Vasculhando os locais, procurando as vítimas

publicado na Ed_04_jul/set.2017 por

Sábado, 28 de março de 2015, duas décadas depois do caso da Escola Base. Há muito tempo eu aguardava por aquele dia. Por volta das 10 horas cheguei na Rua Dom Sebastião do Rego, na Vila Gumercindo, e estacionei o carro bem em frente à antiga casa de Maurício Monteiro Alvarenga e Paula Milhin, casal acusado de molestar sexualmente alguns alunos da Escola Base. Foi fácil identificar a residência, pois eu possuía uma foto dela publicada vinte anos atrás em um dos grandes jornais de São Paulo. Na época o seu muro havia sido todo pichado com ofensas ao casal. Hoje, uma tinta em tom cinza claro cobre o que um dia envergonhou os antigos moradores daquela residência.

A porta era a mesma que em 1994 presenciou atos de vandalismo, mas sua aparência era diferente, pois ela também recebeu uma camada de tinta cinza, mas em um tom um pouco mais escuro, talvez devido ao seu verniz. No canto esquerdo o reboco aparente revelava a instalação do registro de água e luz, provavelmente em uma tentativa de facilitar a leitura pelos fiscais. Dos números que identificavam a casa, só sobrou o “2”, também pintado por aquela tinta cinza, entretanto não havia dúvidas de que aquela era a casa “218”, pois estes três dígitos foram, ironia do destino, pichados em cor preta no muro. Enfim, aquela era a residência dos Alvarenga.

Após tirar uma série de fotos do seu exterior, me dirigi ao interfone no intuito de saber quem morava ali atualmente. Seriam parentes do casal que há duas décadas foi vítima de acusações de pedofilia? Ou seriam outras pessoas? Será que os novos inquilinos teriam conhecimento da caça às bruxas realizada contra os habitantes daquela residência em 1994? Será que Paula ainda habitava o local, uma vez que Maurício, seu ex-marido, se divorciou dela por ocasião do escândalo da Escola Base e se refugiou no interior de São Paulo? Essas eram algumas das perguntas que pululavam na minha mente e para as quais eu pretendia obter repostas naquele dia.

Tentei me comunicar com os moradores daquela casa através do interfone e da campainha, mas não obtive nenhuma resposta. Resolvi então apelar para os vizinhos. Esse era o segundo passo. Eu queria saber se a história continuava viva na região e qual era o saldo deixado por todas aquelas calúnias divulgadas nos principais jornais de São Paulo e na imprensa nacional entre os meses de março e junho de 1994.

A tarefa não foi tão fácil quanto imaginei. Mesmo depois de 21 anos, o caso ainda parece assombrar os vizinhos da família Alvarenga. Entende-se: de certa forma eles também foram vítimas do episódio, tendo sido assediados diariamente por inúmeros jornalistas na época do escândalo. Um dos vizinhos chegou a relatar que permitiu que um repórter entrasse em sua casa para espiar por cima do muro a residência de Paula e Maurício e descobrir se encontrava ali algum indício da presumível tara deles por crianças, mas não encontrou nada.

Passadas duas décadas, o ambiente ainda é de medo, insegurança e desconfiança. Apesar de conversarem comigo, os vizinhos sequer abriam a porta de suas residências. Em uma das casas tive que entrevistar a dona através de um buraco que existia no portão. A maioria das conversas foi feita aos sussurros, como se estivéssemos falando de um assunto proibido.

Todos os entrevistados quiseram saber o motivo pelo qual eu estava ali recordando aquele pesadelo. Percebi que no fundo eles estavam com receio de se envolver novamente naquele caso. Seus olhares como o que me inquiriam: “para que você quer desenterrar isso?”. Prova desse temor foi o fato de não quererem ser identificados, mesmo tendo dito os seus respectivos nomes no início da conversa. Uma pessoa me advertiu:

— Você não falou comigo e nunca nos vimos, ok?

