O presente artigo investiga o chamado jornalismo declaratório — a prática de produzir matérias jornalísticas com base apenas nas declarações das fontes de informação. São dadas possíveis definições de jornalismo declaratório e citados casos em que esse tipo de jornalismo trouxe prejuízos para a sociedade, como no caso da guerra do Iraque. É proposto um tratamento como especialidade ao jornalismo declaratório, com base em sua importância e no seu uso diário dado pelos veículos de comunicação de massa.
Palavras-chave: Jornalismo declaratório. Ética. Ethos. Comunicação de massa. Fontes de informação.
INTRODUÇÃO
A iniciativa de investigar o chamado jornalismo declaratório — aquele jornalismo baseado nas declarações das fontes de informação — surgiu depois que o jornalista Caco Barcelos fez duras críticas a essa prática nos meios de comunicação durante o programa “Em Pauta” da Globo News, em 2011. Naquele momento, a política brasileira estava vivendo o que acabou sendo rotulado pela imprensa de “faxina” que a presidente Dilma Rousseff estava fazendo nos ministérios – num período de nove meses trocou oito ministros.
A fala de Caco Barcelos foi esta:
Eu tenho uma preocupação com este momento da imprensa brasileira. Parece que muitas das acusações que faz a imprensa estão sendo baseadas em declarações de uma determinada fonte. Evidentemente, boa parte dos que fazem isso de matéria é de jornalista muito criterioso e tem cuidado antes de divulgar a informação, mas há colegas que já divulgam sem sequer checar o outro lado, sem sequer fazer uma apuração mínima antes de saber se há procedência ou não na acusação.
Sabe por que me preocupa isso? Porque eu me lembro de um episódio semelhante: foi na época do impeachment do presidente Collor. Ali foi uma iniciativa da imprensa, mas acho também que foi uma iniciativa que nasceu do jornalismo declaratório. Foi o irmão do presidente que fez aquela denúncia. O que aconteceu com o presidente? Ele foi punido politicamente, sofreu o impeachment. Na Justiça ele não foi punido. Por quê? Porque a justiça é venal? Não sei. Ou será que nós não investigamos tão seriamente como poderíamos e não levamos uma prova mais contundente para a Justiça avaliar, nós da imprensa ou o Ministério Público.
Denúncias feitas ao vivo, na internet, no rádio, na televisão. A maior parte do que se falou está se comprovando verdade, mas no inicio quase sempre se começa com declarações contundentes, que acabam envolvendo muita gente, que acaba sendo punida, mas que não tem nada a ver com a história, e na pressa da denúncia acaba-se cometendo algumas irresponsabilidades (EM PAUTA, 2011).
Logo um questionamento foi inevitável: o que é jornalismo declaratório? Como uma prática utilizada como base para a elaboração de reportagens — tão importantes para a sociedade — poderia ter uma conotação tão negativa?
Neste artigo discute-se a prática do jornalismo declaratório, principalmente na editoria de política dos jornais. Não que ele somente se manifeste na política, mas nela ele parece se desenvolver em sua forma mais perversa. Ficou clara a necessidade de entendê-lo melhor para fazer uma crítica construtiva do jornalismo hoje.
Não se trata de expor uma visão apocalíptica do jornalismo declaratório, mas é fato que sua utilização é deliberada e se alastra entre diferentes meios de comunicação, que “estão conectados uns aos outros, funcionam em cadeia, uns repetindo os outros, uns imitando os outros” (RAMONET, 2010, p. 39).
A importância de uma pesquisa sobre esse tipo de jornalismo reside no fato de ela servir como um guia para identificar se as declarações coletadas diariamente em entrevistas ou notas oficiais foram transcritas sem apuração, se são verdadeiras ou não e se realmente servem à sociedade. O jornalista, que na sua essência tem o dever de se preocupar com a sociedade e com a preservação da ética no jornalismo, precisa ter informações acerca desse assunto quando for reproduzir declarações através dos veículos de comunicação de massa.
Neste estudo não serão abordados dados dos quais se faça necessária uma interpretação jurídica, isto é, os casos em que, por calúnia, injuria ou difamação devem ser verificados de acordo com as leis brasileiras. A análise crítica se restringe às notícias presentes no dia a dia da sociedade, que, de alguma maneira, foram moldadas de acordo com uma determinada declaração — voz captada para transcrição em entrevistas ou fonte oficial escrita.
