Valéria Almeida

publicado na Ed_09_out/dez.2018 por

Até a concretização do nosso encontro, passaram-se três meses desde o primeiro contato que fiz com a jornalista Valéria Almeida. Nesse intervalo de tempo, enviei e-mail, trocamos mensagens no Instagram e por diversas vezes tentamos marcar, alguns dias durante semana e até aos finais de semana, mas sem sucesso. Não por falta de vontade dela, mas porque existiam compromissos além de sua rotina de trabalho como repórter. Sem desistir, passamos a nos comunicar pelo WhatsApp, entramos em um acordo e achamos data e horário favoráveis para ambas.  Foi em uma típica tarde cinza na cidade de São Paulo. Não fazia frio, mas o céu estava encoberto por densas nuvens que tornava o dia nublado. Saí às quatro horas do trabalho e peguei um ônibus próximo ao Cemitério da Consolação. Viajei durante uma hora, passando por vinte pontos até desembarcar. Sim, eu contei. Caminhei mais alguns minutos e cheguei ao local sugerido por Valéria, um espaço terapêutico bastante acolhedor localizado na região do Brooklin Novo, Zona Sul da cidade. Era uma casa de dois andares, com a fachada na cor laranja que ofereceria serviços como meditação, terapia individual e familiar. O combinado era nos encontrarmos às seis horas da tarde, mas como cheguei com uma hora de antecedência, aproveitei para deixar fácil o caderno de anotações. E, enquanto o celular estava na tomada terminando de carregar, fui caminhar entre as salas e pela área externa, que por sinal era linda e mesclava luzes, esculturas e vegetação. Retorno para a ante-sala. De cabeça baixa folheio um livro sobre meditação e escuto um “oi” vindo da porta à minha frente; era Valéria de vestido preto com pequenas flores, um sobretudo na cor mostarda e um sapato scarpin preto de salto médio.  Nos abraçamos e ela me deixa escolher o lugar onde iríamos conversar, opto por uma sala ampla com um sofá aconchegante. Acomodadas e devidamente apresentadas, nosso papo inicia.

Repórter do programa matinal “Bem Estar” na Rede Globo e indicada ao Emmy de 2012 com o “Profissão Repórter” na categoria Atualidade, Valéria de Almeida Gomes nasceu na Zona Noroeste, periferia da cidade de Santos, em 3 de julho de 1984, e tem um irmão mais novo. A mãe era funcionária pública e durante anos seu pai trabalhou como carregador no Porto de Santos. Aos dez anos de idade ficou órfã — sua mãe faleceu antes de completar trinta e quatro anos em decorrência do lúpus, uma doença autoimune. O pai ficou emocionalmente abalado e não não teve estrutura suficiente para cuidar dos dois filhos,  e então Valéria foi morar com os avós maternos. “Foram dez anos aprendendo o que era amor, perdão e generosidade com a minha mãe, são quase vinte e cinco anos sem ela e sinto como se tivesse sido ontem”, exclama a jornalista. A avó materna, uma nordestina de Alagoas, incentivava no desempenho escolar. Dizia que, como só havia estudado até o antigo Mobral e ser semianalfabeta, quando a neta chegasse à quinta-série não conseguiria auxiliá-la nas tarefas dos anos seguintes, como em expressões matemáticas que envolvem letras e números.

