A democracia e a crise de representação

publicado na Ed_20_jul/set.2021 por

A democracia sempre esteve diante de enormes desafios. Desde o seu surgimento no mundo antigo – primeiro em Atenas, no século V antes de Cristo e quase simultaneamente em Roma –, ela foi se revestindo de enorme complexidade, até se constituir nas grandes nações democráticas contemporâneas, o que trouxe consigo problemas e dificuldades.

Em Atenas, nos séculos V e IV antes de Cristo, é ainda possível perceber uma certa simplicidade nos mecanismos políticos, proporcionados por uma democracia direta. Nela, embora a cidadania ainda estivesse restrita a um pequeno grupo de pessoas – homens adultos, filhos de atenienses, basicamente – e fossem excluídos dela as mulheres, os estrangeiros e os escravos, aos cidadãos eram garantidos os direitos de livre expressão, de voto e até de participação na vida pública. Pelas regras que dirigiam a escolha dos dirigentes da cidade, um cidadão comum tinha alta probabilidade de assumir por um dia, pelo menos, o mais alto cargo do regime – o cargo de epistatés, o “presidente” da boulé, comitê diretivo da Ekklesía, a soberana assembleia dos cidadãos, que era indicado diariamente por sorteio (JONES, 1997, p. 212).

Em Roma, dá-se um processo semelhante. Ali o governo regido pelos cidadãos recebeu o nome de república, que, como Robert Dahl aponta em Sobre a democracia, durou mais do que qualquer democracia moderna, começando a se enfraquecer apenas em 130 antes de Cristo, graças à inquietude civil, à guerra e à corrupção, e acabando por se extinguir com a ditadura de Júlio César (DAHL, 2011, p. 26).

É sempre bom ressaltar que, embora os casos grego e romano sejam os mais emblemáticos quando se fala de governo democrático, Dahl alerta para o equívoco de pressupor que a democracia tenha sido inventada de uma só vez, com uma só forma. Também em Sobre a Democracia, ele afirma: “Embora no caso da democracia a resposta esteja sempre rodeada de muita incerteza, minha leitura do registro da história é essencialmente esta: parte da expansão da democracia (talvez boa parte) pode ser atribuída à difusão de ideias e práticas democráticas, mas só a difusão não explica tudo. Como o fogo, a pintura ou a escrita, a democracia parece ter sido inventada mais de uma vez, em mais de um local. Afinal de contas, se houvesse condições favoráveis para invenção em um momento, num só lugar, não poderiam ocorrer semelhantes condições favoráveis em qualquer outro?” (DAHL, 2011, p. 19).

Seja como for, aquela aparente simplicidade dos mecanismos democráticos de governo dá lugar a uma enorme complexidade quando, em lugar das cidades-Estado do mundo antigo, surgem os países com extensos territórios e vasta população, que caracterizam as nações contemporâneas.

Desse momento em diante, quando se desenvolvem democracias não mais diretas, mas representativas, dada a impossibilidade de assegurar a participação direta na administração pública em razão do elevado número de cidadãos – agora contados aos milhões –, o regime será sempre colocado em questão. E um dos aspectos da democracia mais discutidos se refere justamente à representação política. Entre vários autores, emerge então o debate sobre as democracias contemporâneas e os paradoxos de uma democracia real, contrapondo-se a uma democracia ideal.

Robert Dahl lembra que James Madison, escrevendo no século 18 sobre a Constituição norte-americana, afirmou que há uma distinção entre democracia pura, que constituiria uma pequena sociedade de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente, e república, que seria um governo com um sistema de representação (DAHL, 2011, p. 27).

Nadia Urbinati, professora de teoria política da Columbia University, nos Estados Unidos, no ensaio O que torna a representação democrática? se vale dos trabalhos de Hanna Pitkin e Bernard Manin sobre o tema para dizer: “A representação política é um processo circular (suscetível ao atrito) entre instituições estatais e as práticas sociais. Como tal, a democracia representativa não é nem aristocrática nem um substituto imperfeito para a democracia direta, mas um modo de a democracia recriar constantemente a si mesma e se aprimorar. A soberania popular, entendida como um princípio regulador “como se” guiando a ação e o juízo político dos cidadãos, é um motor central para a democratização da representação” (URBINATI, 2016, p. 192)

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Em Capitalismo, Socialismo e Democracia, o cientista político austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) – um dos mais influentes teóricos da democracia da primeira metade do século 20 – afirma: “A democracia é um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa) e, por isso mesmo, incapaz de ser um fim em si mesmo, sem relação com as decisões que produzirá em determinadas condições históricas. E justamente este deve ser o ponto de partida para qualquer tentativa de definição” (SCHUMPETER, 1961, p.295-6).