Fiquei impressionado com as reações e opiniões, que eram unânimes, mesmo após o pretenso abuso sexual ter sido desmentido vinte anos atrás: todos os vizinhos manifestaram não acreditar na plena inocência dos Alvarenga. E houve quem tivesse certeza de que o casal era culpado.

— Nunca fui nessa tal escolinha, mas não duvido que realmente tenha acontecido abusos lá.

Foi o que me disse uma senhora, que logo depois me contou ter visto um quartinho “cheio de putaria” na casa de Paula. Na mesma hora lhe perguntei se ela chegou a ver alguma cama redonda, mas ela, com um sorriso no canto da boca, respondeu que não.

Houve ainda quem contasse que, após o episódio, por várias vezes Paula chegou a pedir ajuda para pagar as contas de luz e água. Uma vizinha já com seus 60 anos de idade me disse:

— Eu não ajudava, pois ela era uma mulher jovem que podia trabalhar e ganhar dinheiro para pagar suas próprias contas.

Talvez essa senhora não tivesse ideia de como o caso da Escola Base repercutiu negativamente na imagem de Paula, o que a fez ficar desempregada por um bom tempo.

No geral, ninguém manifestou proximidade com o casal, ou ex-casal, pois Maurício se separou de Paula na época das acusações. Sobre isso, inclusive, houve quem especulasse que ele já estava com uma amante antes do escândalo, e que se aproveitou do caso para assumir esse relacionamento extraconjugal.

Por um lado, me senti frustrado ao ver aquela rejeição, mas por outro não me impressionei tanto, pois já tinha ciência do poder devastador da mídia. Como afirmou o jornalista e pesquisador Felipe Pena, “as feridas abertas pela difamação jamais cicatrizam”. Agora eu sou testemunha das consequências que uma informação mal apurada pode trazer para a vida de uma família.

Não sei se o conceito que os vizinhos tinham do casal antes de 1994 era negativo assim, mas dizer que as acusações publicadas pela imprensa não surtiram nenhum efeito na imagem dos acusados seria, no mínimo, infantil.

Perguntados sobre como tiveram conhecimento das acusações, os vizinhos foram unânimes em responder que havia sido através do noticiário da televisão. Praticamente todas as emissoras repercutiram o caso, mas é sempre bom recordar que foi a Globo quem deu o pontapé inicial denunciando os donos da Escola Base no Jornal Nacional, o noticiário televisivo de maior audiência no país, até hoje.

Por fim, descobri que aquela casa, onde Paula e Maurício moravam, havia sido vendida recentemente e se tornado depósito de materiais de construção — por esse motivo ninguém atendeu a campainha e o interfone naquele sábado. Além disso, ela em breve seria demolida, assim como aconteceu com a escola.

Tendo conseguido conversar com os vizinhos e colhido os relatos e impressões, faltava ainda falar com Paula e Maurício, o que seria bem mais difícil, pois como se pode imaginar, eles não devem ser muito amigos da imprensa, e recordar o que eles passaram é trazer à tona o que jamais quiseram ter vivido. Mesmo assim, resolvi ir atrás de ambos e ainda naquele dia obtive o número do telefone de Paula através de uma amiga dela que morava a duas quadras dali.

Não foi fácil conseguir aquele contato. Após aguardar por mais de 40 minutos, tive que responder um verdadeiro questionário sobre o meu interesse em obter aquele número de celular. Mesmo depois do interrogatório, só recebi o que desejava depois de Paula ser consultada através de uma ligação telefônica feita na minha frente.

Quando telefonei para Paula, ela estava ofegante, aparentando estar no meio de alguma faxina. Explicou-me que poderia conversar comigo pessoalmente, mas não naquela tarde, pois estava para receber visita. No final de semana seguinte seria a Páscoa, que ela celebraria com as duas filhas que não moram ali. A entrevista ficou para duas semanas depois.