Aos quinze anos, começou a trabalhar em uma corretora de café na região central de Santos e, apesar de receber cem reais, confessa que conseguia comprar suas coisas e conseguia até emprestar dinheiro. Hoje com a mesma quantia você mal consegue comprar os ingredientes para fazer um almoço para um pequeno grupo de amigos. Rindo, ela diz que perdeu “aquela habilidade financeira”. A vida da jovem Valéria mudou graças ao exemplo positivo de sua tia, a irmã mais nova de sua mãe, pois foi a primeira pessoa da família a cursar uma faculdade. Com três filhos, ela fazia estágio em um orfanato no período da manhã, trabalhava como auxiliar de enfermagem à tarde e à noite assistia aulas na faculdade. Como não tinham computador em casa, na madrugada fazia os trabalhos à mão em folhas de almaço e pela manhã deixava em uma Lan House para que alguém digitasse. Era uma rotina complicada e Valéria achava insano vê-la chorando por não ter todo o dinheiro para pagar a mensalidade. Quando estava terminando o Ensino Médio, essa tia perguntou se ela não faria faculdade e com a sabedoria de uma jovem de dezessete anos, Valéria respondeu: “Eu não tenho dinheiro e não quero ficar desesperada igual à senhora.” As adolescentes do bairro já tinham filhos e os vizinhos diziam que não levaria muito tempo para Valéria compor aquele grupo. Acreditavam que ela seria uma boa mulher de malandro; afinal não tinha mãe, com o pai ausente e criada pela avó e o avô analfabeto doente. Naquela estrutura a educação não tinha muito sentido.

A tia absorveu a resposta e não forçou, foi bem estratégica e disse: “tudo bem que você não quer fazer nada, mas presta o vestibular só para saber como você vai e depois decide, sem compromisso.” Atendendo a sugestão de sua tia, Valéria prestou o vestibular para Jornalismo e deixou para lá. Certo dia recebeu uma ligação de sua incentivadora, que questiona se a sobrinha já havia lido o jornal do dia, porque a lista dos aprovados do vestibular era divulgada lá e o seu nome estava entre os classificados. A felicidade tomou conta da jovem que não imaginou que isso pudesse acontecer. “Quando você cresce em um lugar sem esperanças também perde a capacidade de sonhar e se poupa da dor. Eu coloquei que aquilo não era pra mim porque a única pessoa que eu via que estava na faculdade só chorava, mas depois eu pensei ‘não, eu vou fazer essa faculdade’”, relembra com um largo sorriso. Fez a matrícula e começou a estudar; na época trabalhava como balconista de uma papelaria, mas como no começo do ano a loja ficava cheia, o seu chefe não a deixava sair para a aula porque deveria atender os clientes. Vendo essa situação, pensou não fazer o menor sentido trabalhar para pagar a faculdade e não poder ir às aulas; pediu demissão, confiando que agora como uma universitária seria fácil a tarefa de conseguir um novo trabalho. Foi aí que eu percebeu o que era ser uma moradora de periferia, antes não entendia que este era um mundo diferente dos outros. O bairro onde vivia, Areia Branca, só aparecia no jornal como cenário de algum crime e era esse mesmo bairro que estava em seu currículo. Menciona que foram oito meses procurando emprego e escutando “onde é esse lugar mesmo” ou “ah, é muito longe” e só conseguiu uma vaga depois de modificar o currículo e colocar o endereço de amigos da faculdade. Só que com esse novo CEP não ganhava vale transporte por não ser distante o suficiente.