Como definiu Nelson Traquina (2005, p. 125-175), no jornalismo não é possível se emancipar a ponto de se libertar da práxis social, do aparelho social ao qual se está atrelado. O jornalismo, como função na sociedade, e o jornalista, como funcionário constrangido pelo fator tempo imposto pelos sistemas sócio-organizacionais e socioeconômicos, são uma realidade. Em muitos casos, é criado um ciclo rotineiro que aprisiona o profissional de imprensa e o impede de desenvolver um pensamento crítico. Esse cenário estará presente do início ao fim do objeto em análise.
UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL
Como não existe uma definição clara do que é jornalismo declaratório, e muitas vezes ele é chamado por outros nomes, será necessário recorrer a fontes indiretas para tentar conhecer sua essência. A definição desse tipo de jornalismo não é encontrada nos manuais e livros acadêmicos atuais, sendo livre sua interpretação por diversos meios de comunicação e por profissionais da comunicação. Algumas citações retiradas dos textos de jornalistas e críticos da mídia, publicadas em alguns veículos de comunicação, expressam a opinião acerca do assunto e podem iniciar esse debate.
Não há indícios de que o jornalismo declaratório seja defendido por algum autor como uma especialidade do jornalismo, mas ele é. O uso de aspas e do verbo dicendi é a sua materialização linear. Qualquer jornalista, em qualquer veículo de comunicação, usa essa regra ortográfica para escrever.
Porém, dizer que o jornalismo declaratório só tem um lado, o ruim, é uma visão diminuta de um recurso utilizado diariamente pelos jornalistas. Não se pode agregar um valor pejorativo a algo que serve como regra para toda a sociedade: o jornalismo declaratório é o jornalismo feito com base em declarações, e somente isso. Os reflexos de uma declaração publicada por um veículo de comunicação de massa é um outro campo de estudo: os ecos dessas declarações na sociedade.
A forma de definição que está ligada à nossa ortografia pode ser verificada no que diz o manual da Folha de S. Paulo sobre o uso de verbo em um texto jornalístico:
Verbos declarativos — Use apenas para introduzir ou finalizar falas dos personagens da notícia, não para qualificá-las ou para insinuar qualquer opinião a respeito delas. Evite, assim, verbos como admitir, reconhecer, lembrar, salientar, ressaltar, confessar, a não ser quando usados em sentido estrito. Nenhum deles é sinônimo de dizer. Ao empregá-los de modo inadequado, o jornalista confere caráter positivo ou negativo às declarações que reproduz, mesmo que não tenha a intenção.
Use de preferência os verbos dizer, declarar e afirmar, os mais neutros, quando o objetivo for apenas indicar autoria de uma declaração: O ministro disse que teve um encontro com o deputado, em vez de O ministro confessou que teve um encontro com o deputado – a não ser que o encontro tenha sido criminoso, de fato, e o ministro o tenha admitido em depoimento a uma comissão de sindicância, por exemplo (FOLHA DE S. PAULO, 1996).
Também é possível notar no Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo a preocupação com o uso de declarações, quando no tópico “Esclareça as suas dúvidas: Declarações textuais” afirma que “a reprodução de declarações textuais (entre aspas) é importante e valoriza o texto” e que mostra ao leitor que houve preocupação do repórter em recolher opiniões ou frases originais, expressivas, marcantes, de efeito ou espirituosas (MARTINS, 2012).
No item 4 do mesmo tópico há outra informação acerca de declarações que vale ressaltar:
Nunca deixe de pôr entre aspas as palavras e expressões contundentes, redundantes ou óbvias que, pela estrutura da frase, possam ser atribuídas pelo leitor ao jornal, quando na verdade são do entrevistado: O time entrará em campo amanhã, “a menos que seja novamente burlado em seus direitos”, advertiu o presidente. / Para o economista, o orçamento municipal é simplesmente “irresponsável”. / O assaltante disse estar arrependido do crime, embora saiba que isso “não traz a menina de volta”. / Ministro critica “histéricos” do mercado financeiro (MARTINS, 2012).
Nesses dois exemplos de trechos em manuais de redação de veículos da grande imprensa é possível verificar que há uma preocupação quando o assunto é tratar de declarações dadas por autoridades ou entrevistados, mas esses manuais não conseguem prever se o que é declarado é verdade ou não. É nesse ponto que cabe ao jornalista investigar a procedência dessas declarações, não se “deslumbrar” com a possibilidade de um “furo” jornalístico e ser mais criterioso.