Retomando temas examinados por Schumpeter, Robert Dahl, declara em A democracia e seus críticos: “A democracia tem sido percebida como um conjunto distinto de instituições e práticas políticas, como um corpo particular de direitos e uma ordem socioeconômica. É um sistema que garante certos resultados vantajosos ou um processo sem igual para a tomada de decisões coletivas e vinculativas” (DAHL, 2012, p.8). Contrapondo-se a Schumpeter, Dahl parte do conceito de democracia elitista para a pluralista, própria de uma sociedade em grande escala, como as atuais.

Na Antiguidade as decisões eram garantidas a um pequeno grupo de pessoas. Com o decorrer do tempo, a maior parte dos países democráticos adotou o sufrágio universal, permitindo a todos os adultos a participação política.

Com esse desenvolvimento, a democracia se colocou como um regime político que, por um lado, implica uma distribuição de poder e, por outro, envolve a possibilidade de quem dela participa fazer julgamentos sobre os resultados pertinentes a esse tipo de governo. Por isso, essa seria a forma de governo mais adequada para os grandes países, com seus milhões de cidadãos.

Em razão das dimensões dos modernos Estados nacionais, a representatividade política constitui uma das questões mais significativas para se pensar o regime democrático. Uma vez que não é possível, na maior parte dos países, a participação direta em assembleias, como na Atenas antiga, como se dá a participação dos cidadãos no poder político e nas decisões públicas? Quem é exatamente o demos numa grande democracia?

Entretanto, o exercício do voto não garante aos cidadãos os desejos expressos no ato de votar. Escolher governantes não se traduz, necessariamente, na tomada de decisões a favor ou contra qualquer grupo, porque há, em certa medida, autonomia dos entes políticos que são eleitos, e isso pode fazer com que alguns setores da sociedade sejam favorecidos em detrimento de outros.

A esse respeito, Dahl propõe o conceito de igualdade intrínseca: “Devemos considerar o bem de cada ser humano intrinsecamente igual ao de qualquer um. Empregando as palavras da Declaração de Independência, como julgamento moral, insistimos que a vida, a liberdade e a felicidade de uma pessoa não são intrinsecamente superiores ou inferiores às de qualquer outra. Consequentemente devemos tratar todas as pessoas como se possuíssem igual direito à vida, à liberdade, à felicidade e a outros bens e interesses fundamentais” (DAHL, 2011, p. 78).

Outra questão trazida por Dahl se refere ao que seria o bem comum: “Em qualquer país democrático moderno é difícil especificar o ‘bem comum’ com suficiente exatidão para guiar todas as decisões coletivas. Todos os três termos ‘o’, ‘bem’ e ‘comum’ são, no mínimo, problemáticos (…). Uma das alternativas seria abandonar o esforço para descobrir um bem comum ou um conjunto de bens comuns para todas as pessoas em todo o âmbito e em todo o domínio das decisões coletivas e, em vez disso, buscar o bem das pessoas dentro de suas próprias esferas de decisão (DAHL, 2012, p.483).

Voltando à questão da representação, Hanna Pitkin enfatiza:“Esse conceito e as instituições só começaram a surgir na Idade Média, embora tivessem os romanos o verbo reprasentare, que no latim clássico significava simplesmente fazer presente, manifestar ou apresentar pela segunda vez, e se referia quase que exclusivamente a objetos inanimados (…). Os juristas medievais começaram a usar a palavra para personificar coletividade: considerava-se a comunidade como uma pessoa representativa, mas não uma pessoa realmente, apesar de ser assim considerada. Finalmente essas ideias uniram-se na noção de que um porta-voz de uma comunidade, sua corporificação, era o portador de sua condição de pessoa representativa. E os reis passaram a ser considerados, nesse sentido, os representantes de seu reino”(PITKIN, 1983, p.9).

Sobre isso, Maria Rita Loureiro faz um oportuno comentário: “Na problemática discutida por Pitkin, o termo representação é carregado de significados, uma vez que a palavra derivada do latim pode trazer inúmeras ideias que partem de sua origem etimológica, podendo manifestar a representação nas artes, na atuação de um advogado ante seu cliente e tantos outros exemplos. Portanto, para se entender por completo o conceito de representatividade é também necessário considerar as outras formas em que o termo é empregado. Ela, em sua visão formalista, ao falar sobre a representatividade política, inclui tanto a representação por autorização prévia, originária de Hobbes (para quem o representante é aquele que recebeu uma autorização para agir por outro) quanto a representação por responsabilização a posteriori (originária do pensamento liberal), na qual a essência da representação é a accountability ou responsividade do representante.” (LOUREIRO, 2009: p.66).

Accountability, em tradução livre, significa prestação de contas, que para Hanna Pitkin trata da forma de supervisionar ou punir um representante no exercício do poder que a ele foi dado por responsividade. Mede-se dessa forma até que ponto aquele a quem é dado o poder de representação faz valer os desejos daqueles que lhe confiaram tal incumbência. Caso os atores políticos que detêm o poder de representação não sigam as exigências necessárias, uma provável punição é a não reeleição nos pleitos seguintes.