Querendo aproveitar o dia e a viagem, fui então direto para onde tudo começou, a Rua Oliveira Peixoto, 209, local onde funcionava a Escola de Educação Infantil Base, localizada a 600 metros do Parque da Aclimação, a dois quilômetros da Avenida Paulista e a cinco da residência do casal Alvarenga. O início da rua é bem calmo. De um lado permanecem as mesmas casas antigas e coloridas que existiam ali na década de 90; do outro, um conjunto de prédios de alto padrão, três deles habitados e um sendo construído dominam uma considerável parte do quarteirão. O casarão onde funcionava a escolinha não existe mais, foi sepultado, junto com quase todas as casas daquele lado da rua. Tudo virou um conjunto de prédios. Mas aquele passado ainda assombra quem vive na região, foi o que pude constatar.

O clima de medo em tocar no assunto também ronda aquele lugar. Muitos diziam ter se mudado há pouco tempo para a rua, ou ressaltavam que não moravam ali na época dos fatos. Era fácil desmentir essas informações, pois não demorava muito para os próprios vizinhos se contradizerem.

Uma senhora chamada Dona Flor disse ser uma pena ela não poder ajudar, pois foi morar ali só depois que seu irmão ficou doente.

— Ele poderia te contar muitas coisas, mas infelizmente ele faleceu no ano passado.

Perguntei se ela frequentava aquela rua na época do escândalo da Escola Base, ou mesmo se tinha visto a notícia pela televisão. A resposta foi negativa. No entanto, a vizinha dela jurou de pé junto que não há quem habite aquela rua a mais tempo que a Dona Flor. Percebi naquela hora que realmente muitos temem tratar do caso abertamente.

Das pessoas que aceitaram falar, nenhuma quis ser identificada e muito menos ter sua imagem estampada em qualquer meio de comunicação. Alguns me disseram ter medo dos “donos da rua”, ou seja, de algumas pessoas que moram na favela próxima dali e que, na época, iniciaram a depredação da Escola Base, pois o caso atraia quem eles menos desejavam, a polícia e a imprensa.

No geral, a opinião dos moradores das redondezas é bem diferente da que coletei dos vizinhos do casal Alvarenga. Aqui, a grande maioria tem certeza da inocência dos proprietários da Escola Base e acusam principalmente a imprensa pelas consequências trágicas do ocorrido.

Entretanto, um relato que me chamou a atenção era dissonante. Uma mulher de 42 anos foi direta:

— Criança não mente!

Para ela, o escândalo prova as acusações, pois se existe 50% de possibilidade de ter ocorrido e 50% de não ter acontecido nada, significa, para a entrevistada, que é 100% certo que os abusos ocorreram. Perguntei se ela morava na rua na época; ela respondeu afirmativamente, porém disse que quando andava de bicicleta na rua de sua casa nunca ia para a região da escola, que ficava a 70 metros. Para a vizinha, os donos da escola eram estranhos e nossa entrevistada declarou que nunca colocaria os filhos dela ali. Então resolvi perguntar como era escolhida a escola para os seus filhos. Ela respondeu que investigava os antecedentes da instituição, dos professores e dos demais funcionários. Aí perguntei qual seria a sua reação caso suspeitasse de que algum dos seus filhos sofreu abuso sexual. A resposta não tardou a sair da sua boca:

— Eu mataria!

Entretanto, a frase que me marcou nessa conversa e me deixou pensativo não foi essa, mas a de que criança não mente. Isso ficou ecoando na minha cabeça. Será verdade isso? Claro que não, todos podem e efetivamente mentem, em qualquer idade.

Mesmo sabendo que estava começando a incomodar os moradores do local, continuei minha busca por depoimentos. Um grupo de umas doze pessoas dançava, dava gargalhada, bebia e inclusive brigava ao som de um forró que tocava em um carro estacionado naquela rua. O clima era de descontração, mas o intruso, no caso, eu, já tinha sido detectado, e pelos olhares que recebi, acredito que não era muito bem aceito ali.