Algumas opiniões e considerações que serão expostas neste trabalho mostram que é muito cômodo somente considerar o jornalismo declaratório uma “praga”, porém entende-lo é essencial quando o jornalista precisa identificar as imprecisões de argumento e manobras políticas. Não é nenhuma novidade que os setores de comunicação dos partidos políticos conheçam muito bem como funciona o sistema industrial da notícia e dos veículos de comunicação de massa, tão necessários para a propagação de propostas e imagem dos candidatos.
Não é uma tarefa fácil e rápida verificar uma determinada declaração de cunho político e considerada oficial.
Dado factual é o uso de fontes no jornalismo. Logo, são as declarações que essas fontes prestam que darão relevância e notoriedade às matérias publicadas diariamente pelos veículos de comunicação de massa. Então, torna-se leviano tratar o jornalismo declaratório como marginal ou algo “maligno”.
A regra da lei das três fontes (LAGE, 2001, p. 18) também fica fragilizada se o fator tempo estiver contra o jornalista, pois como seria possível fazer um “cruzamento” de declarações e extrair o factual delas em tempo hábil?
A busca pela objetividade deve ser contínua, e isso também se aplica ao jornalismo declaratório. Quando se coloca fontes e fatos em discussão para saber qual a sua influência na construção da notícia, fica evidente que é preciso delinear muito bem esse conceito.
Eugênio Bucci (2012) define que o conceito de objetividade é muito precário, e a sua aplicação é mais precária ainda, mas, “se nós entendermos como subjetividade aquilo que se opõe à objetividade, e a objetividade aquilo que nos protege da subjetividade, é alguma coisa”.
Nelson Traquina, citando Gaye Tuchman, identifica que:
Ao apresentar tanto a versão da Fonte ‘A’ como a da Fonte ‘B’, o jornalista pode, então, reivindicar que foi “objetivo” porque apresentou “os dois lados da questão” sem favorecer qualquer indivíduo ou partido político (TRAQUINA apud TUCHMAN, 2005, p. 140).
Ainda no campo da objetividade, Traquina traz à luz uma das ferramentas práticas para a produção jornalística. Ele esclarece que:
Até certo ponto, as dificuldades do jornalista são mitigadas pela fórmula familiar de que a notícia se preocupa com o “quem”, o “quê”, o “quando”, o “onde”, o “porquê” e o “como”, isto é, os chamados “seis servidores” de um lead. Assim, se o jornalista puder afirmar que foi atrás das “coisas mais materiais”, explica Tuchman, ele ou ela podem dizer que foram “objetivos” (TRAQUINA apud TUCHMAN, 2005, p. 141).
Sem essas ferramentas, o jornalista e os veículos de comunicação de massa não conseguiriam produzir as notícias no tempo necessário para a publicação diária, uma prática também constatada nos estudos de Traquina (2005, p. 141), quando explica que, “forçado pela exigência de rapidez, o jornalista precisa de métodos que possam ser aplicados fácil e rapidamente”.
No contexto jornalístico, o fato de uma matéria ter um fundamento declaratório ganha um significado diferente, pois, quando se passa uma declaração para um veículo de comunicação de massa, a informação influenciará, modificará e resultará em uma nova consciência sobre algo, trazendo causas e efeitos para a sociedade.
Ideologias, posicionamentos estratégicos políticos, mudanças de comportamento social, moda, ódio, guerra e comércio de bens de consumo são beneficiados com a prática da declaração publicada com objetivo jornalístico – daí advém o princípio do jornalismo declaratório.
Por esses e por outros exemplos que serão demonstrados a seguir, fica mais claro mostrar por que é importante entender como se dá o jornalismo declaratório.
CRÍTICAS AO JORNALISMO DE DECLARAÇÕES
Qual a opinião dos profissionais acerca do jornalismo declaratório? Quem defende ou critica o uso nos veículos de comunicação? Para responder a esses questionamentos, serão apresentadas a seguir opiniões extraídas de publicações da mídia impressa e digital.
Alberto Di Franco (2008), num artigo publicado no jornal O Globo com o título “O fascínio do jornalismo”, afirma que o noticiário sobre política “não tem informação e está dominado pela fofoca e pelo declaratório. Não tem o menor interesse para os leitores”.