Nesses oito meses desempregada, Valéria ficou estudando sem pagar mensalidade e foi um processo bem difícil, porque chegou a época de fazer a rematrícula e resolveu pedir dinheiro para o seu pai. Foi quando se deu conta de que ele não acreditava na educação, até porque não teve essa mesma chance – parou de estudar na sétima série para vender na praia as cocadas que a mãe fazia e ajudar no sustento de casa.  Ele virou para a filha e disse: “Você me perguntou se eu queria que você fizesse jornalismo? Você me perguntou se eu queria que você fizesse uma faculdade? Então não me peça dinheiro.” A universitária não esperava por tal resposta, mas não ficou parada. Foi em direção a uma padaria que ficava na esquina da casa da sua avó e chamou o dono: “senhor Ailton, eu sei que o senhor não tem nada a ver com a minha vida, mas é a única pessoa que eu conheço que tem dinheiro.” Faz uma pausa e com as mãos no rosto ri da própria atitude e prossegue: “O senhor pode me emprestar trezentos e cinquenta reais para eu pagar o boleto da minha rematricula? Eu prometo que vou devolver o seu dinheiro.” Ele deve ter ficado assustado com tal pedido, mas pagou o boleto. Para ressarcir o dono da padaria, Valéria passou a fazer faxina na casa de seus professores e relata que foi um processo muito difícil, porque precisava decidir entre pagar o acordo ou a mensalidade. Então estagiou na faculdade para ter bolsa de estudos, conseguiu também um estágio remunerado, mas sem direito a vale transporte e vale refeição e ainda assim não sobrava quantia alguma e a dívida ficava cada vez mais acumulada. “Eu saía do estágio às duas da tarde, caminhava uns bons quilômetros até a faculdade e ficava lá esperando. Várias vezes eu nem comia, porque não tinha como comprar e não dizia em casa para minha avó não se preocupar.” Nesse período ela fazia matérias e entrevistava pessoas de um albergue e acabou contando a própria rotina, até que o diretor de lá ouviu e determinou que, a partir daquele momento Valéria almoçaria com eles todos os dias. Com isso, trabalhava pela manhã no estágio remunerado, passava a tarde e almoçava no albergue, seguia para a faculdade e à noite retornava para casa.

A jornalista discorre que seu último ano na faculdade foi uma confusão, pois a mensalidade do sétimo semestre havia aumentado, precisava pagar o acordo e o salário não dava conta de tudo. Para piorar, a instituição não permitiu que a dívida fosse renegociada.  Apesar de não estar matriculada, os professores deixavam que Valéria participasse das aulas, realizasse as atividades e suas notas seriam lançadas na folha oficial quando os débitos fossem regularizados junto à instituição. Porém, por duas vezes uma professora saiu da sala e não voltou mais. Achando aquilo curioso, uma menina da turma foi saber o que estava acontecendo e essa professora respondeu: “É que a Valéria está na sala e nós estamos proibidos de dar aula com ela lá.” A turma inteira se revoltou e foi reclamar na reitoria, mas a reitora disse que não poderia fazer nada.  Um colega até se ofereceu para pagar a rematrícula e em troca Valéria faria os trabalhos dele, mas a  funcionária da tesouraria informou que o prazo foi encerrado no dia anterior. A instituição decidiu expulsá-la, então Valéria voltou para a classe chorando e se despediu da turma. Ficou trabalhando para juntar dinheiro, pagar o que devia na faculdade e retornou dois anos para concluir o curso. “Lembro do dia em que me formei, pois estavam as minhas duas avós e meu pai. Foi tão prazeroso ter eles ali. Meu pai, que anos antes não via sentido no meu desejo de estudar, ao me ver recebendo o diploma conseguiu entender que a educação é sim um caminho, tanto que depois foi pagar a faculdade de uma prima que queria estudar”, diz, emitindo uma leve risada enquanto descruza as pernas. Conseguir estudar e terminar a faculdade foi uma missão difícil, mas  o sentimento é de quem estava honrando cada um que teve seu sonho caçado, e foi uma conquista compartilhada. Os colegas de faculdade diziam que o seu problema era assistir novela e acreditar em final feliz. Sente-se muito orgulhosa por ter ido contra tudo o que lhe designaram, contra uma história fadada ao fracasso.

