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Reportagem - page 2

Vidas em Perigo: trabalho escravo e tráfico de pessoas na Paraíba

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

“Quando eu era criança costumava ir à praia do Cabo Branco, onde eu ficava admirando o mar e pensando numa vida melhor. Tinha uma infância pobre, filho de uma dona de casa e de um servente de pedreiro. Certo dia, lá pelos meus 13 anos, conheci um casal de comerciantes ambulantes na praia, eles me convidaram para conhecer Recife e trabalhar junto com eles. Eu achava que seria uma oportunidade de mudar de vida mas fui enganado, ambos se aproveitaram da minha pouca idade e inocência me forçando a trabalhar por comida.” Esse é o relato de Pedro*, que vivenciou situações degradantes durante dois anos em Recife, capital pernambucana.

Hoje ele tem 55 anos e relata com lágrimas nos olhos o que passou: “eu não conhecia ninguém na cidade, não sabia quem procurar nem como voltar pra casa, eles abusavam sexualmente de mim”, enfatiza.

*Nome fictício criado para proteger a identidade do personagem.

Mais de 40 anos depois, infelizmente, tal realidade ainda é recorrente, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 25 milhões de crianças e adultos em todo mundo foram submetidas a trabalho forçado em 2016. Ele é uma forma contemporânea de escravidão, que, segundo a OIT, é o trabalho ou serviço exigido de uma pessoa que pode ocorrer com trabalhadores em suas áreas de origem ou fora dela, através da manipulação e engano que resultam em estado de servidão. Na Paraíba, de acordo com o Ministério Público do Trabalho, quase 480 pessoas foram vítimas de trabalho escravo nos últimos anos.

Segundo o escritório da OIT em Brasília, entre 1995 e 2015 , foram libertados 49.816 pessoas no Brasil que estavam trabalhando em regime de escravidão contemporânea. Para combater tamanha violação humana foram adotadas, a partir da Conferência Internacional do Trabalho em 2014, um Protocolo e uma Recomendação que complementam a Convenção sobre o Trabalho Forçado (n° 29, de 1930), fornecendo orientações específicas sobre medidas efetivas a serem tomadas.

A coordenadora do Núcleo e do Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico e Desaparecimento de Pessoas da Paraíba – respectivamente NETDP/PB e CETDP/PB – Vanessa Araújo, alerta que “muitos dos trabalhadores são coagidos por criminosos com falsas oportunidades de trabalho dentro e fora do Brasil”. O trabalho forçado e a exploração sexual são finalidades do tráfico de pessoas, uma problemática relacionada ao trabalho escravo contemporâneo, que nos últimos sete anos ultrapassou 170 denúncias na Paraíba; os dados são da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Humano.

Vanessa Araújo discursando sobre o tráfico de pessoa na Paraíba.

O Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas (Protocolo de Palermo), possui uma definição oficial do que seria essa violação à vida: a expressão ‘tráfico de seres humanos’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento, recorrendo à ameaça, uso da

força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, à situação de vulnerabilidade, à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”.

Realidade das vítimas

Muitas das vítimas buscam uma melhor qualidade de vida no exterior para superar o sofrimento e flagelo enfrentados no cotidiano. Através das supostas ofertas de trabalho sonham em ajudar os familiares, caindo em conversas tentadoras de aliciadores, que oferecem falsas condições e remunerações vantajosas. Às vezes viajando sem avisar aos seus familiares, as vítimas chegando lá são forçadas a desempenhar funções não combinadas, lhes sendo retirados seus documentos e meios de comunicação. Distantes de seus lares e de pessoas conhecidas, até mesmo sem falar o idioma local, perdem a liberdade de ir e vir, interrompendo os planos de um futuro mais digno.

No cenário local, a exploração sexual de menores na Paraíba é uma das cruéis destinações dadas às vítimas. Grande parte delas vêm dos grupos em vulnerabilidade social: são de comunidades carentes, vivem em situação de rua ou em famílias com situação econômica difícil, realidade vivida por Pedro. Segundo Vanessa, muitas das vítimas oriundas da Paraíba são destes grupos vulneráveis: “o tráfico de pessoas para trabalho escravo se dá também internamente, dentro do próprio estado da Paraíba, segundo as denúncias recebidas e, por isso, é preciso um esforço conjunto entre os órgãos competentes e a sociedade civil local”, enfatiza.

 Falta cooperação entre instituições

 Mais um grave problema é a falta de cooperação de instituições governamentais na Paraíba em oferecer dados sobre o tema, o que prejudica o levantamento de dados oficiais. A coordenadora Vanessa destaca que oficiou para os órgãos competentes pedidos de informações sobre o tráfico humano, suas demandas, inquéritos, denúncias para a partir disso identificar o perfil de cada vítima, entretanto uma pequena parcela deles respondeu até o momento.

Na esfera transnacional a situação se agrava ainda mais segundo a pesquisadora e presidente da Associação dos Policiais Civis de Carreira da Paraíba(Aspol/PB), Suana de Melo. Segundo ela, através de investigações vêm sendo constatado que muitos dos envolvidos estão onde menos se espera: “já pudemos atestar que existem pessoas em órgãos da justiça que facilitam diversos trâmites para concessão de documentos, por exemplo, para a saída de pessoas traficadas do país”, afirma.

Presidente Suana de Melo na sede da Aspol/PB.

Assim, o problema se intensifica, visto que aqueles que deveriam estar atuando em favor das vítimas, estão cometendo o delito. Suana ressalta que as questões políticas também afetam o combate à exploração de pessoas: “às vezes a ingerência política também pode prejudicar a situação. Nós temos um cenário aqui no estado que há suposto envolvimento de parlamentares, da câmara de vereadores, com tráfico humano. Indivíduos que deveriam trabalhar pelo povo, eleitos pelo povo e infelizmente em situações dessa natureza”, destaca.

Para Suana as estatísticas de denúncias dos últimos anos estão distantes da realidade também devido à complexidade da atuação do tráfico internacional: “durante a minha pesquisa de mestrado na Universidade Federal da Paraíba pude entender melhor a complexidade desse cenário. Até o momento não sabemos as origens, é um sistema muito maior do que se pode imaginar. Não se trata apenas de uma rede, mas de grupos que atuam de forma independente. Isso dificulta a desarticulação, além de existirem muitos empecilhos na cooperação entre órgãos brasileiros e autoridades no exterior a serem ultrapassados”, relata.

Uma centelha de esperança

A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu, em 2013, o dia 30 de julho como o Dia Mundial contra o Tráfico de Seres Humanos, em parceria com os governos estaduais e federal. Em atendimento ao Protocolo de Palermo, em outubro de 2016 foi sancionada a Lei 13.344 de combate ao tráfico de seres humanos no Brasil, a partir dela as vítimas passaram a contar com medidas de atenção e proteção. Também se estabeleceu a criação de políticas públicas interdisciplinares envolvendo profissionais de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça e desenvolvimento rural como medidas para a prevenção de novos casos de tráfico humano

Ainda em 2016 foi formalizada a criação do NETDP e do CETDP na Paraíba, que tem como missão promover ações de prevenção e repressão aos crimes dessa natureza na esfera estadual.

Ação do Comitê, em João Pessoa, no Dia Mundial Contra o Tráfico de Seres Humanos

Com tudo, as políticas públicas de incentivo ao enfrentamento a tal modalidade de crime precisam de reforços, pois grandes operações dependem de mais investimentos: “a fiscalização branda e a falta de pesquisas na área do tráfico resulta num pouco dimensionamento da proporção do tráfico humano na esfera estadual e nacional, por isso a necessidade de investir nas equipes de investigação e em pesquisas sobre o assunto é urgente”, alerta Suana.

