder espaço para que os dois lados amadurecessem gradualmente. “A vida é feita de ciclos”, disseram os integrantes da banda Darvin, “O Rio de Janeiro não ia ficar para sempre tendo shows lotados com as mesmas bandas e os mesmos milhares de adolescentes todo final de semana. Esse foi o ápice de uma época específica. O público foi migrando para outros estilos, algumas bandas acabaram, mas outras, como nós, seguem resistindo”. E vive hoje essa geração, mais em clima de nostalgia, de saudosismo dos tempos de escola. Alguns ex-membros destas mesmas bandas se reuniram para fazer novos grupos musicais, caso das bandas BRAZA, Tivoli e Carranca, ou ainda promover o seu próprio show celebrativo, como o projeto Riocore All Stars. Mesmo sem isso, espalham- se festas e encontros de fãs onde basta um DJ com a playlist certa, como E eu que era emo, Te conheço desde o Orkut e Festinha Dinâmica Gastativa.

Nesta última, Darvin e Dibob recentemente voltaram ao palco junto dos amigos do Phone Trio. A ideia partiu do baixista Mateus Simões, da terceira banda, e a ideia era reunir aquela mesma galera mais uma vez, com a condição de que, se esgotasse, todo mundo ganharia, caso contrário, fariam entre eles mesmos a maior festa que pudessem. Acabou sendo um sucesso, para eles foi uma volta emblemática. O Phone Trio, inclusive surgiu na mesma época que os outros, mas eram os únicos que cantavam em inglês quando a maioria já havia aderido a língua nativa. “Eu acho que foi uma barreira. Se a gente fosse cantando em português junto com essa galera, a gente poderia ter dado uma bombada maior. A galera se amarrava, mas não conseguiam gravar muito bem as letras na cabeça, que eram imensas e em outro idioma”, afirma o baixista. Mas foi exatamente por isso que eles, ao contrário dos outros, conseguiram alcançar

o mercado exterior. Fizeram turnê na Argentina e nos Estados Unidos, lançaram discos no México, Canadá, Itália, França e até no Japão. Na Ásia, asseguraram lugar na lista de discos de Pop Punk mais vendidos, logo atrás de Fall Out Boy e Paramore, ainda que tenha sido por pouco tempo. “Foi divertido, vivemos uma pseudo vida de Rock Star”.

O que mais impressiona Mateus sobre esse movimento é o fato de que era para todos, mesmo que tenha emergido dos bairros considerados nobres, da Zona Sul à Zona Oeste, das metrópoles às cidades do interior, “O movimento mais genuíno de rock dos últimos anos, certamente”. Os jovens queriam tanto viver aquela experiência que aceitavam tocar em qualquer lugar. No início eles queriam mais ter banda que serem músicos, queriam a diversão de cantar sua rotina, e então encontraram pessoas que os queriam ouvir. Isso por todo o país, mas sobretudo no Rio de Janeiro, onde as letras sugeriam uma vibe boa, quando quase ninguém conhecia o significado dessa palavra. “A gente não transgredia nada, a gente não revolucionava nada, mas ao mesmo tempo queria falar de coisas boas, para as pessoas se sentirem bem. Por mais jovem que isso fosse, por mais adolescente que isso fosse. Acho que justamente a adolescência é uma época em que você só quer se divertir”, recorda Caio Correa.

Tudo o que fica hoje para eles de mais forte são as amizades. As bandas não competiam entre si, existia, ao contrário, cumplicidade e entendimento de que todas elas se beneficiariam com aquele resultado. Mesmo os que chegaram primeiro, nunca menosprezaram os que vieram depois e se tornaram ainda maiores que eles mesmos. Todos compareciam aos shows uns dos outros, prestigiavam, ajudavam a divulgar. Cantavam músicas uns dos outros, substituíram os amigos em uma ou outra apresentação. Viajaram em ônibus e vans, dividiam camarim, comemoraram juntos e também brigaram muitas vezes antes, durante e depois, pois os vínculos permanecem. Amadureceram todos juntos, musicalmente e pessoalmente. Se existe um legado deixado por eles, certamente é a memória afetiva de um tempo que foi muito bom. Para eles, e para quem curtia o show deles. É muito diferente olhar hoje para aquelas letras, já se passaram quase 20 anos para alguns. Eram adolescentes, agora são adultos. Mas quando sobem no palco — os que ainda podem fazer isso — e todos acompanham fervorosamente, qualquer distanciamento se acaba.

Quando o Dibob estava ainda no começo, o guitarrista Miguel escreveu em um blog da banda “Se eu pudesse dar um conselho para as pessoas, não que eu seja muito indicado a ser conselheiro, falaria para formarem uma banda”. Ele não se lembra de ter feito isso, mas está lá registrado. Ainda assim, olhando para trás, não mudaria em nada essas palavras. “A música é a única coisa no universo que tem esse poder de mudar o humor de um milhão de pessoas num instalar de dedos, nada mais vai fazer isso. Ela derruba barreiras, preconceitos, e acaba criando pontes. E apesar do palco, que dá uma separada de você para a galera, a gente se sente ali no meio. A banda só está completa quando a gente se sente ali, e a galera se sente no palco. E nos shows a galera fazia isso, todo mundo estava falando a mesma língua. Não é “Ah tenha uma banda porque vai ser um ‘puta’ sucesso e você vai virar um Beatle. Não. Mas talvez você encontre três caras que vão te amar e serem seus cúmplices como foram Lennon, Paul, George e Ringo. Se for muito, que seja como eu, Faucom, Dedeco e Gesta”.

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Crédito das imagens: Pixabay License

*Texto construído a partir do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Esse tal de Riocore: uma grande reportagem sobre o cenário Pop Punk e Hardcore carioca dos anos 2000”, apresentado em dezembro de 2018 à Universidade Veiga de Almeida.