Busco saber como era a sua relação  com a televisão, bem como era assisti-la em casa. Valéria começa dizendo que para quem vive na periferia a TV é a conexão com o mundo, mesmo quando determinadas imagens transmitiam o ar de algo intangível, era como uma fuga da realidade. “Quando você tem dinheiro, viaja e conhece o mundo; quando você não tem dinheiro, conhece o mundo através dos olhos dos outros.” Na periferia a generosidade é inigualável e as pessoas costumam dividir até mesmo o que não tem, então é fácil imaginar que a TV também era compartilhada pelos vizinhos, que vez por outra reuniam-se em uma casa para acompanhar um filme ou a partida de futebol. A família Almeida possuía um televisor para assistirem a um tudo, desde o programa matinal que perguntava “quem quer pão? quem quer pão? quem quer pão?”, mesmo não tendo pão em casa, até programas em que a apresentadora pedia que os espectadores imaginassem uma corda e fizessem exercícios. Mas há um destaque entre as memórias de Valéria, sentada sobre uma das pernas, de frente para mim e com a cabeça apoiada na mão direita, ela diz: “tenho lembranças das imagens de guerra, de tiros cortando o céu, das lutas de boxe que meu pai assistia, mas lembro mesmo de ver a Gloria Maria e achar sensacional aquela pessoa que era semelhante a mim.” Valéria ainda cita que a figura daquela jornalista a marcava e que enxergava nela um símbolo de força e liberdade. Também sabia que não seria uma Paquita da Xuxa, mas vendo Gloria Maria sentia que era possível estar na telinha.

Escolheu o Jornalismo por encará-lo como um passaporte ou a grande chance de ver um mundo além daquele em que vivia. Quando assistia aos telejornais imaginava que se conseguisse ser uma jornalista chegaria a diversos lugares, assim como aqueles repórteres. E ainda que ninguém da sua casa tivesse condições de proporcionar tais experiências, essa realização aconteceria através desse trabalho. Não se imaginava trabalhando dentro de um espaço físico, seu desejo era de ser livre e estar em contato com as pessoas. “Como se todo jornalista viajasse e contasse histórias assim, mas eu tinha dezessete anos e pensava assim. Era tão convicta que no vestibular coloquei Jornalismo na primeira e segunda opção. Então não teria jeito, eu estudaria à noite ou de manhã”, declara em em meio a uma gargalhada. Revela que nunca imaginou ser repórter de vídeo, a meta era ser boa comunicadora no rádio, em impresso ou através da fotografia, mas admite o desejo de um dia encontrar e trabalhar com a jornalista Gloria Maria: “quem sabe um dia ainda”, sorri e pisca um dos olhos.

O ingresso no mercado de trabalho veio muito cedo e de maneira informal, mas o início como jornalista aconteceu ainda na faculdade, como estagiária de comunicação na Prefeitura de Santos. A seleção era por mérito, ou seja, um departamento da prefeitura realizava o levantamento dos melhores alunos do terceiro e do quarto ano do curso de jornalismo e Valéria conseguiu o quinto lugar das universidades de Santos. Aos dezenove anos, foi estagiária na Assessoria de Imprensa e depois trabalhou produzindo matérias para Secretaria de Ação Comunitária e Cidadania, além de frequentar os espaços de acolhimento e os abrigos para população em situação de rua. Como em sua casa existiam muitos álbuns e seus pais gostavam de fotos, ela explica que já tinha uma relação com esse tipo de registro, inclusive o medo de esquecer a feição de sua mãe fez com essa relação com fotos fosse mais forte, mas encarava como um meio de trabalho. Até que se descobriu fotógrafa durante sua passagem como estagiária na Secretaria de Comunicação da prefeitura. “Eu pegava a câmera da faculdade, mesmo quando não tinha trabalho e ia fotografar a turma da faculdade. Não ganhava nada, mas levava para os fotógrafos do estágio analisarem e eles falavam ‘essa aqui é de uma fotógrafa em potencial e essa é de uma pessoa que saiu apertando qualquer botão’”, expressou, com um riso tímido. Recorda que essa vivência com os profissionais de fotografia foi de suma importância, porque quando foi expulsa da faculdade e pensou que perderia tudo, um professor a convidou para trabalhar na assessoria de imprensa dele, em Itanhaém. Além de fazer faxina e vender roupas e acessórios, trabalhou com este professor por dois anos escrevendo e fotografando, e assim conseguiu organizar sua vida financeira.