Robert Dahl acrescenta: “As pessoas nos países democráticos têm gosto por outros direitos, liberdades e prerrogativas e essa zona essencial ainda precisa ser mais ampliada. Embora as instituições da poliarquia [conceito cunhado por ele para designar as democracias em grande escala] não garantam que os governos sejam cuidadosamente controlados pelos cidadãos ou que as políticas correspondam invariavelmente a seus desejos, elas reduzem ao extremo a possibilidade de que um governo vá insistir por muito tempo em uma política que ofenda profundamente a maioria dos cidadãos (…). Se por um lado o controle dos cidadãos sobre as decisões coletivas é mais anêmico do que o controle robusto que eles exerceriam caso o sonho da democracia direta viesse a se concretizar, por outro lado a capacidade de evitar a reeleição e as políticas dos funcionários eleitos é um meio poderoso ao qual eles recorrem frequentemente para evitar que imponham políticas indesejáveis a muitos” (DAHL, 2012, p.354).

Nadia Urbinati, ao falar das democracias modernas, enfatiza: “A teoria política da representação argumenta que, em um governo que deriva sua legitimidade de eleições livres e regulares, a ativação de uma corrente comunicativa entre a sociedade política e a civil é essencial e constitutiva, não apenas inevitável (…). As múltiplas fontes de informação e as variadas formas de comunicação e influência que os cidadãos ativam através da mídia, movimentos sociais e partidos políticos dão o tom da representação em uma sociedade democrática, ao tornar o social político. Vontade e juízo, a presença física imediata (o direito ao voto) e uma presença idealizada mediada (o direito à livre expressão e à livre associação) estão inextricavelmente entrelaçados em uma sociedade que é ela mesma uma confutação viva do dualismo entre a política da presença e a política das ideias, uma vez que toda presença é um artefato do discurso” (URBINATI, 2016, p. 203).

Esses argumentos conduzem a questões como: o que seria uma democracia ideal e quais as diferenças entre a democracia real e a que vivemos no século XXI? Se se toma como modelo a democracia direta antiga, percebe-se que hoje há um controle menor do cidadão em relação ao que é decidido numa cidade, estado ou país. Embora haja eleições livres, sufrágio em massa, direito de concorrer a cargos eletivos, liberdade de expressão e outras instituições que alicerçam um Estado Nacional, nota-se com grande frequência que há, na verdade, o governo de uma minoria sobre uma maioria de cidadãos. Muitas vezes, os atores que são investidos do poder, que recebem autorização para governar, acabam chocando seus eleitores, dada a diversidade de opiniões, expectativas e visão de mundo entre estes e aqueles.

Especificamente no caso brasileiro, o cientista político Sérgio Abranches destaca: “O Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o ‘presidencialismo imperial’, organiza o Executivo com base em grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade concreta chamarei ‘presidencialismo de coalizão’. É um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão” (ABRANCHES, 1988: p. 22-27).

Em Um prefácio à democracia, Dahl alerta: “Devido à propensão para a passividade política, os pobres e ignorantes se privam de seus direitos políticos. Desde que têm também menos acesso do que os ricos aos recursos organizacionais, financeiros e propagandísticos, e não menos às decisões executivas, qualquer coisa como controle igual sobre a política pública é triplamente vedada aos membros das classes sem propriedade e são excluídas por sua inatividade relativamente maior, pelo acesso relativamente limitado aos recursos e pelo sistema elegantemente montado de controles governamentais que defendeu” (DAHL, 1989, p.82).

Os seres políticos, em si, carregam várias artimanhas para de algum modo se manter no poder. Todavia, a crescente insatisfação social, os desvios de conduta dos funcionários públicos eleitos e tantos outros fatos têm feito com que até os menos politizados e não conhecedores da política e dos conceitos de democracia e representatividade se articulem para fazer valer os seus direitos. Há no Brasil e em várias outras partes do mundo uma grave crise de representação, e essa questão precisa ser discutida neste início de século XXI para que, no que concerne à atividade política, não se repitam erros do passado e as democracias contemporâneas se tornem, cada vez mais, regimes saudáveis e uma alternativa real para o bem-estar das pessoas.

REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalização: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 3, nº 1. Rio de Janeiro: 1988.

DAHL, Robert. A democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 2015.

DAHL, Robert. Sobre democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2011.

DAHL, Robert. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

JONES, PETER V. O mundo de Atenas – Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? Lua Nova, nº 67. Rio de Janeiro: 2006.

LOUREIRO, Maria Rita. Interpretações contemporâneas da representação. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 1. Brasília: 2009.

SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

Crédito da ilustração: Pixabay License

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