Combater o tráfico de pessoas e o trabalho escravo exige engajamento da sociedade

Deste modo, é preciso um esforço conjunto e a mobilização social para combater essa violação humana: “todos os setores da sociedade podem colaborar abrindo espaço para essa discussão em escolas, faculdades, no ambiente de trabalho, nas redes sociais, alertando parentes e amigos para que possamos mudar essa triste realidade”, enfatiza Vanessa. “Estamos sempre realizando ações e palestras, a fim de esclarecer a população e convocá-la para denunciar”, completa.

Ação do CETDP/PB em escola de ensino fundamental na cidade de João Pessoa

 Para denunciar o tráfico e desaparecimento de pessoas, o trabalho forçado e a exploração sexual basta ligar para o Disque Direitos Humanos, Disque 100. Também se pode buscar a Procuradoria do Trabalho mais próxima ou ir até os Centros de Referência e de Assistência Social (Cras) e os Centros de Referência Especializada de Assistência Social (Creas) existentes nos 223 municípios do estado; eles são portas de entrada para receber denúncias e acolher as vítimas de tráfico humano, além de fornecer assistência psicossocial e encaminhá-las ao sistema de justiça.

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Crédito das imagens: Autores

Quando o estudante fala, temos que parar e ouvir

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Um estudo publicado em 2017, pelo então mestrando em enfermagem Hugo Gedeon revelou que 9,9% dos 637 estudantes da Universidade Federal de Mato Grosso questionados, apresentaram ideação suicida nos últimos 30 dias. A pesquisa reflete a necessidade em se debater mais sobre os problemas de saúde mental nos estudantes da UFMT, explorando a motivação dessas questões, seja a correria do dia a dia, a vida social ou a universidade.

Segundo levantamento feito pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior — Andifes (2014/2016), 80% dos estudantes de graduação relatam que já tiveram algum problema emocional.

Imagem ilustrativa (Foto: Matheus Cunha)

Nesta reportagem iremos conhecer mais a fundo dois estudantes da UFMT de diferentes cursos que vivenciam problemas de saúde mental.

“Eu sempre tive ansiedade. Acho que comecei ir ao psicólogo com uns 10 anos, só que sempre foi muito tranquilo, eu tinha uma crise ou outra, ia ao psicólogo tomava meu ‘remedinho’ e tudo ficava bem”. Assim começou minha conversa com Samira, 20 anos, estudante do 4º semestre do Instituto de Ciências Exatas e da Terra (ICET).

Quando encontrei Samira para a entrevista ela tinha acabado de sair de uma prova e transparecia um cansaço, um desânimo, com relação ao exame, talvez por isso, ela tenha chegado com um maior anseio por me contar seu dia-a-dia universitário.

Samira é do interior do estado de Mato Grosso e mudou-se para Cuiabá sozinha, conhecendo somente seu então namorado. Do mesmo modo que eu, Samira ingressou na universidade justamente em sua fase de transição para a vida adulta.

De acordo com Samira, a mudança de cidade não foi a pior parte, mas sim, a diferença entre o ensino médio e o ensino superior.

Quando questionada sobre a grade curricular, Samira respondeu sem hesitar. “A carga horária do meu curso é desproporcional para qualquer pessoa normal, porque é um curso que teve mudança de grade. Eu sou da licenciatura e agora, tem matéria de manhã, à tarde e a noite, então eu chego à UFMT 7h30 da manhã e vou embora 20h30, 22 horas”.

Com segurança em tudo que relatava, a estudante contou ainda que em suas poucas horas vagas tenta encaixar projetos de iniciação científica e iniciação a docência. Samira chamou a atenção para a pressão exercida pela ampla carga horária, em que a maioria dos professores de seu curso não tem empatia, importando se apenas com a larga ‘produtividade’.

A universitária relatou que a carga horária de seu curso e suas matérias aliadas à falta de compreensão de alguns professores foi o que mais teve impacto em sua saúde mental.

“Todo semestre tem um, dois, três professores que não têm empatia e perguntam o que eu faço de meia noite às seis da manhã”, contou.

Samira alegou que seu maior problema não é ir às aulas, mas sim conseguir realizar as provas, já que no momento dos exames ela costuma ter crises de ansiedade. As crises se intensificaram durante seu 3º semestre na universidade e se agravaram com a sua participação na greve estudantil de 2018. A estudante mencionou ainda a prova que tinha realizado pouco antes de nossa entrevista.

Sem receio algum, a universitária disse que já viu professores fazendo pressão psicológica em estudantes, enfatizando que um de seus professores, com doutorado em educação, durante uma prova falou de um aluno, colega de curso, que se suicidou.

“Ele começou a falar de como o suicídio era errado, no meio de uma prova e isso foi um gatilho não só para mim, mas para outras pessoas”, explicou.

Para a estudante a maioria dos problemas psicológicos que vão se agravando na UFMT, bem como nas universidades em geral, são porque a academia é tratada como se fosse uma hierarquia.

“Eu sou graduanda, eu sou a ralé. Aí vêm os mestrandos, doutorandos, doutores, pós-doutores, o chefe de departamento e todos mais. Essas pessoas, às vezes em sua maioria, nos tratam como se não fossemos nada, porque já passaram por isso e isso fez eles crescerem, porque eram tratados assim em 1980 e continuam com isso, assim temos sempre esse problema”, contou.

Questionei Samira sobre sua procura por ajuda psicológica dentro da UFMT e a estudante foi enfática em sua resposta, ao comentar de sua busca ao Serviço de Psicologia Aplicada (SPA).

Na concepção da estudante a instituição deveria trabalhar com os professores, já que em algumas questões eles são responsáveis pelos transtornos psicológicos dos alunos. Outra sugestão é melhorar o atendimento do SPA, pois eles tentam suprir toda a demanda da universidade, procurando alternativas para o atendimento, mas devido a grande quantidade de procura, fica difícil suprir as necessidades de todos.

“Ouvi dizer que estão otimizando o atendimento no SPA, tanto que me ligaram mais de uma vez para ver se eu realmente não queria. A universidade deveria investir nisso, focar no problema aqui dentro. Eu sei o papel social que a UFMT tem fora com os alunos da medicina, da psicologia, com intervenções e tudo mais, só que você não pode ajudar fora quando tem gente aqui dentro morrendo, quando tem gente aqui dentro se matando”, pontuou.

Apesar de haver professores que atuam, como disse Samira, sem empatia para com os estudantes, nem todos são assim. Hoje, a discente faz acompanhamento psicológico com um professor da instituição, que ao ministrar certa matéria de psicologia em seu curso se preocupou e percebeu sua necessidade por ajuda, ofertando o serviço gratuitamente.

Como estratégia de distração e para esquecer suas dificuldades, Samira costuma utilizar de alguns artifícios.

Imagem ilustrativa (Foto: Matheus Cunha)

“Sempre que dá eu bebo, mas mais pro final de semana, quando posso. Fumo diariamente e utilizo maconha quando tá tão pesado que não consigo nem dormir, comer ou pensar. O cigarro funciona por algumas horas, o álcool durante o efeito dele, já a maconha por até uns dois dias”, confessou.

No fim de nossa conversa, Samira contou um ocorrido com sua colega que paralisou todos que estavam na sala, deixando um clima tenso no ar.

Além dos acontecimentos na vida pessoal, o peso da carga horária do curso e a vida universitária, algumas vezes os estudantes têm que lidar também com eventuais movimentos dentro da universidade que interferem na saúde mental. Um exemplo recente ocorrido na UFMT foi o anúncio do aumento do valor da refeição no Restaurante Universitário, que chegou de surpresa e gerou grande impacto em todos, ocasionando uma greve estudantil.

Saúde mental na greve 2018

Durante o 1º semestre de 2018, oficialmente do dia 8 de maio a 20 de julho, os estudantes da UFMT estiveram em greve contra o aumento do Restaurante Universitário (RU). Ao longo deste período um grupo de estudantes do então, 6º semestre de psicologia da universidade realizou uma pesquisa sobre como estava à saúde mental dos universitários, com a orientação do professor Lucas Guerra.