Retomou os estudos e conseguiu estágio em uma assessoria, para escrever sobre o cenário gastronômico de São Paulo. Era chocante, porque estava desenvolvendo seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre os assentamentos do Movimento Sem Terra, e a jovem universitária que passava os finais de semana ouvindo a história daquelas pessoas, nos outros dias da semana escrevia sobre festivais da alta gastronomia. A essa altura, Valéria estudava em Santos, morava em São Vicente, trabalhava em uma assessoria em São Paulo e passava os finais de semana em Taubaté, Tremembé e São José dos Campos para mostrar o processo dos assentamentos. “Era um grande conflito escrever sobre trufas e depois comer mandioca com a galera que tentava um pedaço de terra, então decidi que não era o momento de trabalhar ali na assessoria e, como eu gostava da fotografia e usava muito no meu TCC eu entendi que queria ser fotógrafa”. Com toda a inocência de quem não conhecia o mercado, sentou em frente do computador e fez o currículo. Apesar de já ter participado de exposições e coletivas, não tinha visibilidade suficiente na cena de São Paulo; mesmo assim, entre Natal e Ano Novo, enviou currículos para todas as revistas e jornais que havia localizado o contato dos editores. O que ela não sabia era que nesse período as revistas entram em recesso, ou seja, ninguém olharia o currículo, ainda mais  sem um portfólio. Contudo, para a sua sorte, em uma dessas revistas havia uma pessoa trabalhando e que respondeu dizendo: “recebi o currículo e eu não estou precisando de ninguém, mas tenho uma amiga que é editora de fotografia e que precisa de uma estagiária.”  Feliz e surpresa com o retorno, Valéria precisou dizer que aceitava qualquer vaga, menos como estagiária porque havia terminado o curso recentemente. Esse rapaz informou que na verdade a vaga era para ser Assistente de Fotografia na revista Carta Capital; logo não precisava estar estudando. Como prometido, encaminhou o currículo para a editoria da revista que chamou a recém formada para uma entrevista. Outros candidatos foram entrevistados, mas algo lhe dizia que aquela vaga seria sua, e foi. Iniciou na revista em janeiro de 2007, e ao longo de quatro anos trabalhou como assistente de comunicação, fotógrafa e produtora editorial, atuando junto à pesquisa de imagem nas principais agências do mundo.

A vida não cansou de surpreendê-la, e em 2011 recebeu a ligação de uma amiga que havia trabalhado na revista como estagiária. “Val, aqui é a Eli, eu te indiquei para o Caco Barcellos para trabalhar no Profissão Repórter”. Na hora Valéria respondeu que deveria se tratar de um engano, mas a amiga afirmou que estava telefonando para a Valéria certa. A jornalista confidencia que estava receosa por não entender nada de televisão e por todo o conhecimento que o jornalista tinha. Mas era  exatamente isso que ele procurava: jovens jornalistas sem experiência de televisão. Sua ideia era formar um grupo de vídeo repórteres, reunir jornalistas que gostassem de imagem. Uma mulher negra da periferia, jornalista e fotógrafa levaria um olhar diferente para a equipe e poderia contribuir com o programa. Na entrevista, com pouca noção profissional do universo televisivo, mas muito convicta de si, Valéria indagou se precisaria modificar o cabelo, porque se a resposta fosse sim,  preferiria nem começar. Foi contratada e ficou seis anos no programa. Com os olhos bem abertos, exclama: “Eu segui um caminho todo torto para chegar na TV, o meu amor pela imagem me deu uma outra possibilidade. Tudo o que eu sou hoje é um reflexo do que eu fui e continuo sendo.” Se alegra ao pensar que teve o privilégio de trabalhar na TV enquanto seu pai ainda estava vivo, pois ele pôde ver a filha batendo asas e, sempre que possível, reunia os amigos para juntos assistirem o “Profissão Repórter”. Atualmente é repórter do programa “Bem Estar”, e reforça que não tem fixação pela própria imagem na TV, sua paixão é por ouvir as histórias, pela possibilidade de ser uma ponte que conecta outras pessoas e anseia que o seu trabalho faça sentido na própria vida e na vida de outros.