Em uma das casas que passei perguntei para uma mulher se ela morava há muito tempo no local. Ela, já imaginando o motivo da minha indagação, obviamente disse que não. Entretanto, sua mãe, já com seus 50 anos, olhou para mim com certa benevolência e questionou o que eu estava procurando. Tendo explicado direitinho, ela disse que há pouco tempo um grupo de jornalistas tinha aparecido por ali para fazer uma matéria sobre o caso, mas além de coletarem os depoimentos, tentaram tirar fotos delas para estampar no jornal ou revista. É claro que essa atitude deixou os moradores mais ariscos com jornalistas. Apesar disso, por motivos que não sei explicar, houve sintonia entre essa senhora de 50 anos e eu. E querendo me ajudar, ela aceitou conversar comigo, desde que eu não tirasse fotos dela ou mesmo da sua casa.

Segundo disse a moradora, a Escola Base passou por uma grande transformação depois do escândalo divulgado pela imprensa. Após ser depredada por vândalos, o Centro de Educação Infantil se tornou um Buffet; algum tempo depois, foi transformado em uma unidade feminina da Febem; em seguida, em pensão; até virar um terreno abandonado e, por fim, dar lugar a um conjunto de prédios de alto padrão.

Essa mulher não tinha muito mais o que dizer sobre o caso, ou não queria falar, mas se ofereceu para conseguir contatos preciosos e indicar também onde eu poderia encontrar moradores antigos.

Um desses moradores eu encontrei após perguntar no único bar que existe na rua. Ao lado dele há uma porta que dá para o conjunto de casas um tanto prejudicadas pela ação do tempo. Descendo aquele beco pude encontrar outra senhora assistindo televisão com o seu neto. Ao olhar para mim na porta da casa dela, perguntou de forma afável no que poderia me ajudar. Perguntei-lhe sobre a Escola e os donos, se ela os conhecia, se morava ali na época do caso. Ela me contou que conhecia os donos e que eram pessoas boas, incapazes de cometer aquelas barbaridades pelas quais estavam sendo acusados. Ela acreditava cegamente na inocência dos donos da Escola Base. Sendo assim, perguntei porque os moradores não realizaram nenhum ato em defesa dos donos, já que praticamente todos acreditavam na inocência deles. Ela me respondeu que o clima já estava tenso e que fazer algo desse tipo atrairia mais ainda a imprensa e, com ela, a polícia, o que obviamente não agradaria aos “donos da rua” – ela se referia a possíveis criminosos moradores de uma favela próxima.

Após realizar a última tentativa de encontrar mais algum morador antigo, resolvi entrar no carro e dar meia volta, pois a minha presença com gravador já tinha chamado a atenção de um grupo mal-encarado e o recado no olhar deles era para me retirar dali caso não quisesse problemas.

Realmente eu já não tinha mais ninguém para colher depoimento, exceto da Dona Tereza, de 60 anos, que apesar de não ter morado ali na década de 90, também quis falar sobre o caso. Após eu ter me apresentado como estudante de jornalismo, ela, trajando a camisa amarela da seleção brasileira e com um terço no pescoço, me aconselhou:

— Sempre diga a verdade! Não faça parte da Imprensa Marrom que só quer saber de sensacionalismo!

Para ela, os jornalistas foram os maiores culpados pelo caso, pois divulgaram sem apurar.

— Vocês têm muita responsabilidade!

Ela tinha razão. A responsabilidade de um jornalista é enorme e as consequências de uma notícia divulgada e mal apurada podem ser catastróficas, como eu havia presenciado naquele dia. Agora restava saber o que aconteceu com os personagens dessa história. Após visitar a rua da Escola Base e a casa dos Alvarenga, assim como a vizinhança, eu estava querendo ir atrás dos outros envolvidos diretamente no caso.

Eu sabia que não seria fácil e que, inclusive, eu poderia ser mal recebido por vários deles; entretanto, esta era a minha obrigação, ou seja, a principal razão de ser desse livro-reportagem.

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Crédito da imagem: CC0 Public Domain

Capítulo II do livro “Escola Base: Onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira

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