“Quando eu era criança costumava ir à praia do Cabo Branco, onde eu ficava admirando o mar e pensando numa vida melhor. Tinha uma infância pobre, filho de uma dona de casa e de um servente de pedreiro. Certo dia, lá pelos meus 13 anos, conheci um casal de comerciantes ambulantes na praia, eles me convidaram para conhecer Recife e trabalhar junto com eles. Eu achava que seria uma oportunidade de mudar de vida mas fui enganado, ambos se aproveitaram da minha pouca idade e inocência me forçando a trabalhar por comida.” Esse é o relato de Pedro*, que vivenciou situações degradantes durante dois anos em Recife, capital pernambucana.
Hoje ele tem 55 anos e relata com lágrimas nos olhos o que passou: “eu não conhecia ninguém na cidade, não sabia quem procurar nem como voltar pra casa, eles abusavam sexualmente de mim”, enfatiza.
*Nome fictício criado para proteger a identidade do personagem.
Mais de 40 anos depois, infelizmente, tal realidade ainda é recorrente, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 25 milhões de crianças e adultos em todo mundo foram submetidas a trabalho forçado em 2016. Ele é uma forma contemporânea de escravidão, que, segundo a OIT, é o trabalho ou serviço exigido de uma pessoa que pode ocorrer com trabalhadores em suas áreas de origem ou fora dela, através da manipulação e engano que resultam em estado de servidão. Na Paraíba, de acordo com o Ministério Público do Trabalho, quase 480 pessoas foram vítimas de trabalho escravo nos últimos anos.
Segundo o escritório da OIT em Brasília, entre 1995 e 2015 , foram libertados 49.816 pessoas no Brasil que estavam trabalhando em regime de escravidão contemporânea. Para combater tamanha violação humana foram adotadas, a partir da Conferência Internacional do Trabalho em 2014, um Protocolo e uma Recomendação que complementam a Convenção sobre o Trabalho Forçado (n° 29, de 1930), fornecendo orientações específicas sobre medidas efetivas a serem tomadas.
A coordenadora do Núcleo e do Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico e Desaparecimento de Pessoas da Paraíba – respectivamente NETDP/PB e CETDP/PB – Vanessa Araújo, alerta que “muitos dos trabalhadores são coagidos por criminosos com falsas oportunidades de trabalho dentro e fora do Brasil”. O trabalho forçado e a exploração sexual são finalidades do tráfico de pessoas, uma problemática relacionada ao trabalho escravo contemporâneo, que nos últimos sete anos ultrapassou 170 denúncias na Paraíba; os dados são da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Humano.
Vanessa Araújo discursando sobre o tráfico de pessoa na Paraíba.
O Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas (Protocolo de Palermo), possui uma definição oficial do que seria essa violação à vida: a expressão ‘tráfico de seres humanos’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento, recorrendo à ameaça, uso da
força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, à situação de vulnerabilidade, à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”.
Realidade das vítimas
Muitas das vítimas buscam uma melhor qualidade de vida no exterior para superar o sofrimento e flagelo enfrentados no cotidiano. Através das supostas ofertas de trabalho sonham em ajudar os familiares, caindo em conversas tentadoras de aliciadores, que oferecem falsas condições e remunerações vantajosas. Às vezes viajando sem avisar aos seus familiares, as vítimas chegando lá são forçadas a desempenhar funções não combinadas, lhes sendo retirados seus documentos e meios de comunicação. Distantes de seus lares e de pessoas conhecidas, até mesmo sem falar o idioma local, perdem a liberdade de ir e vir, interrompendo os planos de um futuro mais digno.
No cenário local, a exploração sexual de menores na Paraíba é uma das cruéis destinações dadas às vítimas. Grande parte delas vêm dos grupos em vulnerabilidade social: são de comunidades carentes, vivem em situação de rua ou em famílias com situação econômica difícil, realidade vivida por Pedro. Segundo Vanessa, muitas das vítimas oriundas da Paraíba são destes grupos vulneráveis: “o tráfico de pessoas para trabalho escravo se dá também internamente, dentro do próprio estado da Paraíba, segundo as denúncias recebidas e, por isso, é preciso um esforço conjunto entre os órgãos competentes e a sociedade civil local”, enfatiza.