Esse tal Riocore (parte 01)

publicado na Ed_12_jul/set.2019 por

Dos Beatles até aqui, a história é sempre a mesma: todo jovem quer ter uma banda. Nenhuma geração, até agora, passou sem que grupos de meninos e meninas tivessem o desejo de se juntar a outros amigos e simplesmente tocar. Escrever alguns versos, mesmo que banais ou melosos, e se expressar por meio da música. A referência nem precisa se deter aos britânicos dos anos 60 que, de forma avassaladora, invadiram o mercado americano – embora muitas vezes seja. Em todo caso, foi a partir deles que esse sentimento foi introduzido, e continua vivo, como uma herança de família há décadas preservada. Soa estranho relacionar o frenesi da Beatlemania a um movimento deflagrado nos anos 2000, o caminho entre I Want to Hold Your Hand e História de Verão parece extenso demais e ausente de qualquer conexão, mas o processo é gradual.

Sem qualquer pretensão de narrar aqui uma história do Rock, é preciso antes voltar os olhos para Califórnia dos anos 90. Conhecida como um dos grandes celeiros de bandas Punks dos anos 70, a região também deu origem ao estilo Hardcore dos anos 80, uma segunda onda do gênero anterior. Balanceando melodias trabalhadas com a agressividade que trazia na bagagem, esbarrou na projeção da música Pop americana dos anos 90 e fez nascer o que se costuma chamar de Pop Punk, onde se encaixam bandas como Pennywise, Face to Face, NOFX, Offspring, Green Day e Blink-182 por exemplo. Das seis, as três últimas foram as que despontaram no showbusiness, causando aversão no público que privilegiava o cenário alternativo. Localizado no litoral americano, os verões do estado californiano são quentes, o clima de praia é intenso, a cultura do Surfe é tão forte quanto a do Skate. Tudo a ver com o Brasil, tudo a ver com o Rio de Janeiro.

Aqui no País Tropical, no final da década de 90, o cenário de Rock não era muito animador. O estilo passou a ser trabalho por desvios e misturas, usado apenas como escora para outras vertentes. Contemporâneos de Legião Urbana, Barão Vermelho e Paralamas do sucesso estavam perdendo o fôlego, ainda mais com a partida prematura dos vocalistas das duas primeiras – ambos não resistiram à AIDS. Os que começavam a despontar na mídia tradicional como as vozes da nova fase eram CPM 22 e Charlie Brown Jr., ambos de São Paulo. Na Cidade Maravilhosa, no entanto, o cenário que fervilhava era o underground, este nunca deixou de existir, mesmo abafado pela projeção de grupos de samba, pagode e funk, que sempre tiveram destaque na cultura local, sem contar a MPB, que em todo o tempo garantiu confortavelmente o seu lugar. Mas seus referenciais, assim como os dos paulistas, eram mais a geração californiana, e seus antecessores, e menos a nacional de Renato Russo, Cazuza e companhia. Apenas mais alguns anos de preparação e o grande público da metrópole se abriria novamente para a barulho estridente das guitarras.

*Texto construído a partir do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Esse tal de Riocore: uma grande reportagem sobre o cenário Pop Punk e Hardcore carioca dos anos 2000”, apresentado em dezembro de 2018 à Universidade Veiga de Almeida.

Esse tal Riocore (parte 02)

publicado na Ed_12_jul/set.2019 por

Do underground aos saraus e festivais

Em 1998 Daniel Ferro ingressava na PUC do Rio de Janeiro como estudante de Jornalismo. Na condição de calouro, não teve outra alternativa senão submeter-se ao trote, que foi aplicado por ninguém menos que os integrantes da banda Los Hermanos. Como descobriria em pouco tempo, a universidade se dividia entre duas principais tribos: de um lado os “ripongas” da Casinha, do outro os playboys do Pilots. Essa divisão ordenava o comportamento dos estudantes como um todo, desde as diferenças na aplicação das brincadeiras com os novos alunos — os mais “democráticos” versus os mais provocadores — até o estilo musical das bandas que ali se formavam. No caso, Los Hermanos estavam ligados à Casinha e cantavam músicas mais românticas com letras em português; já o Pilots abarcava bandas como Carbona e WickyKids, que optavam pelo inglês. Todos na mesma pegada Hardcore.

Essa questão do idioma parecia bem resolvida no mainstream, mas ainda era uma discussão no perímetro alternativo. Jorge Junior, 38 anos, mais conhecido pelo apelido JJ, no passado vocalista no WackyKids e guitarrista no Rivets, lembra que a língua estrangeira vinha de modo natural para os compositores dos grupos da época. Isso porque muitos deles tiveram passagens pelo exterior, para morar ou para estudar, e sobretudo por buscarem uma aproximação com seus próprios ídolos — aqueles litorâneos norte-americanos. Estavam cientes das possibilidades que teriam no mercado nacional se abrissem mão do estrangeirismo, mas essa era a verdade deles e não ambicionavam mais do que já tinham. Se não era um problema para os músicos, menos ainda para o público. “A gente tem algumas histórias de pessoas que diziam ‘cara, saber que vocês são brasileiros é o que me motiva a aprender [inglês] um pouco mais, falar, cantar’. Eles traduziam, naturalmente, as letras, mas, por gostarem, eles ficavam loucos”.

Quem quisesse ouvir essas bandas se apresentando tinha poucas opções, uma delas o bar Empório, reduto tradicional da Zona Sul há mais de 30 anos. Na calçada lotada nos finais de semana, frequentadores de faixas etárias e nacionalidades diversas. No primeiro andar, comida e bebida como se encontra em qualquer esquina. No andar de cima, ali sim, atrações quase sempre dedicadas ao Rock. Anunciado como uma minipista de dança, o lugar, nas memórias de Daniel, tinha apenas quatro lâmpadas no teto; um ar-condicionado fortíssimo quando estava vazio, mas que de maneira alguma dava vazão quando cheio; e lotação significava, no máximo, 100 pessoas. Foi nesse espaço minúsculo que ele assistiu ao segundo show de seus veteranos, e por lá também passaram todos os outros grupos da época, aos quais ele também assistiu. Se o Riocore precisa de uma localização como ponto de partida, aqui está: Rua Maria Quitéria, 37, Ipanema – Bar Empório.