A revalorização da reportagem e o revigoramento do jornalismo analítico devem estar entre as prioridades estratégicas. É preciso seduzir o leitor com matérias que rompam com a monotonia do jornalismo declaratório. Menos Brasil oficial e mais vida. Menos aspas e mais apuração (FRANCO, 2009).
Em “Dilma e o aborto”, publicada em Estado de S. Paulo, Franco (2010) abre o artigo dizendo que os jornalistas ficaram reféns das declarações da candidata a presidente Dilma Rousseff e deixaram de investigar:
O jornalismo de qualidade não se pode restringir às declarações dos políticos, mas à verdade dos fatos. O que interessa não é o que a Dilma diz, mas o que ela fez e, presumivelmente, fará como presidente da República. Vamos ver o que o atual governo, seu partido e sua candidata têm feito em matéria de aborto (FRANCO, 2010).
O caso apontado revela que o que predominou como notícia foram apenas declarações, deixando a discussão sobre uma determinada questão – o aborto – sem um parecer negativo ou favorável: deram um “drible” na imprensa.
Em outra manifestação crítica sobre o jornalismo declaratório, com o título “Jornal, qualidade e rigor”, para O Globo, Franco escreve:
Uma cobertura de qualidade é, antes de mais nada, uma questão de foco. É preciso declarar guerra ao jornalismo declaratório e assumir, efetivamente, a agenda do cidadão. O nosso papel é ouvir as pessoas, conhecer suas queixas, identificar suas carências e cobrar soluções dos governantes. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute o Brasil oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Precisamos fugir do espetáculo e fazer a opção pela informação. Só assim, com equilíbrio e didatismo, conseguiremos separar a notícia do lixo declaratório (FRANCO, 2011).
Nesse artigo, Franco afirma que o jornalismo está vivendo “a era do declaratório”. O texto de Franco teve como ponto inicial a palestra de Gay Talese na Festa Literária Internacional de Paraty, onde o jornalista e escritor norte-americano fez críticas ao modelo atual de jornalismo e a sua crise, em parte devida à internet.
Bernardo Kucinski (2003), num texto intitulado “A mídia de FHC e o fim da razão”, publicado no livro O desmonte da nação – Balanço do governo FHC, define que:
Ao assumir como seu o discurso do governo através de um jornalismo declaratório e oficialista, a mídia tornou-se também instrumento de suas manobras diversionistas, de desinformação e da reiteração de verdades auto proclamadas (KUCINSKI, 2003).
Numa palestra no congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com cobertura do jornal O Globo, o jornalista Marcelo Beraba afirmou que:
Na correria, muitos jornalistas trabalham no automático. Resultado: um festival de matérias baseadas em meras declarações de políticos e autoridades. O uso abusivo de aspas que virou um vício na imprensa. As boas matérias virão na medida em que este “jornalismo declaratório” fica de lado (CASTRO, 2009).
Cláudio Weber Abramo (2006), diretor executivo do portal Transparência Brasil, diz que o jornalismo declaratório é o que caracteriza a maior parte da imprensa: “Fulano disse tal coisa sobre Beltrano. Ouvido pela reportagem, Beltrano afirmou que Fulano tem não sei qual interesse?”.
Zélia Leal Adghirni, jornalista e professora da Universidade de Brasília (UnB), também faz críticas ao jornalismo:
Enquanto a mídia continua pendurada na Esplanada dos Ministérios fazendo jornalismo declaratório de segunda mão, a vida acontece lá fora. Assim, com certeza, a mídia não reflete a opinião pública nem a opinião popular. Porque o jornalista está morto (ADGHIRNI, 2009).
Não artigo “O jornalismo e a arte de transar com rinocerontes”, o jornalista Reinaldo Azevedo (2006) define como a mídia é pautada a partir de uma declaração. Começa pelo jornalismo declaratório. O jornalista publica uma matéria no veículo de comunicação. Depois, a partir dessa declaração, passa a dar voz ao outro lado, que nega a declaração que foi dada anteriormente. Diante disso, o jornalista publica que “Fulano não quis comentar o assunto” ou que “a assessoria disse que não pode informar nada a respeito”. No final, ainda envolve o “jornalismo investigativo”, pois outros jornalistas passam a apurar essas declarações, dando, por fim, um parecer mais preciso para algo que nasceu do jornalismo declaratório. Em muitos casos tudo acaba por tomar tempo dos jornalistas e não servir ao interesse público.