A pesquisa surgiu da disciplina de estágio básico IV em contextos de saúde, com o objetivo de avaliar de que forma os estudantes estavam vivenciando o cenário de greve estudantil e de que forma impactava em sua saúde mental. O questionário da pesquisa foi composto por cerca de 18 questões e contou com a participação de estudantes de mais de 25 cursos da instituição.

Camila Garcia, estudante integrante do grupo, explicou que o questionário se dividiu em três partes.

“Primeiro saber de onde vinha essa pessoa, qual curso, semestre, se ela usava ou não o RU. A segunda parte seria saber a opinião dela sobre a greve, se apoiava ou não, se ela se sentia representada pelos centros acadêmicos. Depois de saber esse contexto, a gente queria chegar onde era o centro da questão, que é como está a saúde mental dessa pessoa, como ela está se sentindo, se ela está usando algum tipo de estratégia para poder amenizar os sintomas, também perguntar se as pessoas estavam sofrendo algum tipo de pressão, devido a opinião, seja a favor, ou não, de professores, familiares, quem quer que se relacionasse com ela, para saber o contexto e entender as pressões que ela poderia estar sofrendo. E a outra questão seria se estavam oferecendo apoio mental, oferecendo apoio para os colegas e se ele percebia que precisava de algum tipo de apoio emocional.”

Um espaço dentro da universidade para que haja uma troca maior de experiências entre os alunos, um local em que nós estudantes possamos recorrer rapidamente em momentos de desespero é essencial, pois para alguns, basta uma abertura, basta se sentir acolhido para falar sobre o assunto.

O estudante de psicologia Neo Ramos, pôde perceber isso por meio da pesquisa. “Com a divulgação do panfleto muita gente veio querendo expor um pouco mais dessas angústias.”

Imagem: Estudantes de Psicologia

Imagem: Estudantes de Psicologia

Para o grupo de estudantes, um número gerou maior impacto, como conta Lenize Santos.

“Os dados que foram alarmantes para nós são da quantidade significativa de pessoas que manifestaram, que coincidiram de nesse período de greve ter pensado em ideação suicida, 26 pessoas, e que utilizaram outras estratégias, como comer compulsivamente.”

Quando questionados sobre que impactos o aumento do RU, até então para R$ 5, trariam para a vida dos estudantes, responderam:

Gasto maiores com alimentação que farão com que eu tenha que priorizar as contas, talvez incluindo o tratamento psicológico que faço.

“Muito estresse pessoal e pressão por dar o dobro de gastos pra casa.”

“Me sinto em pânico, ansiosa e depressiva”.

“Passarei fome, terei que escolher entre almoçar ou jantar e comerei no máximo uns dois dias na semana.”

 

Imagem ilustrativa (Foto: Felipe Zulian Andreotti)

Lucas, 20 anos, estudante do 5º semestre da Faculdade de Comunicação e Artes (FCA). Seus problemas de saúde mental, em sua maioria causados dentro do núcleo familiar, se iniciaram ainda na infância e se agravaram com o decorrer do tempo e mediante seu ingresso na universidade.

O universitário, assim como Samira, é do interior do estado de Mato Grosso e conta que a questão da mudança de cidade não foi um problema.

“Eu sempre tive a mudança de espaço como uma forma de fugir deles (familiares), então sempre foi uma coisa boa para mim. Eu sempre me adaptei e acostumei bem, tanto que a tendência era sempre ir para mais longe”, explicou.

Minha conversa com Lucas ocorreu na universidade, no intervalo, entre uma aula e outra. Conversamos sobre como estava sua saúde mental e como o ambiente acadêmico o aflige. Segundo o aluno não é a estrutura da universidade em si que sensibiliza sua saúde mental, mas sim as relações interpessoais.

“Falta empatia em todo mundo. Todo mundo fala como se colocasse um muro entre ela e qualquer outra pessoa e a pessoa não vê nada além daquele muro. Então ela fala com qualquer um como se fosse qualquer coisa, sem se preocupar que aquela pessoa tem sentimentos, que ela tem uma história, que ela já passou por alguma coisa e isso é de certa forma um pouco cruel”, contou.

Lucas me explicou que sente falta de apoio e motivação por parte dos professores e que teve um momento em que não via mais sentido em estar estudando algo que parecia que daria em nada.

“Às vezes parece difícil você encontrar um professor que tenha uma certa motivação e até um gostar de fazer o que faz. Eu vejo que não tem muito esse preparo de estar lidando com alguém, porque as vezes parece que eles só estão preparados para falar da própria vida”, pontuou.

Imagem ilustrativa (Foto: Felipe Zulian Andreotti) 

O estudante relatou que passou um mês fora, durante seu 4º semestre na universidade.

“Semanas antes eu tentei o suicídio e a minha psiquiatra comunicou minha mãe. Ela veio e me buscou e eu fiquei no interior em internação domiciliar, em todo esse processo a questão acadêmica influenciou só que não foi a principal causa”, relatou.

Em nossa conversa, Lucas me contou que a meditação tem ajudado em seus sintomas e que para ele foi importante aceitar as coisas, sem ficar questionando o porquê do que sentia ou querer ficar procurando coisas para poder culpar. Além de tentar entender o ponto de vista dos outros porque muitas vezes as outras pessoas não entendem o que ele passa.

Indaguei Lucas se em algum momento ele buscou ajuda dentro da UFMT e sua resposta foi afirmativa.

Lucas me confessou que por causa da experiência que teve com o psicólogo da instituição, adquiriu um medo. O universitário tentou ainda procurar outros profissionais, mas por não conseguir se adaptar passou direto para o tratamento psicotrópico.

O tratamento psicotrópico consiste na utilização de medicamentos psicoativos que agem diretamente no sistema nervoso central. Sua utilização é controlada já que é considerado um tranquilizante maior e altera os processos mentais dos pacientes.

“O medicamento psicotrópico estabiliza o humor, porém você sente como se não fosse você. Você deixa de viver, você não sorri espontaneamente, você não se sente triste. Você praticamente fica como um ser apático, vendo a vida passando pelos seus olhos e não consegue interagir com ela”, contou Lucas.

Ele acrescentou ainda que a desistência do suicídio tem que partir da pessoa, uma vez que palavras amigas não o ajudaram em suas tentativas.

Por último, quando questionei Lucas sobre o que a universidade poderia fazer para melhorar a questão de saúde mental de seus estudantes, ele hesitou, mas respondeu.

Serviço de Psicologia Aplicada (SPA)

O Serviço de Psicologia Aplicada da UFMT é um ambiente muito procurado por estudantes da instituição e também pela comunidade externa. Os estudantes costumam recorrer a este serviço em momentos de desespero, como relatou a estudante de Química.

O atendimento no SPA é realizado por estudantes de psicologia da UFMT, após passarem pelos demais estágios externos. Levando em conta a importância deste serviço e como ele pode auxiliar os alunos em sofrimento, o estudante G. M., responsável por atender alguns alunos com questões psicológicas, explicou qual o fator que mais atrapalha a saúde mental dos estudantes.

“Isso pode variar bastante de curso para curso, mas existem alguns fatores predominantes ou mais comuns. Dentre eles o que mais se destaca é a cobrança exacerbada imposta por alguns cursos. Não deveria ser comum ou aceitável que um estudante durma duas horas por noite para conseguir acompanhar as disciplinas do semestre.”

Imagem ilustrativa (Foto: Felipe Zulian Andreotti)

Atualmente, o SPA fechou as inscrições para atendimento individual, devido ao grande número de pessoas na fila de espera. Como forma de não desamparar a comunidade universitária que procura atendimento, estão sendo realizados plantões psicológicos, disponíveis em dias e horários fixos, amparando alunos e servidores que necessitem de atendimento urgente ou imediato.