Nessa fase, a cena se resumia a aproximadamente 200 pessoas, e quase todos tinham ou haviam tido banda. Eram eles tocando para eles mesmos, quando não para amigos e namorados. O público era muito específico, só quem conhecia procurava. Os discos eles mesmos produziam, quase sempre de forma experimental, o que demandava regravações no futuro, e eram lançados nesses mesmos eventos por preços muito baixos. A linha entre admirador e admirado era tênue, dividida entre não mais que dois anos de diferença entre a formação das bandas. Nesta escadinha, basicamente uma banda influenciou a outra, que influenciou a outra… Como por exemplo o próprio Daniel Ferro que, frequentador de todas as tribos da faculdade, se deixou inspirar pelos artistas com quem passou a conviver e se juntou a Carlos Sagaz (em seguida substituído por Eduardo Tuirow), Juca Rocha e Marcelão para formar em 1998 o Emoponto.

Nos primórdios da banda Forfun, JJ cansou de receber elogios e pedidos dos integrantes para que ouvisse suas demos, e nunca deixou de dar o apoio que podia. Em seus admiradores, se impressionava pelo fato de vestirem, com autenticidade, a camisa do português. O guitarrista e vocalista do grupo, Danilo Cutrim, vivia entrando em contato com Daniel para pedir conselhos de gravação e coisas do tipo e também, porque não, tietar. Dibob era outro nome que se espelhava no Emoponto, e sobre eles Daniel conta uma história engraçada: “Fomos tocar pela primeira vez no Ballroom. O Dibob estava lá para abrir, e eles chegaram nos bastidores super nos elogiando. A gente nem sabia quem eram eles, eu lembro que senti aquela coisa, sabe, aquele ar de superioridade de quem chegou primeiro? A casa estava lotada, pensamos que era para a gente, éramos os mais velhos. Quando subiram no palco, o Dibob foi um fenômeno. As pessoas gritando e cantando junto com eles. Não entendemos nada”.

O baterista não sabia até então, mas havia de fato um fenômeno acontecendo, e ele não atendia necessariamente pelo nome deste ou daquela banda. No início dos anos 2000, os colégios particulares tradicionais da cidade carioca transbordavam em saraus. Santo Agostinho, Bahiense, São Bento, Corcovado e Santo Inácio compõem uma lista que poderia ser imensa. Os objetivos das escolas variavam da arrecadação de dinheiro, posteriormente doado, até o simples incentivo na formação cultural de seus alunos, que em segundos passavam de coadjuvantes a protagonistas, de estudantes a artistas. A iniciativa e organização partia tanto deles quanto de seus coordenadores e diretores. As famosas panelas que pouco interagiam umas com as outras no decorrer do período letivo, nessa hora, passavam a partilhar gostos e trocar experiências. Os talentos relevados não eram somente dos matriculados, mas também de ex- alunos, que para lá voltavam como convidados com a “moral” nas alturas, eram motivo de orgulho. É assim que aparece na memória de Bernardo Pereira, o Miguel, sobre as ocasiões em que voltou ao Santo Inácio junto ao amigo André Fialho, o Dedeco, para marcar presença com a banda que lá mesmo formaram, o Dibob.

Da mesma forma que eles, muitos se juntavam com intuito de fazer uma única apresentação, registravam uma composição própria apenas porque era item obrigatório no momento da inscrição, e no final acabavam dando continuidade tamanho o prazer. Ter vínculo com a instituição não era critério, e todos os ritmos eram bem-vindos, do Reggae ao Heavy Metal, mas o Pop Punk — ou Hardcore melódico, dependendo dos critérios de quem quiser rotular — se tornou o queridinho da galera. Os versos retratavam o romance e a rotina da vida dos autores, que não era muito diferente da realidade de seus fãs, e eram quase sempre bem- humorados. Até mesmo os nomes das bandas denunciavam que estavam ali para se divertir antes de qualquer coisa. O alvoroço foi tanto que, em setembro de 2004, a revista Veja Rio produziu uma pequena reportagem sobre o tema, a qual intitulou Escolas de Rock. Além de Forfun e Dibob, estavam biografados na matéria Hill Valleys e Emoponto. Este último, como bem recorda Daniel, teve chance o suficiente de aproveitar a tendência, mas chegou um pouco atrasado. Os mais novos já estavam consagrados como as grandes estrelas.

Esses eventos foram o primeiro divisor de águas. O que aconteceu a partir disso, aí sim, passa a ser considerado um movimento, ainda que involuntário. Antes, era um universo escondido, particular, compartilhado exclusivamente entre músicos e aspirantes a músicos. De repente, passou a ser de todo mundo. Talvez nem as bandas imaginassem que agregariam tantas pessoas em torno si, que conquistariam uma legião de fãs, um público fiel e apaixonado, sem ao menos terem uma canção tocando no rádio — alguns já, outros não ainda. Os palcos modestos das escolas se tornaram pequenos, a quantidade de expectadores demonstrava sinais de que comportava espaços maiores que pátios e quadras. Àquela altura, os jovens artistas já se apresentavam em festivais criados anteriormente a eles, de pequeno ou médio porte, nas escassas — e quase sempre precárias — casas de show da cidade, onde as próprias escolas inclusive tiveram de alugar algumas noites para seus eventos, mas faltava o que viria deles para a frente. Muitos foram os festivais que nasceram em torno dessas bandas, mas dois deles saltam aos olhos e são lembrados ainda hoje: Rio Summer Nights e Rio Rock Tour.

O primeiro foi criado pelo produtor Guilherme Araújo, 36 anos. Quase 20 anos atrás, ele tinha acabado de completar a maioridade e já ostentava um vasto currículo em eventos para adolescentes. Grande parte dos promoters das matinês que ele produzia eram também integrantes de banda, o que o levou a perceber a efervescência de um circuito. Ele já frequentava eventos do tipo e colaborava com os saraus de escola que aconteciam fora das instituições, até que um dia foi convidado a ir a um show do Forfun na Casa Amarela, em Copacabana. Não havia mais 40 pessoas naquele salão, mas todas cantavam e pulavam enlouquecidamente, sem se importar em nada com a desafinação do vocalista. O carisma dos artistas e o delírio da plateia fez com que ele sentisse o desejo de promover espaços para grupos como aquele.