Em outras palavras, quando se faz uso somente das declarações, sem a devida apuração, o jornalismo pode se tornar propaganda. Sousa destaca um dos itens considerados “filtros” por Chomsky e Herman (1988)[1], que levaram o jornalismo americano a se tornar modelo de propaganda:
Confiança nas informações dadas por responsáveis dos diversos órgãos do governo e das empresas dominantes (por um lado, os meios jornalísticos, burocratizados e rotinizados, têm necessidade de fluxos contínuos de informação credível, o que só pode ser assegurado por outros agentes burocratizados de produção de informação (como as agências de relações públicas); por outro lado, torna-se menos dispendioso difundir as notícias oriundas de fontes credíveis e prestigiadas do que notícias sujeitas a confirmação e pesquisa) (SOUSA, 1999, p.13).
O princípio básico da comunicação de massa parte de um emissor – veículo de comunicação – para vários receptores: a massa. Quando o veículo de comunicação de massa adota uma declaração como fato jornalístico, cria uma anomalia: uma fonte declaratória publicada é transmitida através do veículo para vários receptores, logo, influencia na tomada de decisões e desestrutura planejamentos públicos ou servem de ferramenta a interesses nem sempre públicos. Coloca a opinião pública contra ou a favor de uma determinada causa social, privada ou pública.
Nesse caso, os veículos de comunicação de massa servem como megafones, amplificam uma declaração. O veículo não é mais emissor. Ele passa a ser receptor de declaração. Dessa recepção declaratória se cria a emissão, para depois se propagar pela sociedade.
Quando isso é aceito, “a ordem estabelecida passa a ser aceita como medida de todas as coisas a sua mera reprodução na consciência converte-se em verdade” (ADORNO, 2002, p. 87), e o que deveria ser apenas um início torna-se um fim. Isto é, a declaração deveria ser apenas o ponto de partida para a matéria, mas não é o que acontece.
Outro ponto que deve ser entendido é a proliferação das declarações publicadas pelos diversos tipos de veículos existentes. Sabendo que esses veículos estão conectados uns aos outros, funcionam em cadeia, uns repetindo os outros, uns imitando os outros (RAMONET, 2010, p. 39) — como citado no capítulo anterior —, o perigo de uma informação sem apuração rapidamente acaba sendo respaldada. Acrescente-se que, hoje, a ordem de publicação não interfere. Isto é, pode ser uma publicação primária da TV que acaba na web ou a informação que primeiramente foi publicada na web que vai parar no jornal impresso ou na TV.
Ignacio Ramonet (2010, p. 135) constata que hoje “os jornalistas se repetem, se imitam, se copiam, se correspondem e se misturam a ponto de não constituir mais do que um único sistema informacional” e que o “surgimento da internet reforçou ainda mais essa imbricação”.
É válido analisar que o jornalismo declaratório aflora quando os jornalistas e veículos de comunicação não têm informações ou tempo suficientes para uma apuração mais criteriosa. Logo, é mais rápido e prático “fechar” a matéria com fontes oficiais e declarações de personalidades públicas. O risco é publicar inverdades e servir como instrumento ideológico ou de manobra política e privada.
Assim, como foi visto através da opinião de jornalistas e pesquisadores, o jornalismo declaratório é definido por uma série de fatores, mas o que mais evidencia sua forma nociva é dar voz a um agente (ator) que diz ter uma informação importante e relevante sobre outra pessoa, sendo figura de relevância política ou social. Como critério do bom jornalismo, ouve-se o outro lado. Essa prática é conhecida como “a busca pela objetividade”. A segunda voz é colocada contra a primeira, isso gera polêmica e críticas, boas e ruins. Depois de ouvido os dois lados, publica-se essa informação como verdade – para uma das fontes –, mas o que era para ser averiguado e apurado fica em segundo plano. É esse vicioso processo que caracteriza o chamado jornalismo declaratório.
EXEMPLOS DE MAU JORNALISMO
Desde o caso Watergate, muito usado como exemplo nas escolas de jornalismo como sequência jornalística e investigativa que desmascara a corrupção política, assistimos a casos semelhantes. A grande diferença é que, agora, existem estratégias que anulam o fim da história, usando os mesmos recursos que os mass media: o efeito emocional, a diversão e a encenação (GOMES, 2011, p. 291-356).