G.M., lembra que é importante todos cuidarem de sua saúde mental, mas que os estudantes, principalmente os universitários, necessitam de cuidado maior por vivenciarem situações que podem ser prejudiciais para o seu desenvolvimento.

“Uma grande porção dos alunos entram na universidade muito jovens, tendo na universidade as primeiras experiências enquanto jovens adultos; por este e outros fatores é necessário que haja um período de adaptação gradual onde as responsabilidades advindas da universidade aumentem com o tempo e atinjam um pico que exija esforço do aluno, mas não se torne um fardo pesado demais para carregar.”

Não existe uma receita pronta de quando um estudante entra em sofrimento mental, de quando é a hora de se preocupar, por isso é importante estarmos atentos aos pequenos sinais.

“Usualmente quando a qualidade de vida dos alunos é drasticamente reduzida em função da universidade, é comum que os alunos passem a viver em um constante estado de fadiga física e emocional e não consigam encaixar tempo para lazer pessoal entre as atividades.” G. M., estudante de psicologia.

Dicas de cuidados com a saúde mental.

É importante que o estudante frequente um psicoterapeuta e mantenha uma rotina saudável que envolva as atividades universitárias, mas que também inclua tempo para lazer e cuidados pessoais.

“É importante que o aluno construa redes de apoio dentro da própria universidade, seja com colegas de curso ou professores, e também aproveite o que a universidade proporciona e não necessariamente fazem parte do currículo de formação, como eventos culturais, festas universitárias e reuniões estudantis”, esclareceu G. M.

Projeto Aconchega

Para auxiliar e ajudar os estudantes em questões de saúde mental, a UFMT conta com o projeto Aconchega, fundado em 2010, pela professora doutora Rosa Lúcia Rocha Ribeiro.

O projeto surgiu com o intuito de promover a saúde e prevenir o adoecimento mental por meio do desenvolvimento de rodas de terapia comunitária, em que os participantes têm a oportunidade de falar e escutar outros com questões semelhantes.

Imagem: Secomm/UFMT

A prioridade do atendimento no Aconchega são os estudantes da UFMT, mas ele é aberto a toda comunidade, as rodas são realizadas todas as terças, às 17 horas, no sindicato dos trabalhadores técnico-administrativos em educação da UFMT, localizado dentro da universidade. Mais informações sobre o projeto no telefone (65) 3313-8175.

O questionário que realizei demonstrou que os alunos necessitam de uma maior atenção quanto aos cuidados mentais por parte da instituição, uma vez que os relatos foram semelhantes aos de Samira e Lucas.

“Falta empatia e melhores condições da parte da universidade.”

“Os professores frequentemente desestimulam os alunos e subestimam sua capacidade. Além disso, muitos professores são antigos, estão desatualizados e lecionam aulas defasadas.”

“Me sentia como uma máquina e quando eu quebrei me substituíram.”

Grande parte dos estudantes, os quais conversei, além dos aqui mencionados, já sofriam com problemas de saúde mental advindos de diferentes situações. Entretanto, a corrida vida universitária e tudo que ela envolve agravou muitos dos casos, visto que os alunos não se sentem amparados psicologicamente pela universidade.

À procura por ajuda

Atualmente, existem inúmeros serviços que auxiliam quem necessita de ajuda para lidar com emoções difíceis, e a tecnologia tem chegado como uma grande aliada desses sistemas.

Em tempos em que tudo acontece muito rápido, ter uma ajuda rápida ou válvula de escape próxima é sempre importante.

A página Desacelera é uma iniciativa para ajudar quem sofre de ansiedade, nele é possível encontrar exercícios de respiração e de mindfulness, ou atenção plena, que de forma guiada procura estabelecer uma conexão com as experiências e sensações do presente.

Outro endereço da web é o Não Esquenta, que utiliza de uma mistura de técnicas para lidar com momentos de raiva. Há também o Durma Zen, como o próprio nome já diz, ele lida com problemas de insônia, apresentando um relaxamento guiado e cuidados a se ter com a preparação do sono.

Por último, mas não menos importante, tem o Fui Lá e Fiz, que auxilia naquela dificuldade de começar algo e continuar procrastinando.

Além desses sites, vale ressaltar alguns contatos úteis de ajuda, tanto para estudantes da UFMT, quanto para toda a sociedade.

CAPS I/ CPA IV – Atende adultos com transtornos mentais graves e severos (65) 3649-1968 (65) 3649-6618

CAPS II/ Jd. Paulista – Atende adultos com transtornos mentais graves e severos (65) 3617-1830 (65) 3617-1831

Centro de Valorização da Vida – CVV 188

Serviço de Psicologia Aplicada UFMT (65) 3615-8492

Serviço de Psicologia Aplicada UNIC (65) 3363-1278

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*Nomes fictícios e iniciais dos entrevistados foram utilizados para fim de preservação de suas identidades.
**As pesquisas acadêmicas aqui apresentadas não podem ser utilizadas como dados oficiais da instituição, sendo apenas para satisfazer o propósito da reportagem, ainda que os relatos aqui apresentados sejam verídicos.

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Crédito das imagens: Felipe Zulian Andreotti e Matheus Cunha

Foto da capa: Pixabay License

Trabalho original publicado em: http://saudementalnaufmt.com.br/

Título original: Quando o estudante fala, temos que parar e ouvir – Uma reportagem multimídia sobre problemas da mente na Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Cuiabá

 

Celeste Okhuruwe Onlimua Mumu

publicado na Ed_09_out/dez.2018 por
“Celeste Okhuruwe Onlimua Mumu” — Excerto de palavras em língua macua que em português significas: Farinha de milho deve reduzir o preço, produz-se localmente

São palavras de clamores de centenas de membros da sociedade civil residente no Município de Nampula que marchou em repúdio ao elevado preço de farinha de milho, um dos produtos da primeira necessidade que actualmente custa 800 meticais, saco de 25 quilogramas e 400 meticais 10kg.

A intolerância, a luta pelo dinheiro e o desprezo pela dignidade humana, atingiu o seu auge e neste momento parece estar acima de todos os valores morais e culturais da nossa sociedade. Os vendedores, os armazenistas, os detentores das indústrias moageiras, seus colaboradores e a classe empresarial no geral, parecem que perderam a noção da vida.

Os idosos, os desfavorecidos, os deficientes, as crianças órfãs e vulneráveis, parecem estar fora da agenda dos endinheirados da nossa província. A mente humana perdeu o controlo, as orações dos religiosos, os cultos tradicionais, perderam o seu poder de santidade. Nessas alturas, uma oração ou reza dos religiosos, virou fonte para ganhar dinheiro. Tudo parece que o diabo tomou conta da nossa sociedade.

Mas no passado, as orações serviam para rogar ao altíssimo para travar a fome, a miséria ou ainda para pedir a chuva pela qual a humanidade celebrava a época de cultivo e de produção de mais comida.

No passado, havia ajuda mútua. Os que eram possuidores de produtos alimentares excedentes, ajudavam os que não tiveram sucesso na época agrícola passada, num ambiente de troca de necessidades ou simplesmente comida pelo trabalho.

No passado, um indivíduo viajando, podia parar pedir água para beber, ser dado além de água, comida para matar fome e continuar com a sua viagem. No passado, era normal furar pneu da sua bicicleta, ser emprestado bomba de ar e cola para resolver o problema e continuar com o seu percurso. Que saudade dos tempos antigos!

Hoje, o dinheiro tomou conta de toda solidariedade, dividiu tribos, regulados e regedorias, famílias, amigos e vizinhos. O dinheiro está nos últimos tempos acima de todas honras e civilizações. O dinheiro, pode alterar um documento orientador em menos de 24 horas.

Já não se respeita quem produz a comida, o que interessa é aliciar o produtor com o dinheiro, forçando-o a vender tudo a preços de banana e no final, o produtor comprar o mesmo produto com valores elevadíssimos.