Passou pelo Garden Hall, Clube Hebraica, Hard Rock Café, cada vez mais lotando espaços. O Rio Summer Night, contudo, só veio a nascer realmente quando a festa aterrissou

no clube Scala. A ideia era reunir numa única noite o mais popular da rotina carioca: o Funk inveterado de cada dia, com DJs ou MCs, e o Rock que era a nova sensação do momento. Inusitado ou não, deu certo. Era por volta de 2003 quando a primeira edição aconteceu. DJ Malboro agitou a pista, Sracho abriu para os amigos Dibob e Forfun. Os presentes contavam em 5.000 pessoas. O número impressiona, mas numa outra ocasião da mesma festa, dessa vez com Detonautas, Forfun, Darvin e MC Marcinho no antigo ATL Hall, a marca foi de 8.000. A mesma quantidade esteve no Claro Hall, deixando ainda 2.500 pessoas do lado de fora — segundo Guilherme, a maior recorde de público da história do lugar. No Hard Rock Café, mais de 2.000 ingressos já estavam no esgotados com 15 dias de antecedência. É de tirar o fôlego.

Já o Rio Rock Tour saiu da cabeça do empresário Rafael Brahma, 34 anos. A história de certa maneira se repete, pois Rafael também tinha por costume produzir festas, mas, impedido pela idade, pegava emprestada ou alugava casas dos próprios amigos até que pudesse frequentar casas noturnas, e então rodou a cidade por boates como Prelude, Studio 54 e Baronetti. Os eventos que ele produzia estavam mais voltadas para ritmos pop e eletrônicos, mas o rapaz se percebia musical desde cedo e por isso ouvia de tudo, inclusive bandas de Pop Punk. Empolgado com o que estava acontecendo a sua volta, entendeu que não seria difícil usar a mesma estrutura das suas festas para diversificar um pouco. Porém, ao contrário da Rio Summer Nights, a ideia sempre foi trabalhar apenas com o Rock. Por volta de 2003, criou a marca e entrou em contato com o Claro Hall — casa de espetáculos que anteriormente se chamava ATL Hall, mas foi criada originalmente como Metropolitan. Já se chamou Citibak Hall, voltou a ter o nome inicial por um tempo, e hoje atende por Km de Vantagens Hall.

A proposta era trazer grandes bandas como atração principal, e dar às menores a oportunidade de abrir o festival. Esses iniciantes cobravam cachê bem mais baixos que artistas de mais tempo de estrada, entre $300 e $1.000 no máximo, quando não apenas o custo da viagem. Assim, na primeira edição, CPM 22 foi anunciado como o ponto alto da noite. A casa estava cheia, como sempre seria dali em diante, com 8.000 pessoas. Mas a surpresa para Rafael, e provavelmente para muitos, foi que a empolgação de mais da metade dos que lá estavam aconteceu quando Forfun subiu ao palco. Quando finalmente chegou a vez dos paulistas, o público já estava se dispersando. Já na estreia o empresário percebeu que as bandas tidas como “menores” não eram tão pequenas assim na verdade.

O Rio Rock Tour acontecia em média três vezes por ano e tinha mais de oito horas de duração. Começava às 16h e entrava pela madrugada até pelo menos 2h da manhã. No palco chegavam a passar quase 20 bandas. Rafael lembra que era curioso ver jovens formando filas gigantes horas antes do show começar, num sol vigoroso das tardes do Rio de Janeiro, vestindo

roupas pretas ou menos coloridas, dependendo de quem estivesse se apresentando no dia, esperando para ficar horas confinado em um espaço fechado assistindo seus mais novos ídolos. Para ele, o espanto nunca foi a quantidade de gente que era capaz de movimentar, e sim o fato de que ninguém mais estava enxergando a proporção do que acontecia. “As gravadoras, por incrível que pareça, estão sempre atrás de quem está na rua. Eles têm que fazer tanto a roda girar que ficam ali presos no mundo hipnótico deles, e aí você que está na rua sabe o que está para acontecer, qual será o próximo movimento, eles não. Como gravadoras milionários, multimilionárias, não conseguem ver esses artistas antes da gente?”.

Depois de 21 edições no mesmo lugar, aproximadamente sete anos de sucesso de bilheteria, o evento chegou ao fim quando o empresário vendeu sua parte na produtora e seus sócios, por motivos que ele desconhece, não desejaram seguir em frente. Ainda enquanto estava bombando, Rafael observou que o marketing que ele fazia para os grupos era o mesmo que para suas produções, um alimentava o outro. Em pouco tempo fez a transição de produtor de eventos para empresário de banda, e pelo gerenciamento dele passaram Darvin, Strike, Forfun, NX Zero e outras. Por essa facilidade, conseguiu que grupos transitassem entre Rio e São Paulo, fazendo com que as bandas daqui abrissem para as de lá e vice-versa – esquema parecido com o qual Guilherme também propôs no decorrer de sua trajetória.

Nesse processo, Brahma descobriu que realmente amava trabalhar com música. Mais do que o simples entretenimento de suas festas, estava encantado com o que ele podia fazer com ela e o que ela podia fazer com a vida das pessoas. Não é de se espantar que continue nos dias de hoje empresariando artistas (a banda Melim faz parte do seu cast) e tenha duas gravadoras além de uma agência de marketing musical. Guilherme Araújo, por outro lado, trabalha atualmente com produtos sustentáveis e realiza eventos apenas nessa área. Apesar de também ter sido empresário de Forfun e Scracho, não se envolveu tanto, mas guarda boas recordações. “Eu me deixei levar por esse movimento. Torcia muito, cantava as músicas. Não por que eu me identificava com as letras, ou com as músicas, é que existia uma energia, uma atmosfera que te arrebatava. Eu gostava de fazer parte daquilo, me sentia muito orgulhoso de ver aquilo acontecendo. Era quase como uma mágica”. O formato criado pelos dois foi multiplicado por diversos bairros do Rio de Janeiro, entre todas as Zonas possíveis, com nomes diferentes em cada lugar.