O diálogo chega na pauta de discriminação. A jornalista faz uma longa pausa, respira fundo, e exprime que sofreu e sofre de várias formas, desde alguém chegar e dizer que ela está ocupando determinado espaço porque agora é moda ter gente do cabelo como o seu, como se fosse moda nascer negra e ter o cabelo crespo. Há também aqueles que tentam convencê-la de que não é negra, porque se Valéria teve a capacidade de estar em determinado posto de trabalho, necessariamente corre sangue de gente branca em suas veias. “Carol, eu não consigo contar quantas pessoas tentam me convencer de que eu não sou negra. É minha história gente, vai roubar minha identidade agora? E dizem isso como que se tirassem um peso de mim”, expressa em tom de inconformismo. Todavia, existem situações em que as pessoas são mais agressivas e se manifestam em forma de “A TV não te paga direito? Por que você não alisa esse cabelo?” ou “Você acha que alguém vai te aceitar com esse cabelo depois que sair desse programa?”. Analisando todos esses ataques, ela entendeu que seu cabelo é algo que incomoda bastante as pessoas, elas se ofendem e é enfática ao dizer que não tem um só dia que não lembre que é uma pessoa negra. Sempre que sai de casa ainda existem pessoas que olham torto e acham que podem colocar a mão em seu cabelo. “Ainda tem gente que coloca uma peruca caricata para me homenagear. O racismo vai convivendo com você, às vezes de forma agressiva, mas na maior parte do tempo de forma sutil, então todo dia é um ato de resistência.”

Quanto à presença de mulheres negras à frente de programas na televisão, Valéria acha fantástico viver o momento em que mais de nós está na programação. Antes víamos Gloria Maria, Zileide Silva e Heraldo Pereira, mas eram poucas pessoas. Concorda que atualmente ainda são poucas, pois não estamos representados na proporção e na potência que deveríamos, mesmo existindo bons profissionais para ocupar lugares de apresentador ou repórter na TV. Mas sente que estamos vivendo um momento de transformação e empoderamento coletivo que não terá volta. A tomada de consciência política e social fez com que a população negra não aceite que o retrocesso seja maior do que esses avanços. Fato que a televisão ainda é um grande modelador dos padrões, então você veste, vê, repercute discussões e segue tendências independentemente se você tem dinheiro ou não.  “A imagem da mulher negra na TV inspira, mesmo que quem assiste não tenha o sonho de ser uma jornalista, assim como eu, que quando via Glória Maria, só queria ser forte e livre como aquela mulher”, pontua.

Sua percepção para o futuro é positiva: destaca que tem observado muitos estudantes negros e é impossível negar os avanços. Reitera que é um caminho sem volta, não por vontade das empresas ou consciência dos empresários, mas é porque hoje exigimos que políticas de inclusão sejam adotadas, bem como os mesmos direitos e deste modo passamos a acreditar na melhoria social. Entende que não será fácil, mas se conquistarmos espaço, consequentemente poderemos garantir trabalho, melhores condições de vida e  capacidade de transformar histórias: a nossa e a dos que estão à nossa volta. “Espero muito que a galera que se forma agora acredite que é possível e se tem alguma coisa que eu possa dizer para quem está vindo é: resista e ocupe, aproprie-se, escreva a sua própria história e boa sorte! Seja o que você quiser e queira!”, finaliza.

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Crédito das imagens: No Piauí, em 2012 durante a pior seca dos últimos 30 anos (Foto: Renan Marci)

Capítulo do livro: “Além de Glória Maria: a representatividade da mulher negra no telejornalismo brasileiro atual”

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