Tudo isto, nos deixa a lembrar um provérbio popular que diz no mundo, vale mais ser esperto que ser inteligente.

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Crédito da imagem: CC0 Creative Commons

Idioma da reportagem: Português de Moçambique

O que dizer sobre Ilha de Moçambique?

publicado na Ed_09_out/dez.2018 por

A Ilha de Moçambique localiza-se na província de Nampula, norte de Moçambique. Viajar para Ilha de Moçambique, significa conhecer o berço do nome do País Moçambique cuja capital localiza-se no então Lourenço Marques, agora Maputo.

O trajecto para a Ilha de Moçambique, um dos maiores parques turísticos da província de Nampula, é feito via terrestre num percurso de cerca de 200 quilómetros a partir da capital provincial, aéreo até no aeródromo do Lumbo e marítimo a partir de qualquer parte do mundo.

O aspecto arquitectónico das suas casas, faz da Ilha de Moçambique, um verdadeiro Património Mundial da Humanidade, declarado pela UNESCO em 1991.

A Ilha tem cerca de 3 km de comprimento e 300 à 400 m de largura e está orientada no sentido nordeste-sudoeste à entrada da Baía de Mossuril, a uma latitude aproximada de 15º02′ S e longitude de 40º44′ E. A costa oriental da Ilha estabelece com as ilhas irmãs de Goa e de Sena  (também conhecida por Ilha das Cobras) a Baía de Moçambique. Estas ilhas, assim como a costa próxima, são de origem coralina.

Arquitetonicamente, a Ilha está dividida em duas parcelas: a “cidade de pedra e cal” onde vive a elite governamental e a “cidade de macuti”. Esta última onde encontra-se concentrada a maior parte da população. A primeira tem cerca de 400 edifícios, incluindo os principais monumentos, e a segunda, na metade sul da ilha, tem cerca de 1200 casas de construção precária. No entanto, muitas casas de pedra são igualmente cobertas com macuti, uma palha proveniente do coqueiro.

A Ilha de Moçambique está ligada ao continente por uma ponte com cerca de 3 km de comprimento, construída nos anos 1960.

“Onhipiti” tal como os nativos chamam, um nome que parece ser derivado de Mussa Ben-Bique, ou Mussa Bin-Bique, ou ainda Mussa Al-Mbique (Moisés filho de Mbiki) que pouco se sabe sobre a sua história, conta com uma população de 65 mil habitantes que na sua maioria professam a religião muçulmana. Apenas 1/3 são da religião cristã.

A história de Moçambique e alguns sites da internet como por exemplo a Wikipédia, a enciclopédia livre, relata que Quando Vasco da Gama chegou, em 1498, a Ilha de Moçambique tornara-se uma povoação suaíli de árabes e negros com seu xeque, subordinado ao sultão de Zanzibar e continuava a ser frequentada por árabes que prosseguiam o seu comércio de séculos com o Mar Vermelho, a Pérsia, a Índia e as ilhas do Índico.

A ilha de Moçambique ganhou uma importância estratégica como escala de navegação da carreira da Índia que ligava Lisboa a Goa, tornando-se um dos pontos de encontro das embarcações eventualmente desgarradas na viagem de ida, assim como porto de ancoragem das que eventualmente se atrasassem e perdessem a monção. Onde na Ilha é hoje o Palácio dos Capitães-Generais, fizeram os portugueses a Torre de São Gabriel no ano de 1507, data em que ocuparam a Ilha, construindo a pequena fortificação que tinha 15 homens a proteger a feitoria nela instalada.

A Capela de Nossa Senhora do Baluarte, construída em 1522 na extremidade norte da ilha, a mais próxima da Ilha de Goa, é o único exemplar de arquitetura manuelina em Moçambique.

Em 1558 principiou a construção da Fortaleza de São Sebastião – totalmente com pedras que constituíam o balastro dos navios, algumas das quais ainda se vêm na praia próxima – que só terminou em 1620 e é a maior da África Austral. Esta fortaleza era muito importante, porque a Ilha tinha-se tornado o entreposto da permuta de panos e missangas da Índia por ouro, escravos, marfim e pau-preto de África, e era da Ilha que partiam todas as viagens comerciais para Quelimane, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques. Por este motivo, os árabes não queriam perder os privilégios comerciais que tinham adquirido ao longo dos séculos.

Para além dos portugueses outros concorrentes europeus apareceram na corrida pelo controlo das rotas comerciais. Os franceses conseguiram assumir o papel de intermediários do negócio da escravatura para as ilhas do Índico; os ingleses começavam a controlar as rotas de navegação nesta região; e os holandeses tentaram a ocupação da Ilha em 1607-1608 e, não o conseguindo, devastaram-na pelo fogo.

A reconstrução da vila foi difícil, uma vez que o governo colonial não existia senão para cobrar impostos e estava muito mais interessado nas terras de Sofala. Entretanto na Zambézia tinham-se institucionalizado os Prazos da Coroa, e o desenvolvimento do comércio do ouro naquela região leva a que a Ilha perca a sua primazia. Então, os cristãos decidiram fundar na Ilha uma Santa Casa da Misericórdia que funcionaria como Câmara Municipal, para a defesa dos cidadãos e da terra, até 19 de Janeiro de 1763, ano em que a povoação passou a vila. Esta viragem resultou da decisão do governo colonial em separar a colónia africana do Estado da Índia e criar uma Capitania Geral do Estado de Moçambique baseada na Ilha, a 19 de Abril de 1752. A vila voltou a prosperar e a 17 de Novembro de 1818 é elevada a cidade.

A exportação de escravos era o principal comércio da Ilha, tal como do Ibo, mas a Independência do Brasil em 1822, que era o principal destino deste comércio, causou o seu colapso económico. O golpe final foi a passagem da capital da colónia para Lourenço Marques, em 1898. Depois da abertura do porto de Nacala, em 1970, a ilha perdeu o que restava da sua importância estratégica e comercial.

Hoje, a Ilha de Moçambique foi transformada num atrativo de turístico de bandeira da província de Nampula e do país, não só pela sua imponente história, bem assim, pelas diversidades culturais e religiosas de se pode assistir.

Os nativos sobretudo as mulheres, incrementaram o seu valor cultural e turístico ao criar algumas manifestações culturais típicas da região costeira, como por exemplo, o Mussiro, o tufo e a Capulana, para além das suas iguarias que são deliciosas para qualquer visitante.

A ilha de Moçambique, tornou-se nos últimos dois seculos, um dos lugares mais visitados pelos turistas nacionais e estrangeiros, uma vez que oferece um mosaico cultural de gabarito internacional.

Este ano, a cidade de pedra e cal que hoje foi estendida para zona continental como distrito, irá celebrar os 200 anos desde que foi elevado a categoria de cidade em 1818. O governo, os trabalhadores da então camara Municipal, hoje Conselho Municipal, aguardam com enorme expectativa a chegada de vários visitantes oriundos de todos quadrantes do mundo.

Visitar a ilha de Moçambique é conhecer onde mora a história da humanidade.

Museu de arte da Ilha de Mocambique, foto do autor

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Crédito da imagem: Capa, Dança de tufo, identidade cultural da Ilha, foto do autor

Idioma da reportagem: Português de Moçambique

O velho e o aro

publicado na Ed_07_abr/jun.2018 por

O velho arrisca alguns fundamentos do basquete sozinho no parque Max Feffer: movimenta com facilidade a bola por entre as pernas, gira em torno do próprio eixo, avança em direção ao garrafão, salta e arremessa. A bola bate no aro e faz tuim, tuim, tuim, ao quicar no chão da quadra. O velho repete os movimentos: bola por entre as pernas, gira em torno do próprio eixo, avança em direção ao garrafão, salta e arremessa. A bola bate no aro mais uma vez e faz tuim, tuim, tuim, ao quicar no chão. Não há ninguém naquela quadra. Só o velho e o aro.