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Crédito das imagens: Pixabay License

*Texto construído a partir do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Esse tal de Riocore: uma grande reportagem sobre o cenário Pop Punk e Hardcore carioca dos anos 2000”, apresentado em dezembro de 2018 à Universidade Veiga de Almeida.

Esse tal Riocore (parte 03)

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A origem do termo e outras discussões

Como é possível notar, o solo estava fértil para os que estavam abaixo dos 20. Eles eram os personagens principais das histórias que eles mesmos inventavam. Se não tomavam o palco, se mantinham nos bastidores. Vocalistas, guitarristas, baixistas, bateristas. Produtores, promoters, fotógrafos, fãs. Todos no ápice da juventude, tentando se descobrir e fazer disso uma grande descontração. Quando não tinha um promoter que comprasse a ideia, eles mesmos se organizavam ligando uns para os outros porque estavam determinados a fazer acontecer. Ao mesmo tempo, alguém já estava observando de longe. Um senhor, a quem eles chamariam de “coroa”, que sabia descobrir no meio do barulho qual seria a nova aposta, que tinha como prazer observar para onde se encaminhava a cultura urbana das gerações posteriores a sua. Luiz Carlos Rosa, definido por muitos como louco – no mais nobre sentido, um “maluco beleza” – é a quem se atribui, quase que unanimemente, a responsabilidade da criação do termo Riocore.

Luiz vive hoje, aos 59 anos, em um sítio no sul de Minas Gerais criando cachorros. Resolveu dar um tempo da agitação dos shows que produziu, mas lembra bem das histórias que viveu nos bastidores. Inclusive, foi mesmo por trás dos palcos que ele deu os primeiros passos na música. Começou como contrarregra na primeira edição Rock In Rio, evento histórico de 1985, depois passou pelo Hollywood Rock e o Metropolitan. Na produtora do irmão, trabalhou com Dani Carlos, Leila Pinheiro, Luiz Melodia, e organizava turnês de ex-participantes do reality show Fama, da Rede Globo. Depois de um tempo aquilo não lhe dava mais satisfação e foi atrás de coisas diferentes. Frequentador da Casa da Matriz, em Botafogo, ficava de olhos e ouvidos atentos à cena independente. Apesar de ser mais velho, gostava da “atitude da garotada”.

Quando olhava mais de perto os eventos, dizia para si mesmo “Isso não é show, isso é festinha”, pois os equipamentos eram de péssima qualidade. À vista disso, criou uma produtora que intitulou X Music, e com o nome dela movimentou diversos eventos, entre eles X Music Ao Vivo, para ajudar a promover as bandas cariocas relacionadas ao Hardcore, Pop Punk e outros gêneros. Sempre fez questão de colocar camarins bem equipados, as melhores aparelhagens de som que era capaz de conseguir, e bons roadies, profissionais que apoiam a montagem e desmontagens dos palcos e oferecem todo suporte técnico no momento de testar os instrumentos – um deles era o baterista Bira da banda Vitória Régia, que acompanhava o cantor Tim Maia. Luiz lembra que os “meninos” ficavam loucos quando viam Bira tocando ou quando se deparavam com a estrutura dos eventos como um todo, já que não estavam acostumados.

Os maiores empresários do momento, para ele, eram de fato Guilherme Araújo, Rafael Brahma e Marcos Sketch, que está hoje com o grupo Braza. O problema é que, depois de um tempo, o que ele descreve como “conduta política” passou a atrapalhar: novos festivais surgiam nas mãos desses então jovens agenciadores, virando de alguma forma seus concorrentes, pois Forfun só tocava no Rio Summer Nights com Guilherme, que os estava empresariando, da mesma forma que Darvin só acompanhava o Rafael. “Eu era bem mais velho e mais acostumado, os mais novos pensavam diferente. Eu fazia por amor, por prazer, os outros só pensavam em dinheiro”, reclama. Mesmo assim, ressentindo-se de certa forma pelo que considera uma traição, não desmerece o trabalho deles, e de outras pessoas, e segue tecendo elogios e confessa também que aprendeu muito com a nova geração sobre as novas formas de divulgação por meio da internet.

A atividade não durou mais que três anos, mas deu tempo de, em 2005, chegar ao Circo Voador. Na sequência, se apresentaram Catch Side, Emoponto, Ramirez, Scracho, Asterisco Zero e US 4 fechando a noite. Até ali, os eventos se concentravam mais na Zona Sul do que no Centro, e talvez por isso a quantidade de público não chegou perto de lotar a casa – apenas um terço da capacidade de 3.000. Mas pela resenha publicada no site Punknet na época, nem as bandas nem o público se intimidaram, estavam curtindo tanto o momento que garantiram um dos melhores shows do ano. A festa levou o título de Circo Riocore e foi a primeira vez, pelo que os músicos lembram, que o termo foi usado comercialmente. Os artistas estranharam um pouco, mas não ao ponto de rejeitarem o nome ou discutirem por isso. A ideia nunca foi comprada por eles, Rosa percebeu isso, mas nenhum dos lados fez questão de reclamar.

Essa é a versão que a maioria conta. Não sabem de onde veio o termo, mas ouviam aqui e acolá alguém mencioná-lo. Apenas uma pessoa, não sem antes fazer mistério, chama para si a responsabilidade: “Fui eu que criei”. Rodrigo Costa, 38 anos, baixista e vocalista da banda Forfun, explica: “Vinha querendo achar algum termo para caracterizar melhor aquele tipo de som que fazíamos, e me inspirei em abreviações como SPHC (São Paulo Hardcore) e NYHC (New York Hardcore). Mas não éramos Hardcore, estávamos mais para o Pop Punk em termos de colocação dentro do universo Punk Rock, creio eu, e tínhamos algumas características próprias de um certo tipo de ‘rock de bermudas’, mais praiano, mais do Rio. Então era um ‘hardcorezinho’ pop do Rio, um Riocore. Começamos a usar em comunicações nas redes sociais com o Forfun em um post ou outro, e logo depois já tinham festas com esse nome, bandas caracterizando-se como parte do segmento. Acabou que ficou”.