Falta cooperação entre instituições
Mais um grave problema é a falta de cooperação de instituições governamentais na Paraíba em oferecer dados sobre o tema, o que prejudica o levantamento de dados oficiais. A coordenadora Vanessa destaca que oficiou para os órgãos competentes pedidos de informações sobre o tráfico humano, suas demandas, inquéritos, denúncias para a partir disso identificar o perfil de cada vítima, entretanto uma pequena parcela deles respondeu até o momento.
Na esfera transnacional a situação se agrava ainda mais segundo a pesquisadora e presidente da Associação dos Policiais Civis de Carreira da Paraíba(Aspol/PB), Suana de Melo. Segundo ela, através de investigações vêm sendo constatado que muitos dos envolvidos estão onde menos se espera: “já pudemos atestar que existem pessoas em órgãos da justiça que facilitam diversos trâmites para concessão de documentos, por exemplo, para a saída de pessoas traficadas do país”, afirma.
Presidente Suana de Melo na sede da Aspol/PB.
Assim, o problema se intensifica, visto que aqueles que deveriam estar atuando em favor das vítimas, estão cometendo o delito. Suana ressalta que as questões políticas também afetam o combate à exploração de pessoas: “às vezes a ingerência política também pode prejudicar a situação. Nós temos um cenário aqui no estado que há suposto envolvimento de parlamentares, da câmara de vereadores, com tráfico humano. Indivíduos que deveriam trabalhar pelo povo, eleitos pelo povo e infelizmente em situações dessa natureza”, destaca.
Para Suana as estatísticas de denúncias dos últimos anos estão distantes da realidade também devido à complexidade da atuação do tráfico internacional: “durante a minha pesquisa de mestrado na Universidade Federal da Paraíba pude entender melhor a complexidade desse cenário. Até o momento não sabemos as origens, é um sistema muito maior do que se pode imaginar. Não se trata apenas de uma rede, mas de grupos que atuam de forma independente. Isso dificulta a desarticulação, além de existirem muitos empecilhos na cooperação entre órgãos brasileiros e autoridades no exterior a serem ultrapassados”, relata.
Uma centelha de esperança
A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu, em 2013, o dia 30 de julho como o Dia Mundial contra o Tráfico de Seres Humanos, em parceria com os governos estaduais e federal. Em atendimento ao Protocolo de Palermo, em outubro de 2016 foi sancionada a Lei 13.344 de combate ao tráfico de seres humanos no Brasil, a partir dela as vítimas passaram a contar com medidas de atenção e proteção. Também se estabeleceu a criação de políticas públicas interdisciplinares envolvendo profissionais de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça e desenvolvimento rural como medidas para a prevenção de novos casos de tráfico humano
Ainda em 2016 foi formalizada a criação do NETDP e do CETDP na Paraíba, que tem como missão promover ações de prevenção e repressão aos crimes dessa natureza na esfera estadual.
Ação do Comitê, em João Pessoa, no Dia Mundial Contra o Tráfico de Seres Humanos
Com tudo, as políticas públicas de incentivo ao enfrentamento a tal modalidade de crime precisam de reforços, pois grandes operações dependem de mais investimentos: “a fiscalização branda e a falta de pesquisas na área do tráfico resulta num pouco dimensionamento da proporção do tráfico humano na esfera estadual e nacional, por isso a necessidade de investir nas equipes de investigação e em pesquisas sobre o assunto é urgente”, alerta Suana.
Combater o tráfico de pessoas e o trabalho escravo exige engajamento da sociedade
Deste modo, é preciso um esforço conjunto e a mobilização social para combater essa violação humana: “todos os setores da sociedade podem colaborar abrindo espaço para essa discussão em escolas, faculdades, no ambiente de trabalho, nas redes sociais, alertando parentes e amigos para que possamos mudar essa triste realidade”, enfatiza Vanessa. “Estamos sempre realizando ações e palestras, a fim de esclarecer a população e convocá-la para denunciar”, completa.
Ação do CETDP/PB em escola de ensino fundamental na cidade de João Pessoa
Para denunciar o tráfico e desaparecimento de pessoas, o trabalho forçado e a exploração sexual basta ligar para o Disque Direitos Humanos, Disque 100. Também se pode buscar a Procuradoria do Trabalho mais próxima ou ir até os Centros de Referência e de Assistência Social (Cras) e os Centros de Referência Especializada de Assistência Social (Creas) existentes nos 223 municípios do estado; eles são portas de entrada para receber denúncias e acolher as vítimas de tráfico humano, além de fornecer assistência psicossocial e encaminhá-las ao sistema de justiça.
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