Naquele dia, estava eu a bisbilhotá-lo a certa distância. Não queria atrapalhá-lo. Fato é que lá estava o velho, tal qual me afirmara dias antes em sua modesta casa, no Jardim Natal, bairro do município de Suzano. De segunda a sexta-feira, o velho treina nas quadras do parque. Já se vão seis anos desde que ele passara a frequentar religiosamente o local. Decido, enfim, interpelá-lo:

— Elias — digo, surpreendendo o velho que para de bater bola. — Acho que deixei de perguntar em nosso último encontro, mas o que você sente quando está na quadra, sozinho, treinando?

—Quando estou aqui os problemas além-quadra desaparecem. Eu me concentro apenas no aqui e agora — respondeu-me. O velho tem fala mansa e parece escolher cuidadosamente cada uma de suas palavras. O boné com aba para trás e o figurino básico — uma camiseta branca surrada, bermuda de tactel cinza e tênis confortáveis — podem até enganar os transeuntes desavisados do parque, mas as rugas que o velho carrega no rosto denunciam a sua idade.

O velho viveu toda a infância no município de Poá, e com 20 e poucos anos mudou-se com a mãe e os sete irmãos para Suzano. Foi, segundo ele, um período em que sentiu a necessidade de entender as coisas, os processos. Os teóricos falavam de coisas que ele não entendia. “Dizia a mim mesmo que eu precisava entender, precisava de uma formação intelectual, não por vaidade, mas por uma necessidade muito íntima.”

De família humilde, o velho não tinha dinheiro para comprar conhecimento, mas encontrou um banquete de livros nos lixos da cidade: de Hegel, Weber a F. Scott Fitzgerald. “Eu encontrei a coleção de Victor Hugo que me encantou com Os Miseráveis.” Ainda muito jovem se animava toda vez que encontrava livros compatíveis com a sua idade: Mark Twain, Alexandre Dumas e John Steinbeck foram alguns dos autores que o acompanharam em sua juventude. “Eu lia de tudo um pouco: de Filosofia a livros teóricos sobre Economia.” Não entendia nada, mas o velho botou na cabeça que um dia entenderia. E assim seguiu como um desbravador ignorante, consumindo o conhecimento que era descartado pelos outros. Sentia-se à vontade assim, afinal de contas, “tinha muito tempo para aprender”.

Tuim, tuim, tuim, fazia a bola.

O velho para de repente e com um leve sorriso no canto da boca, diz: “Eu ainda continuo um ignorante”. Ele me lembrou um homem grego que certa vez falou que sua sabedoria era limitada à própria ignorância. “Só sei que nada sei”, dizia o tal grego. Mas essa é outra história.

 O observador

Há um lago artificial no quintal da casa do velho. Tão logo nos conhecemos, descobri que as plantas e os animais lhe são caros. Disserta habilmente sobre estes e outros assuntos como qualquer douto com formações mil. O velho é apaixonado pela natureza desde a infância, época em que se metia nas matas espalhadas pela região.  Os livros de Biologia o levaram a um profundo conhecimento sobre a fauna e flora. A paixão só aumentou quando, no final dos anos 60 e começo dos anos 70, as emissoras abertas de televisão do país passaram a exibir documentários gringos, muitos deles sobre a vida animal. “Eu assistia a todos eles.”

Um amigo em comum conheceu o velho às voltas no parque há quase seis anos. Ele me contou sobre as consultorias que recebe toda vez que publica na internet fotos de plantas e insetos. “Ele [o velho] conhece muitas espécies e quando vê minhas fotos publicadas me diz o nome científico da planta, o inseto que se alimenta dela, enfim, me dá toda a cadeia por trás daquela florzinha.”

O conhecimento não vem apenas dos livros, mas de incursões práticas que o velho fazia nas matas.  Com mais idade, e já empregado, comprou, em 1980, sua primeira máquina fotográfica: uma câmera reflex japonesa de altíssima qualidade para a época. Aos poucos, adquiriu uma teleobjetiva, filtros e outros acessórios. Quando lhe sobrava tempo, se embrenhava nos brejos pesquisando e fotografando a fauna e flora da região. “Eu não era um fotógrafo profissional. Me considero muito mais um observador, formado pelos documentários da vida.” Infelizmente, teve sua câmera furtada com apenas dois anos de uso. Muitas fotos se perderam com o tempo, mas o velho continua produzindo, mesmo que timidamente. O material, agora digitalizado, ocupa pastas e pastas em um humilde computador no canto da sala. Algumas fotos servem de papel de parede em sua área de trabalho, enquanto outras ilustram os álbuns de seu perfil numa rede social azul.

E a bola continua fazendo tuim, tuim, tuim.

Tempo, o monstro

O velho dedicou 32 anos de sua vida como mecânico de vagões na Rede Ferroviária Federal — estatal brasileira de transporte ferroviário (fundada em 1957 e privatizada em 1998) que cobria boa parte do território nacional. Ele decidiu deixar as ferramentas de lado e se aposentou em 2011. “O serviço tomava muito tempo da minha vida e de repente aquilo não existia mais.” O velho precisou se readaptar a essa nova vida cujo o tempo (de sobra) se transformara num monstro. A liberdade nunca foi tão assustadora.

Neste momento o velho desvia o olhar. Estava imerso nos próprios pensamentos. Depois de um breve momento, dirigindo-se a mim, ele diz:

— Então, aquilo que a gente não é capaz de mensurar, de antever, de pensar, aconteceu. Aconteceu de eu ficar deprimido. E houve uma reação em mim, além das frequentes noites sem dormir: eu passei a intensificar mais o esporte.

O velho passou a correr de segunda a domingo, todas as manhãs. Era como suprir a falta daquela velha rotina com outra coisa. Mas não era uma troca equivalente.

O que o velho não esperava era que seu corpo, em resposta às noites de insônia e a todo o estresse acumulado, cederia. E num fatídico domingo ele não conseguiu se levantar da cama. “Me doía todo o corpo”, lembra. “Comecei a disfarçar pra mulher não perceber, mas a fadiga, a febre, enfim, permaneceram nos outros dias. Comecei a avaliar a situação: ‘o está acontecendo comigo?’, ‘o que houve?’, ‘o que fiz de errado?’.” A resposta, afirma o velho, estava no próprio corpo. “Desde aquela época determinei à mim mesmo que só sairia de casa quando estivesse bem fisicamente.”

O velho tenta um arremesso, mas a bola bate no aro e cai.

Ser humano: um universo em si

O basquete vem dessa época. O velho notou que durante a semana, à tarde, as quadras do parque estavam vazias e decidiu que faria seu condicionamento físico usando os fundamentos do basquete e não mais correndo. Devido a gama de movimentos, “ganharia mais sem se matar fisicamente”. “O condicionamento físico é básico: tem que suar”, afirma, enquanto me mostra alguns dos movimentos que praticava.

Com o tempo, as pessoas foram aparecendo. Nos domingos de manhã o velho divide a quadra com os “camaradas”, como ele mesmo os chama, numa espécie de confraternização. O velho dispara de um lado a outro da quadra, divide os lances com pessoas com menos da metade de sua idade, entra em choque com outras tantas com o dobro de seu tamanho, mas o objetivo é só um: “Eu venho para ver o pessoal e conversar. Naturalmente as pessoas não têm essa consciência da conversa, mas eles estão conversando comigo e é isso que eu curto.” Mesmo ofegante, permanece em quadra, afinal, quando o corpo deixa de responder aos comandos, sobra-lhe a longa experiência nos arremessos.

— Que tipo de pessoa frequenta a quadra? — pergunto ao velho.

