No abrigo, faziam o teste rápido de HIV. Durante esses quatro anos em que as secretarias estiveram acompanhando o processo de acolhimento, quase não souberam de casos de HIV. Houve, na verdade, dois casos, apesar disso, o que ainda se escuta da população acreana é que a maioria é soropositivo.
No início, entre 2010 e 2011, o que mais impactava os moradores da cidade de Brasileia e Epitaciolândia era o choque cultural, por exemplo, o fato de que haitianos fazem as necessidades fisiológicas na rua é cultural. Xixi, principalmente. Um pouco parecido com o brasileiro em época de carnaval. A forma com que lidam com a questão de gênero também é diferente. Os haitianos tomam banho uns na frente dos outros, homens, mulheres e crianças. Para eles, isso é normal, ninguém fica olhando, todos respeitam. Para nós, isso seria atentado ao pudor. Me contaram que, certa vez, uma moradora de Brasileia viu um haitiano tomando banho nu no meio da praça, ficou escandalizada e queria chamar a polícia, mas não o fez.
No início de 2011, o governo acreano, então, organizou a chegada dos primeiros grupos de modo improvisado. A questão da língua foi a principal dificuldade. As pessoas só conseguiam se comunicar em ‘’portunhol’’ ou por mímica. Como eles viajavam sempre em grupo, geralmente havia um que falava e entendia espanhol; era quem fazia a mediação, conversava com os agentes e funcionários brasileiros e depois passava as informações para os demais. E é assim até hoje, o que dificulta muito o trabalho dos funcionários do abrigo, porque ficam na mão dessa única pessoa que traduz para o grupo.
É comum ver o tradutor ganhando dinheiro, cobrando pela tradução. Ele não trabalha de graça para os demais conterrâneos, nada é de graça entre eles, e eles já sabem disso, o grupo e o tradutor. De acordo com Crispim, a pessoa que está traduzindo não o faz porque é boazinha, mas porque está ganhando algum trocado. Não tem jeito. Hoje isso é mais fácil – muitas palavras, frases e expressões os funcionários já aprenderam, já se familiarizaram, tanto no francês quanto no crioulo. Mas conversar mesmo, descobrir as coisas, isso ainda é impossível. Perguntar, por exemplo, ‘’quem foi que conseguiu o visto para você lá na embaixada?’’, ou ‘’quem foi que te informou, como foi que você conseguiu chegar até aqui?’’. Essas informações, a princípio, não estão disponíveis para os funcionários do abrigo. E essa dificuldade já foi maior, principalmente no começo.
Quando o número de refugiados chegou a 20% da população urbana de Brasileia, os moradores começaram a bater de frente com o governo. Para eles, o apoio do governo com alimentação, saúde e acolhimento incentivava a permanência deles na cidade. A oposição ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual pertencia o governador do Acre naquela época, Jorge Viana, percebeu que aquela situação não seria passageira e começaram a se valer disso para levar a população a bater de frente com o governo. A principal reclamação é de que tinham vindo para roubar os empregos dos brasileiros na cidade, o que ainda escutamos hoje, mas em Brasileia isso era um verdadeiro absurdo porque, na verdade, os haitianos sequer ficam no Acre. Passam por lá rumo ao Sul e ao Sudeste. O que me leva a crer que o preconceito era motivado, mesmo, pelos hábitos e pela cultura haitiana.
Aqui, no Brasil, temos o costume de ceder o lugar para idosos no transporte público, por exemplo; os haitianos não. Nem para pessoas portando crianças de colo, grávidas, nada disso. É uma norma social que não faz parte da cultura deles. Num lugar em que se pede silêncio, eles costumam conversar – e falam em crioulo, alto, o que fez as outras pessoas estranharem. Alguns se incomodam até hoje. A verdade é que, em Brasileia, os haitianos incomodaram muito.
Crédito da imagem: Autora
Capítulo do livro “Abrigados: As políticas brasileiras voltadas à imigração massiva de haitianos e senegaleses pelo Estado do Acre“