Ficou, mas não muito. Do mesmo modo que nem todos os artistas tomaram conhecimento, ou se lembram, de que a façanha da expressão teria vindo de Rodrigo, não existe um consenso sobre o que Rio tinha que os outros não tinham. Afinal, se não era exclusividade da geração anos 2000 aderir a essa variação do Punk, menos ainda da cidade. O gênero emergia

também em outras regiões do Brasil, grandes ou pequenas, e essa tentativa de dar nome a uma cena local, em criar uma identificação particular, leva a outro questionamento: “Qual a diferença do Riocore para o ‘Sampa Core’ ou ‘Porto Alegre Core’, sabe?”. É a pergunta que sempre esteve na cabeça de Thiago Calviño, baterista da banda Asterisco Zero, e de amigos do meio. “A gente que estava lá desde o início não queria muito isso porque vira uma panela. Maneiro, ficou marcado como um movimento que rolou na época. Mas na verdade, quando você pensa em cena de bandas independentes, você não quer se distanciar das outras pessoas. Isso não é legal. O legal é tocar com todo mundo”.

No entanto, ele concorda que, em determinados pontos, é possível que não seja exatamente o mesmo tipo de som. Tomando por exemplo o NX Zero, de longe a maior banda paulista na época, talvez não combine tanto com o Forfun, mas com o próprio Asterisco Zero quem sabe exista um paralelo. A Fresno, grande expoente das bandas sulistas, provavelmente não conversa tão bem com o Dibob quanto o Cueio Limão, do Mato Grosso do Sul. De qualquer forma, a comparação com São Paulo é sempre mais forte. Existe um duelo histórico e cultural entre as metrópoles, algo que precede os músicos. Para Mateus Simões, 36 anos, baixista da banda Phone Trio, a divisão é mais ou menos assim: “São Paulo é urbano, cimento, concreto. Rio é sol, mar, areia”. Para ele a questão geográfica afeta muito, pois percebe que as cidades litorâneas tendem a lançar propostas mais alegres, “para cima”. “Mas em questão de público, a gente perde. A galera do Rio adora, se amarra, mas se for para a praia e ‘morgar’, eles não vão no show à noite, nem com ingresso comprado. Não é por gostar menos e sim por ter atividades diferentes. É outro ritmo. O público paulista é muito mais fiel”.

O Emoponto, que o baterista considera a banda mais paulista de origem carioca, não teve aqui seu maior público. Lá eles eram astros, na cidade natal chegaram a pedir para abrir shows algumas vezes. As causas podem ser desde o vestuário dos rapazes, predominante preto e nada colorido, até uma identificação musical própria do local. Mas essa é uma questão particular do grupo. Quando Daniel Ferro pensa no geral, percebe a própria falta de estrutura da cidade para fortalecer cenas de Rock, pois a maior dificuldade é encontrar lugares tão bons quanto dispõem os bairros paulistas. “Aqui no Rio era um puteiro em Copacabana que desativou e a cafetina de lá liberava para fazer show, que era o Casarão Amarelo. Tinha o Beco da Bohemia, meio que um bar desativado que a galera usava porque o cara de lá via que dava dinheiro e deixava. O Garage nunca foi point mesmo da galera porque não era bem localizado”.

Fora todo esse debate, é imprescindível dizer que sem o advento da internet, nada ou muito pouco teria acontecido. O circuito, em nível nacional, foi construído de modo totalmente independente – mesmo que uma ou outra banda tivesse entrado no cast de uma gravadora em

algum momento da carreira, foi apenas uma passagem. Nesse sentido, não tinha nada de incomum em comparação às cenas anteriores: produzir discos por conta própria, sem qualquer patrocínio para o que quer que fosse, e batalhar para vender o trabalho em shows ou conseguir parcerias em lojas especializadas no segmento relacionado, como as lojas de skate e surf no presente caso. O músico Lobão, no tempo em que decidiu seguir sem gravadora, usava de bancas de jornal para comercializar seus álbuns, feito inusitado e bem-sucedido. Ou seja, o meio artístico sempre encontrou uma maneira de “dar um jeito”, e seguir esse caminho não necessariamente se relacionava à qualidade, baixa ou alta, ou até mesmo uma escolha. Para alguns, era mais uma contingência. A única alternativa possível quando a rota convencional não deixava brechas.

Acontece que, nos anos 2000, o período era de transição. A indústria fonográfica passou a terceirizar seus serviços e já estava fragmentada em poucas grandes gravadoras e muitas pequenas e independentes, não raro mantidas como selos dos conglomerados, seus laboratórios de novas tendências. E se as implicações da pirataria deixavam empresários e artistas com a pulga atrás da orelha, a internet veio para mostrar que isso ainda não era nada. Com a chegada das plataformas digitais, dos sites e programas de download ou streaming, a distribuição das músicas ficou mais barata e de amplo alcance. Se trata dos primórdios do mp3.com, Napster, MySpace. Dessa forma, um usuário disponibilizava seu arquivo pessoal e um outro o adquiria, e este passava a um amigo, que depois transferia para um terceiro e continuamente nessa dinâmica até formar toda uma rede de compartilhamento, por computador ou celular – trocar arquivos através de ICQ, MSN e Bluetooth era uma moda.

Anos atrás, isso era uma grande novidade, sobretudo para a música. A facilidade representou certa descentralização da produção musical, uma subversão dos valores que indicava democratização da arte. As primeiras, então, a se fazerem valer dessa transformação eram elas, as novas bandas de Hardcore e Pop Punk. A banda Biquíni Cavadão, ao contrário, ainda que tenha sido pioneira entre seus contemporâneos a entrar nesse universo, fazia parte de um contexto diferente, de uma geração anterior. Eles perceberam a necessidade em fazer essa passagem, mas seu público tinha dificuldades em dialogar com o formato, não eram nativos como seus sucessores. “Na nossa época, quando começamos a pensar em compor, foi quando começou a aparecer para o mundo músicas do mundo. Tivemos acesso a certos estilos musicais que não tocavam na rádio aqui, de bandas bem jovens, com uma conceituação muito livre. Foi quase que uma substituição daquela música que dependia de gravadora e que todo mundo tinha que ser muito bom porque a peneira era grande. Músicas que, muito sinceramente, eram até mal tocadas. Tanto por eles quanto por nós. A internet globalizou um pouco e difundiu tudo de uma

forma que foi muito bom para a gente”, lembra o baixista Caio Correa, 31 anos, da banda Scracho.