— É difícil rotular. Em função da intensa rotatividade de pessoas que passa por aqui, só os conhecemos por aqueles breves momentos em que se expressam, seja por palavras ou atitudes. Não os conhecemos em profundidade, entende? Algumas delas surgem e abrem o coração em função de seus dramas pessoais e eu nunca os tratei com indiferença. Acontece direto e a gente não pode discriminar ou sair fora. A quadra é pública. E aí a gente ouve, dá um retorno. Às vezes não é a resposta que a pessoa quer, porque eu também não abro mão das minhas posições. Cada ser humano é um universo em si.

Elias, no alto de seus 63 anos, é o que chamamos no jornalismo de desvio. Atleta improvável. Tímido sábio. Curioso voraz. Diz o tal conhecido em comum que o velho é fã do concerto de Brandenburgo número 3, do alemão Johann Sebastian Bach. Diz também que Elias disserta sobre a origem da língua portuguesa e vez e outra se arrisca fazendo pães. Um homem de muitas habilidades.

Decido deixá-lo à vontade. Despeço-me de Elias, o velho, e me desculpo por tomar o seu tempo. “Quando a conversa é boa é outra coisa”, disse-me. A poucos metros da quadra, vejo o velho repetindo os mesmos movimentos de antes: bola por entre as pernas, gira em torno do próprio eixo, avança em direção ao garrafão, salta e arremessa. A bola faz um arco perfeito e cai certeira na cesta.

Ao longe escuto o tuim, tuim, tuim

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Crédito das imagens: Autor

A janela do azul infinito

publicado na Ed_07_abr/jun.2018 por

O município de Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, é uma janela que se abre para um azul infinito, calmo, longe de toda a agitação das grandes metrópoles, das cobranças, dos prazos e dos problemas ordinários da vida. Sinto que a paz invadiu ô, amigo, tem como cê dá um espacinho pr’eu tirá uma foto aí onde cê tá, só um instantinho? Gradicido.

Arraial do Cabo é a cidade onde todos parecem se conhecer. Jurema foi com tia Tânia para a Praia do Pontal, que viu Luciana que já estava indo embora. Tia Tânia, então, perguntou sobre Francisco e Luciana disse ah!, na mesma e não sei o quê. Jurema e tia Tânia esperaram Elzo que foi pegar insulina para o sobrinho que estava com a diabetes alta — o garoto passa bem e já voltou para Macaé. Tia Tânia tem ligado para Lecilda, mas o celular só dava ocupado. Aí tentou ligar outra vez e chamou, chamou, mas ninguém atendeu; tentou outra vez e a mesma coisa. Ai falou com Luciara que disse ah!, tia Doca deve ter colocado pra carregar. O homem do doce passa e tia Tânia avisa que é só chamar por Souza que ele pára! E antes de ir a quitanda de Marcinho, passa no depósito e compra um maço de Hollywood Azul pra mim. Se não tiver, passa em Rafael.

Uma cidade onde casais discutem o relacionamento por causa de selfies mal enquadradas na Praia do Forno. “Não é questão de não gostar, nego, é que olha a ambientação. Se você tirar deitado, pega mais cenário, na vertical não” — ao que parece, só um deles tomou nota das aulas do tio Bonner. É a cidade dos primeiros encontros, onde ele diz que é eletricista, e ela pergunta: “Essa água não tá batizada não, né?”.

Arraial do Cabo é a cidade onde curiosos profissionais esbarram com o bigodudo Umberto, um paulista aposentado que vez ou outra veda embarcações próximo ao cais da Praia dos Anjos; com Rodrigo, carpinteiro talentoso que conserta o barco amado em sete dias; com o velho Orizete, vendedor de picolé que labuta sob a lua do meio-dia e não tá fácil não, viu; dos irmãos Deusa e Emanuel que adoram posar para a câmera de estranhos; é a cidade onde um grupo improvável formado por um poeta, um explorador italiano, um índio tamoio, um guarda imperial e uma freira simpática, oferecem um touristórico gratuito a quem interessar possa; é a cidade onde marqueteiros anunciam em barris de lixo que o filho Dele vive — mal sabem eles que Jesus repousa tranquilamente sob as areias da praia; e é a cidade de tia Fátima que se pergunta o que deu errado no bolo de aipim, era pra ser bolo, mas saiu pudim — acho que bati demais, ela concluiria.

Arraial do Cabo é a cidade dos paus de selfie, dos Guaravitas perdidos, e de vidas anônimas que importam.

***

É na Praia dos Anjos que os garotos observam as pipas lá, lá no alto, atentos àquelas que perecerão ao primeiro toque de cerol. Quando menos se espera, partem em disparada aos berros. Sai!, sai!, gritam em coro. É meu, é meu, menó!, diz o garoto com a pipa na mão. Pouco importa quem perde ou ganha: a pipa estará no alto dali a pouco e perecerá como todas as outras nas brancas areias da praia.

A poucos metros dali, há um coqueiro. Ao lado do coqueiro, um garoto magricela. Ele também observava as pipas e a correria dos colegas, mas estava concentrado em outro empreendimento: subir naquele coqueiro e por a baixo um daqueles cocos. Mas antes, uma pausa para o sacolé, pois ninguém é de ferro naquela lua das cinco da tarde. Saciado, o garoto se posiciona em frente ao coqueiro. Davi contra Golias. Ele tenta subir uma!, duas!, três vezes!, mas sem sucesso. Pára no meio do caminho, sem forças nos bracinhos raquíticos. Mas como diria o clássico dos anos 80: retroceder nunca, render-se jamais. Não tão longe dali, quatro garotos vinham ao seu encontro. Numa cena digna de Cães de Aluguel, eles se aproximaram do coqueiro onde o amigo magricela tentava subir. Um deles, comovido com o esforço do magricela, ofereceu ajuda empurrando-o com os braços igualmente raquíticos. Momentos depois, outra pipa cai. Os garotos se dispersam aos berros, sai!, sai!, e deixam o magricela a meio caminho do coco.

O cais da Praia dos Anjos ainda reserva preciosidades como João Pedro, Angela Mar, Ezer Mello, Karla, Cici, Ricardão, Luis Fillipi, Mulato e Talarico; alguns gringos como Luarryme, May Filli, Marlin, Michel Divers, Marjeann, Blue Fish e El Canal; sábios como o Mestre Amado, Albatroz Mestre, Mestre Chiquinho e o Velho Shan; amantes da vida marinha como Lula, Falcão Azul, Mariposinha dos Mares e as Tartarugas; os esquisitos 4 Amigos, Xingrito, Kome Keto, Veneno, Rapalinha, RPM Mar, o crente Vou com Deus e até um tal Uber Black; os numéricos Atlântico I e Atlântico II, Meu Devaneio e Meu Devaneio I, Torpedo III e Torpedo IV.

Ótimos nomes para barcos, vocês hão de concordar.

O caso Monalisa

Arraial do Cabo é a cidade do pescador Onildo que, em março de 1984, passou cinco dias e quatro noites perdido no mar com mais dois tripulantes. O tempo podou certos detalhes da memória do já sexagenário Onildo, que sugeriu: “Passa lá no cais amanhã e eu te mostro a reportagem”. Permito-me, então, narrar essa história com trechos extraídos do texto de um jornalista que cobriu o caso à época e parece ter valorizado habilmente o episódio em sua reportagem. A matéria abre com um parágrafo dramático: “Durante seis dias, açoitados pelos ventos e pelas tempestades, arrastados pela forte corrente marítima, atemorizados pelos tubarões e peixes de grande porte, a 240 milhas da costa brasileira, três pescadores de Arraial do Cabo viram a morte de perto” ‒ se essa não é melhor abertura de matéria que você leu na vida, não sei mais como surpreendê-lo.