Voltando um pouco no tempo, no ano de 1994, há o caso que ficou conhecido como “Escola Base”, considerado uma “barriga jornalística” (SCARDOELLI, 2012) – jargão para matéria falsa ou errada. A pergunta é: a falsidade da notícia se deu a partir de uma declaração que foi divulgada e amplamente repercutida pelos veículos de comunicação causando danos que não puderam ser revertidos ou remediados? Então trata-se de mais um caso de jornalismo declaratório.
Um dos exemplos mais contundentes desse tipo de jornalismo está associado à Guerra do Iraque, que aconteceu logo após os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York. O governo norte-americano motivou a imprensa, e consequentemente a população, através de 935 declarações falsas (LEWIS; READING-SMITH, 2008) emitidas pelo presidente George W. Bush e líderes do governo, a maioria sobre a existência de armas de destruição em massa. Hoje, sabe-se que não existia nenhuma arma dessa magnitude.
As declarações foram repercutidas por diversos veículos de comunicação de massa. Porém, estes não conseguiram perceber que estavam sendo usados para persuadir a opinião pública a entrar em uma guerra sem motivo real. Reparar os danos causados pela guerra e pela falta de verificação dos fatos é algo discutido, mas que dificilmente acontecerá.
Além disso, a principal fonte de informação dos Estados Unidos era o iraquiano Rafid Ahmed Alwan al-Janabi, que admitiu ao jornal The Guardian (O ESTADO DE S. PAULO, 2011), sete anos depois da guerra, que havia mentido sobre as armas de destruição em massa, o argumento-chave usado pelos Estados Unidos para invadir o Iraque[2].
No artigo “O dia em que Sílvio Santos fez a imprensa de boba”, publicada na coluna de Ricardo Setti em Veja, o jornalista critica a imprensa por não ter percebido que uma visita do empresário Silvio Santos ao então presidente Lula, no Palácio do Planalto, não era somente para pedir ao presidente apoio para o Teleton – maratona televisiva realizada pelo Sistema Brasileiro de Televisão, de Silvio Santos, com o objetivo de arrecadar recursos para o tratamento e reabilitação de crianças deficientes. Na verdade, a visita tinha a finalidade de interceder em favor do Banco Panamericano, ligado ao Grupo Silvio Santos, que estava com indícios de fraude na contabilidade. A fraude, posteriormente se confirmou, obrigando o grupo a fazer um aporte de mais de R$ 2,5 bilhões no banco.
Sobre a declaração de Silvio Santos “eu não sabia de nada”, Setti disse que:
Os repórteres e editores engoliram, em seco, a explicação boboca sobre o Teleton. Se não fosse tão preguiçoso, habituado ao declaratório e ao oficialiesco, um jornalismo esperto poderia ter percebido ali as fagulhas do rolo do Panamericano (SETTI, 2010).
Um exemplo de declaração que foi rapidamente esclarecida pode ser lida na matéria publicada pela Rede Brasil Atual (2012) com o título “Alckmin nega repasses federais ao Metrô, mas é desmentido”. A declaração do governador Geraldo Alckmin, motivada por um acidente entre trens no dia anterior, foi a seguinte: “Não tem um centavo do PT em trem e metrô de São Paulo”. É importante ressaltar que, quando Alckmin diz “PT”, refere-se ao governo federal. A Rede Brasil Atual conseguiu verificar em tempo hábil – a matéria foi publicada no mesmo dia da declaração –, através de consulta ao Portal da Transparência (www.portaltransparencia.gov.br), que o governo federal havia repassado R$ 15,2 bilhões nos últimos nove anos (2002 a 2011) ao governo estadual.
Independente da legenda política, o que importa para análise aqui é o trato dado à declaração. Ficou claro que era somente uma manobra para que os jornalistas fossem atrás de outras “causas” que explicassem a colisão entre os trens. Caso não existisse uma ferramenta para rápida consulta, seria bem possível que a declaração encontrasse mais adeptos, e ocorreria um deslocamento de enquadramento e foco. Isso abre um outro viés de discussão: o acesso à informação é fundamental não somente para o jornalismo, mas também para que qualquer cidadão possa saber o que é ou não verdade quando o assunto diz respeito a gestão governamental.