Com este veículo, a distância do público se tornou ainda mais curta. Por intermédio das primeiras redes sociais, a interação atingia níveis desconhecidos. Mais uma vez é importante lembrar que hoje essa realidade é totalmente comum, mas naquele momento se vivia uma fase de experimentação. Antes do Facebook e do Orkut, as páginas mais movimentadas eram as do Fotolog. Por lá eram divulgadas agendas de shows, gravações, novidades, histórias de bastidores, textos, músicas, imagens, vídeos. A sensação de conhecer seus ídolos de perto, na intimidade, começava com esses protagonistas. Os próprios fãs se confundiam entre consumidores e produtores, pois publicavam seus registros de eventos em que estiveram e até suas versões de clipe com bonecos de palitinho ou fotos pessoais. O ambiente colaborativo característico do século 21 estava inaugurado.

Desde aquela época dos saraus, as bandas desse ciclo foram frequentemente qualificadas como “bandinha”, mesmo pelas pessoas que gostavam, possivelmente por toda esse histórico colegial com admiradores adolescentes. “Não acho que as pessoas que chamavam assim tivessem intenção de falar de forma pejorativa. Mas sem dúvida, para quem não conhece, para quem está de fora, é como se fosse uma coisa menor. NX Zero sem dúvida começou como uma bandinha. Toda banda começa pequena, tocando numa garagem, num estúdio ruim, e quando ela ganha credibilidade ela vai se tornando grande, isso é um processo natural”, opina Pedro Burgos, 31 anos, vocalista da banda Offline. Caio concorda, e acrescenta ainda que esse preconceito vinha de pessoas que não conheciam o trabalho deles, e que nem estavam interessadas em conhecer; era a crítica pela crítica. “Realmente, eu comecei a tocar com 14 anos, então a galera que pegar o meu primeiro disco vai ouvir uma banda de garotos de 14 anos. Mas aí chegou um momento em que eu tinha 28 e galera achava que era a mesma coisa. Então essa era a única taxação que me incomodava”.

Thiago Calviño também traz uma resposta na ponta da língua: “Depende de quem vem a crítica, né? Aí as vezes alguém que está no Leblon, fumando charuto e ‘nossa, isso não é cultura musical’. Isso não é cultura musical sua! Se você for abrir uma padaria, sempre vai aparecer alguém falando que o seu pão é ruim. Se você não acreditar que alguém vai lá comprar o seu produto todo dia, você não vai vender pão. É mais ou menos isso”. Esse preconceito tentava se justificar na possível imaturidade dos integrantes. Jovens demais, bobos demais. Até poderia ser, de fato, já que no início atingiam a marca dos 18 anos de idade. Daniel Ferro, no entanto, oferece outro ponto de vista. “Acho que o mais certo é espontaneidade. O Rock é espontâneo em qualquer estilo que seja. Você pega uma guitarra e não sabe tocar, só vê o cara

fazendo, aí tenta aprender sozinho. Baterista aprende tocando no sofá só com um par de baquetas, e se bobear nem tem baqueta. É espontâneo. Você quer fazer. E isso tem uma ‘tosquice’ que faz parte. E eu acho que era essa motivação, foi isso que cativou o público”.

*Texto construído a partir do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Esse tal de Riocore: uma grande reportagem sobre o cenário Pop Punk e Hardcore carioca dos anos 2000”, apresentado em dezembro de 2018 à Universidade Veiga de Almeida.

Inclusão: relatos de deficientes visuais no ensino superior brasileiro

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Educação (MEC), através da diretoria de políticas da educação especial, verificou que 29.221 estudantes com deficiência visual estão matriculados em curso de graduação em Instituições de Ensino Superior (IES). Mas o caminho até aqui foi e continua sendo dificultoso.

Como conquista das constantes reivindicações, em 1988, a Constituição Federal Brasileira decretou que qualquer pessoa que possua algum tipo de deficiência se matricule em classes comuns do ensino regular.  Em seu artigo 205, ela prevê que “a educação,  direito de todos e dever do estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Professora Adenize Queiroz

Já o artigo 208  garante o direito ao “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”. Mas para Adenize Queiroz de Farias, professora doutora de educação especial na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), essa é uma realidade distante. Ela, que também possui deficiência visual, acredita que “a falta de atitudes de professores voltadas para acessibilidade é uma grande barreira”, informa. “Mesmo hoje, vivendo em mundo globalizado, tecnológico e digital, existe uma ‘resistência’ de alguns professores em adaptar-se na elaboração e apresentação de conteúdos acessíveis para alunos”, relata.

Tal carência acaba dificultando a manutenção e ampliação da inclusão de mais estudantes com deficiência visual nas universidades. Além disso,  Adenize esclarece que são raros os materiais didáticos acessíveis para alunos com deficiência visual.Para proporcionar uma maior inclusão, a UFPB dispõe de alunos apoiadores que acompanham os alunos com necessidades especiais em todos os horários de aula.

A instituição também conta com o Núcleo de Educação Especial (Nedesp), que é responsável pela adaptação, transcrição e revisão de textos e obras acadêmicas para o sistema Braille.

William Véras nasceu cego devido um glaucoma congênito e cursa o último período do bacharelado em Jornalismo na UFPB.  Ele vive uma realidade mais próxima dos ideais de inclusão e já está habituado com a sala de aula: enquanto o professor explica o assunto, o jovem utiliza o material adaptado fornecido, seu notebook e celular, que através de softwares e aplicativos ajudam nas leituras dos textos. O celular, por exemplo, converte todos os textos em áudio.