Nós saímos da Praia dos Anjos, passamos pela Ilha do Farol e seguimos mar adentro na Costa de Cabo Frio. Era o dia 20 de março. A pescaria começou azarada. Dois dias antes o motor da Monalisa apresentou defeito e tivemos de adiar o trabalho. Pensávamos em retornar ao Arraial no dia seguinte, no começo da tarde. Levamos um punhado de farofa, três litros d’água, as roupas do corpo, e só. Nem bússola tínhamos. Imaginamos que a pescaria seria proveitosa. Possivelmente quando voltávamos, o motor pifou e a forte correnteza nos arrastou para o alto-mar ‒ o jornalista apurou que o barco ficou à deriva após quebrar o eixo de comando do motor ainda na costa de Cabo Frio.

Onildo, o quase náufrago

Durante dois dias fomos levados em direção ao desconhecido. Os ventos fortíssimos ameaçavam virar o barco e, “de quando em quando, as sombras azuladas dos tubarões podiam ser vistas, assim como as barbatanas triangulares riscando o oceano” ‒ se permitiu brevemente ao literário o repórter. O intrépido narrador continua: “Sem provisões e vestidos apenas com roupas leves, com o motor do pequeno barco quebrado, tinham perdido as esperanças de voltar às suas casas, quando foram avistados pela tripulação de um navio de bandeira argentina, que se dirigia a Montevidéu, vindo da África”. Os três pescadores foram socorridos, alimentados e tratados pelos tripulantes daquele navio, enquanto o capitão entrava em contato com o Comando do 5º Distrito Naval, sediado em Rio Grande, no Rio Grande do Sul.

Segundo apurou o jornalista, “em Arraial do Cabo, já está programada uma festa de arromba para recepcionar os três aventureiros”. Perguntei a Onildo se Arraial do Cabo realmente programou um “festa de arromba” e o que mudou na vida dele após o incidente. O homem me encarou com um leve sorriso no rosto e disse: “Se teve uma festa, não fiquei sabendo. Mudança, mudança, só um divórcio mesmo”.

História de pescador, só a do jornalista.

Buraco na praça

Ali na entrada de Arraial, mais precisamente na Praça da Independência, entre as ruas Dom Pedro I e José Pinto de Macedo, o buraco se faz presente. Não um buraco, buraco, mas o buraco-jogo, buraco-carteado. Eram oito homens da primeira vez que os vi ali reunidos; das outras vezes, mais de 20 deles se dividiam entre as quatro mesas de concreto, com quatro assentos cada. Todas ocupadas. Há sempre alguém em volta, observando, palpitando, brincando com os jogadores à mesa. Homens comuns que matam o tempo embaralhando cartas, revendo os amigos, bebendo cervejas e falando bobagens.

Numa das mesas, Marquinho revelou a Peninha que a irmã do Abacaxi pegou ele no esporro. Puxou ele pr’ajudar a pegar umas sacolas lá atrás. E Nando também foi embora. Vieram buscar ele. Estava pagando muita cerveja pro pessoal. Em outra mesa, um negro alto de camiseta lilas parecia exaltado com o colega que fumava ao lado. “Guarda esse troço no bolso, rapá!”. O colega não deu atenção, já que minutos depois estava com outro cigarro na boca. “Acendeu esse caralho de novo?! Vê só”, dizia aos outros da mesa, “acabou de apagar um e acendeu outro; não quero fumar com você não, rapá!”, esbravejou, cada vez mais lilás de raiva. O colega parecia não ligar. Pleno, como da última vez, sacou uma carta do baralho e repetia com certo lirismo: “Bela carteta, bela carteta”.

Voltei à mesa onde estavam Peninha, Marquinho e companhia. Como dignos representantes da turma, foram me apresentando a tantas pessoas quanto as que eu consigo lembrar o nome agora. Por que Abacaxi?, perguntei. Ele não gosta não, me alertaram. Quer ver o Abacaxi puto, chama de Abacaxi. Dizem que ele comeu Abacaxi e passou mal. Ninguém entende nada o que ele fala. Ninguém consegue traduzir. Nem ele sabe o que tá falando, emendou outro cara. Do jeito que o Abacaxi saiu daqui hoje, ia precisar de um tradutor pro menino. Chegou o corninho lá de cima, aquele boizinho, aí começou a falar bêbado também e fodeu tudo, completou Marquinho. E Nando? Ah, Nando é o verdadeiro Corcunda de Notre Dame. Só vendo pra crer. Nando é falador, Nando é artista!

Dias depois, voltei à praça do buraco. Peninha era o guia de sempre. Aquele lá tocou com o Serguei, ó!, disse, enquanto apontava para um homem sentado num dos bancos da praça. Quando, enfim, avistou Nando, me puxou para perto e foi logo nos apresentando. Caolho, manco e com um estranho TOC na língua, como se lambesse algo no ar a cada três segundos (ele só se continha quando estava concentrado no jogo), Nando era um quase Quasimodo. Ele faz as marchinha tudo, rapaz!, comentou Peninha. Não precisou de muito tempo para que eu percebesse isso. Tão logo me cumprimentou, Nando começou a versar. Olha só: botei a minha sogra na rifa, a minha sogra comecei a rifar; enganei o povo, carro importado na rifa comecei a botar; vendi toda a cartela, a rifa começou a esgotar; teve o sorteio, a minha sogra (o carro) começou a sortear; o cara tirou a cartela, a chave do carro comecei a entregar; sabe o que eu disse pro cara?, no teu carro a minha sogra você vai carregar!, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

Nando, o falador

— Escuta, rapaz, quer fazer uma troca comigo?

— T-troca? Que troca?

— É, sabe o quê? Você compra um isopor, leva uma praia daqui pra São Paulo e dá o Rio Tietê pra mim, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

— Acho que você não vai querer o Rio Tietê.

— Eu conheço São Paulo, conheço ali São Paulo. A 25 de Março. Tinha mais chinês que paulista, né?, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

Incansável, Nando fez uma piada sobre caixas d’água e o Palácio do Planalto. Fiquei sem entender, mas fiz questão de acompanhar o hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

— Eu cheguei na banca de jornal e perguntei: “Menina, tem raspadinha?”. A menina: “Tem”. “Quanto custa?”, perguntei de novo. “Um real”, ela me disse. “E da cabeluda?”, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!. Essa foi boa, essa é boa, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

Tendeu, tendeu?, perguntou um homem que estava na roda. Era o Abacaxi. Dirigindo-se a Nando, ele disse nsequê, nsequê, nsequê, pr’eu tomá uma cerveja ali? Nando, contrariado, respondeu: “Rapá, eu tô de saco cheio de te pagá cerveja!”. Volta para Abacaxi que diz nsequê, nsequê, nsequê, vou ficá em pé aí caralho pô!

Abacaxi, o fanho

Abacaxi é um simpático fanho e bêbado. A mistura disso era um idioma difícil até mesmo para os já iniciados compreenderem. Era um quase gringo-cabista‒ de fato, só o entendíamos quando balbuciava as palavras “cerveja” e “caralho”. O “caralho” não sai da boca dele, disseram os colegas ‒ Abacaxi respondeu com outro caralho. Caralhos eram as vírgulas das frases soltas de Abacaxi. O esforço era tão grande para pronunciar as palavras, que não raro pedia-nos tempo para tomar fôlego.

Si si si dinhêro cê vive? Claro que vive! Se o coração parar, você não morre não?! Que dinheiro?, que dinheiro? Não, quem manda é o coração! Pra que dinheiro e o coração parar? I i i nsequê, nsequê, nsequê, di di dinhêro ajuda, di dinhêro ajuda, o dinhêro nu ajuda? Dinheiro ajuda em muita coisa. I i i mu mulhé, ajuda? Mulher?! Pra que eu vou querer mulher? Pra que mulher se vai dar apurrinhação, rapaz?, disse o amigo de Abacaxi que, assim como eu, estava mais perdido quanto cachorro em tiroteio. Abacaxi apanha algumas moedas dele e entra em uma pequena banca de jornais a poucos passos dali. Ele sai com dois latões de cerveja nas mãos e grita com perfeição: “ME-SEGURA-PAPAI!”.

Que Deus nos ajude.

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Crédito das imagens: Autor

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