Um caso crítico, que aproxima uma assessoria de imprensa do jornalismo declaratório, é o do voo Spanair 5022, de 2008, em que 154 pessoas morreram em decorrência da queda de uma aeronave logo após sua decolagem. No decorrer das investigações, ocorreram diversos problemas, entre eles uma estratégia de comunicação:
Estrategia de comunicación “contaminada” o marcada por las instituciones. La compañía se vio inmersa en una estrategia de comunicación claramente marcada en los primeros momentos por el gobierno central, que utilizó esa nueva fórmula denominada como “periodismo declarativo”, que permite presentarse ante los media, leer un comunicado y no someterse a continuación a ninguna pregunta de los informadores allí presentes (SANTAMARÍA, 2011).
Sobre o mesmo caso, outro apontamento sobre as declarações da Spanair e outro indício de caso a ser estudado:
La falta de eficacia (comunicativa) de estas comparecencias públicas quedó también en entredicho cuando algunos de los convocantes echaron mano de una práctica periodística, que conoció un gran éxito en las elecciones generales de 2008: el denominado periodismo declarativo, cuyo máximo exponente es la celebración de ruedas de prensa, em las que se convoca a una pléyade de informadores para leer simplemente un comunicado y no permitir después La formulación de preguntas. Un “juego” en el que los profesionales de la información asumen su papel de elementos de la “figuración”, tan necesaria para la celebración de un gran evento (SANTAMARÍA, 2010).
Para explicar o acidente, a Spanair montava coletivas de imprensa em que somente os representantes da empresa podiam falar e ninguém da imprensa podia fazer perguntas. Dessa forma, conseguiam “guiar” o que poderia ser publicado nos veículos de comunicação que cobriam o desenrolar do acidente.
É certo que essa prática não é aceita como comum, mas ficar atento quanto à sua manifestação é fundamental para entender que ela não atende aos interesses sociais, mas apenas à corporação, que cria essa “coletiva” para manipular a imprensa através de declarações e press-release.
Através dos poucos exemplos citados neste capítulo, pode-se perceber facilmente os problemas causados à sociedade pelo chamado jornalismo declaratório.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornalismo declaratório pode ser usado como uma arma letal. Quando usado com o objetivo de inserir na sociedade a consciência de ação, como ocorreu no caso da guerra do Iraque, em que o presidente dos Estados Unidos conseguiu que a opinião pública agisse da forma necessária aos interesses governamentais. Ali houve um enquadramento construído que acabou sendo aceito como verdade pela sociedade.
De quem foi a culpa? Do governo, que mentiu para os jornalistas, ou dos jornalistas, que não conseguiram investigar e descobrir que havia mentira nas declarações oficiais?
As respostas só poderiam aparecer com a aproximação e estudo da essência do jornalismo declaratório. Ele realmente está presente e é muito comum encontrá-lo nos veículos de comunicação de massa. Isso é fato. Seja pelo uso dos verbos dicendi, seja pela prática de dar voz ao outro lado como forma de objetividade.
Por mais contraditório que pareça, seu uso é necessário para o jornalismo, principalmente para o jornalismo diário, pois é parte principal na construção da notícia. Além disso, as declarações são essenciais para o jornalismo. Mas elas podem ser utilizadas para criar histórias que sirvam somente para vender publicações, para incutir na sociedade uma consciência de interesse apenas de pequenos grupos ou para beneficiar o interesse público.
A afirmação de que o jornalismo declaratório é somente uma “praga” não é verdade. Na realidade, ele se aproxima mais de uma especialidade do jornalismo. Em todo caso, uma constatação indubitável é a de que o jornalista não sabe o que é jornalismo declaratório. Logo, faz-se necessário trazê-lo para o âmbito da formação profissional como parte da teoria do jornalismo.
REFERÊNCIAS
Livros
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Artigos
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[1] HERMAN, E. e CHOMSKY, N. (1988) – Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books. Referência em SOUSA, Jorge Pedro. As notícias e os seus efeitos. As “teorias” do jornalismo e dos efeitos sociais dos media jornalísticos. Biblioteca On-Line de Ciências da Comunicação, 1999, página 13. Disponível em <http://www.bocc.uff.br/pag/sousa-jorge-pedro-construindo-teoria-da-noticia.pdf>.
[2] Em 2004 o jornalista Bob Wooodward, publicou um livro chamado Plan of attack (no Brasil saiu como título de “Plano de ataque”), em que denuncia os problemas envolvidos na decisão de ir para a guerra do Iraque, a falta de dados reais e as motivações do governo para convencer a opinião pública da necessidade da guerra. Esse é o mesmo jornalista que escreveu sobre o caso Watergate.
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