Assim, o futuro jornalista consegue acompanhar todas as aulas igualmente aos demais alunos: “Em minutos, consigo criar textos e responder atividades graças à tecnologia e ainda conto com o auxílio do aluno apoiador na sala de aula”,  destaca.

Professora Joana Belarmino

Os avanços tecnológicos na área da acessibilidade revolucionam cada vez mais. Joana Belarmino, professora de jornalismo da UFPB, nasceu cega e conquistou com muito esforço o título de doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Recentemente, ela adquiriu a Orcam My Eye, óculos munidos de uma câmera  que captura textos e fala ao deficiente visual o que está escrito. “Através da Orcam eu posso ler materiais não-adaptados para deficientes visuais, o que é prático e facilita bastante minha vida”, enfatiza.

Diante deste cenário, e após os relatos de cada entrevistado, seguimos com a certeza  que as tecnologias estão auxiliando de forma técnica, porém, não podemos deixar escapar as relações humanas, ajudarmos uns aos outros, pensar no outro. O engajamento pela inclusão e acessibilidade não pode ser apenas dos deficientes visuais, todos os grupos sociais podem colaborar para melhorar essa realidade.

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Crédito das imagens: Autores – Imagem da capa: Estudante William Véras

Produtor rural está mais conectado à tecnologia da informação

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

O produtor rural é imprescindível para diversos setores da sociedade. É através deles que frutas, verduras, legumes, carnes, raízes e derivados do leite chegam na nas prateleiras dos supermercados e vão para a mesa de milhões de brasileiros.

Para melhorar o cultivo, a produção e ajudar na distribuição e venda, o uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) vem se ampliando no setor. O Censo Agropecuário do IBGE de 2017 aponta que houve um aumento de 1790% no número de produtores com acesso à internet desde o ano de 2006 até 2017.

A pesquisa mais recente do Sebrae mostra que que 71% dos donos de microempresas rurais e 85% dos proprietários de empresas de pequeno porte no campo usam smartphones no dia-a-dia. Intitulada Tecnologia da Informação no Agronegócio, ela buscou entender os hábitos digitais dessa classe trabalhadora e como eles utilizam os recursos das TICs diariamente. A análise feita pelo Sebrae ouviu aproximadamente 4.500 produtores dos 26 estados brasileiros, somados ao Distrito Federal. Os resultados informaram, por exemplo, que meio é utilizado para acessar à Internet (celular ou computador) e a finalidade do seu uso por parte dos produtores (controle administrativo, capacitações, negociações etc).

Pablo Queiroz, Analista Técnico do Sebrae Paraíba, afirma ser muito interessante a realização e a análise dos resultados de uma pesquisa desse tipo:“é necessário que empresas que trabalham com produtores rurais saibam em que os trabalhadores estão investindo, seja em um smartphone para aumentar as vendas através de aplicativos ou um computador para criação de planilhas de controle dos gastos e lucros para poder prestar uma melhor orientação”, afirma.

A Paraíba obteve resultados importantes dentro da pesquisa: em relação à prioridade que esses produtores dão ao utilizar seus aparelhos 77,2% afirmou utilizar o celular para questões pessoais e profissionais e um terço dos entrevistados já utilizou a internet para realizar vendas.

Seu Ernande, o Baiano (apelido que ganhou quando chegou a João Pessoa, pelo fato da Bahia ser sua terra natal), é um exemplo de produtor rural que utiliza seu aparelho celular para incrementar suas vendas. Ele criou um grupo no aplicativo de mensagens WhatsApp, onde seus clientes fazem o pedido e um funcionário dele reserva um dia da semana para realizar as entregas.

Miguel também é produtor agrícola no estado e utiliza a internet para se atualizar: “Eu uso para a pesquisa de outros produtos, conhecer tecnologias mais atuais… a gente (os produtores em geral) também precisa se atualizar”, destaca. Ele conta que faz pesquisa de preços de sementes e estuda técnicas para melhorar as práticas no roçado, um hábito que vem crescendo neste ramo.

A divulgação de produtos nas redes sociais já virou costume para Miguel, que assim como Baiano, também utiliza o WhatsApp para encomendas. Os dois comentaram que o uso do aplicativo como ferramenta de trabalho fez o número de vendas crescer consideravelmente.

Segundo o levantamento 32,1% dos entrevistados na Paraíba utiliza a Internet para ter acesso a serviços financeiros e bancários, 67,9% pesquisam preços de fornecedores, metade dos entrevistados buscam conseguir parcerias com o governo e 21,4% deles divulgam sua empresa e/ou produtos na rede. A capacitação também é alvo dos produtores: pouco mais de 60% deles investe 5 horas por semana para se capacitar de forma online.
Baiano, por exemplo, se capacita assistindo muitos vídeos de especialistas e profissionais do campo dando dicas para um melhor plantio, pois acredita que assim poderá aprender mais.

Segundo o levantamento, aproximadamente 70% dos produtores paraibanos em atividade já realizam o gerenciamento financeiro e administrativo de seu negócio, porém metade deles ainda o fazem no papel. Somente 18,3% utilizam ferramentas digitais de gestão, divididos entre o computador e o telefone celular. Entretanto, se tivessem a possibilidade e o acesso facilitado à essas ferramentas, 30% dos entrevistados utilizaria o computador para este fim e outros 12% o smartphone.

A falta de acesso à internet é um grande problema que ainda está longe de ser resolvido. Segundo a mais recente pesquisa TIC Domicílios, do ano de 2017, apenas 61% dos domicílios brasileiros estão conectados à Internet, o que representa 42,1 milhões de residências — um crescimento de sete pontos percentuais em relação a 2016. O mapeamento foi realizado pelo Centro Regional para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) entre novembro de 2017 e maio de 2018.

Nas áreas rurais, apenas 34% possuem acesso à rede enquanto que no meio urbano a abrangência corresponde à 65%. O acesso à Internet está mais presente em domicílios das classes A (98%) e B (91%) de áreas urbanas. A pesquisa TIC Domicílios, que é realizada anualmente desde 2005, tem com o objetivo de mapear o acesso à infraestrutura TIC nos domicílios urbanos e rurais do país.

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Crédito das imagens: Pixabay License

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