Apoio incondicional da comunidade LGBT

publicado na Ed_15_abr/jun.2020 por

A comunidade LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e queer[1]) é o principal foco de artistas do nicho da música Pop, em especial das mulheres devido à persona da diva.

Em entrevista ao canal do YouTube Põe na Roda[2], em 2017, Anitta atribuiu o seu sucesso entre o público gay ao seu “jeito meio assim”, afirmou que tem uma forte identificação com a comunidade e acredita que essa boa relação se dê pela sua história. “Eu acho que o público gay gosta dessa coisa da diva, né? Da dança, do artista que cuida da imagem, do look, da make, do cabelo, da dança, da voz. Eu acho que [para] o público gay, quanto mais itens a pessoa tiver para ele prestar atenção, mais ele curte”[3], declarou.

Entrei em contato com o doutorando em Ciências da Comunicação e pesquisador de cultura pop, redes digitais e estudos de gênero Christian Gonzatti, e na entrevista o profissional avaliou que a imagem da diva “está associada a um vetor de gênero que pune principalmente meninos gays, e que é associado à feminilidade”.

O estudioso explica que quanto mais próximo do feminino e desviante do gênero masculino, dentro da comunidade gay, mais passível de sofrer violência e enfrentar precariedade essa pessoa é. “Isso faz com que essa figura da diva, que coloca o feminino, ainda que contingenciado a outras relações de poder, num contexto de potência e perseverança, mesmo que apenas performática, inspire a força para enfrentar a masculinidade hegemônica”, declarou.

A cantora, que desde o início de sua carreira é adepta de termos, expressões e brincadeiras que foram criados entre o público gay, já participou de grandes eventos voltados à conscientização contra a homofobia. Em 2018 ela comandou, em um trio elétrico na Avenida Paulista, o show mais esperado da Parada do Orgulho LGBTQ+ de São Paulo.

A euforia e frisson causados por Anitta só podem ser compreendidos por quem esteve presente no evento. O público se amontoava em busca de acompanhar o carro e conseguir ouvir de perto ou talvez sentir um pouco da realidade daquela personalidade midiática.

Christian Gonzatti
Doutorando em Ciências da Comunicação e pesquisador de cultura pop, redes digitais e estudos de gênero
(Foto: Instagram)

Quando se é fã (não só de Anitta, mas de qualquer artista), existe um deslumbre inexplicável. Quando compareci à coletiva de imprensa do documentário “Vai Anitta”, lançado pela Netflix no final de 2018, e um dos jornalistas perguntou o motivo dela ter beijado 24 pessoas no clipe de “Não Perco Meu Tempo”, a resposta dela foi a que muitas pessoas não esperavam ouvir no momento, mas é o que todos os presentes já sabiam. Ela simplesmente respirou, avaliou quais palavras usaria naquela situação e soltou: “Se não fosse para chamar atenção, não seria artista”.

É inegável: a comunidade LGBTQ+ compra, investe. Se depender dos gays, os CDs nunca deixarão de existir, mesmo com a pirataria tão fácil na internet e com a chegada dos streamings, que por cerca de R$ 16,90 por mês[4] é possível acessar um catálogo interminável de músicas que é atualizado todos os dias – e arriscaria dizer todos os minutos.

Crise do pink money

Anitta conquistou a simpatia do público gay desde o início de sua carreira, mas é impossível falar do sucesso de um produto/marca sem mencionar o que ela representa, sua mensagem, seu discurso e, naturalmente, suas crises. Foram elas que mudaram a personalidade de Anitta entre 2018 e 2020, e fizeram-na demonstrar uma nova consciência sobre o que é “ter voz em sociedade”.

A funkeira foi “cancelada” pela internet durante as eleições para a presidência do Brasil, quatro meses após a sua arrebatadora apresentação na Parada do Orgulho LGBTQ+ em São Paulo. Por não ter se posicionado e aderido ao movimento #EleNão[5], a maioria de seus fiéis seguidores parou de apoiá-la em seus lançamentos.

O discurso assumidamente homofóbico do então candidato Jair Bolsonaro foi o estopim para o conflito. Muitas pessoas exigiram que a famosa aderisse ao movimento #EleNão, que tomou a classe artística e anônima na internet, para defender o principal grupo de consumo de seu trabalho.

Somente após ser desafiada por Daniela Mercury, Anitta se posicionou contra as ideologias do agora presidente do Brasil. Antes disso, ela havia se limitado a escrever em sua conta no Twitter: “É um direito meu não querer opinar sobre política e eu só estou exercendo esse direito”.

A revista Veja fez uma matéria no dia 23 de janeiro de 2019[6] explicando quanto a falta de pronunciamento impactou a vida e a carreira da funkeira, mesmo que ela tenha confessado anos mais tarde que não entendia de política e por isso preferia ficar calada, mas se fosse para “escolher um lado” não escolheria o de Bolsonaro.

O jornalista Leandro Nomura avaliou na publicação da revista que a Poderosa foi considerada “culpada no banco dos réus” e o seu “crime foi a traição”. O caso foi mais do que a insatisfação com o seu silêncio, foi a discussão do uso de uma prática que envolve a apropriação de elementos da comunidade LGBTQ+ apenas para lucrar, prática essa que foi denominada Pink Money[7].

A discussão levantada por Nomura cita a audiência, os ingressos comprados para os shows e o dinheiro que Anitta ganhou de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais que, no momento que mais precisaram de apoio, não puderam contar com uma declaração espontânea da carioca.

A reportagem apontou que uma marca/produto só passaria credibilidade caso se construísse sobre um discurso e por isso muitos artistas começaram a “levantar bandeiras”, com as do feminismo, diversidade sexual e racismo. O problema é que muitos não conseguem sustentar esse discurso, já que viver aquela realidade é muito diferente de demonstrar apoio nos palcos e nas redes sociais.

O canal “Põe na Roda”, que havia conversado com a cantora dois anos antes, fez um vídeo no dia 20 de setembro de 2018[8] — durante a semana da polêmica envolvendo as eleições — explicando qual era o maior problema em Anitta não se posicionar.

Pedro HMC, líder do canal do YouTube, avaliou que muitas famosas sabiam o risco que a democracia corria quando Jair Bolsonaro se tornou candidato à presidência e não se deixaram afetar pelo medo de ataques virtuais e boicote às suas carreiras que poderia acontecer por parte de apoiadores do candidato. Entre essas estão Pabllo Vittar, Gloria Groove, Daniela Mercury, Pitty e Iza no meio musical.

Crítico ferrenho de comportamentos sociais que demonstram falta de apoio às minorias, o youtuber disparou: “Na hora da festa parece que elas estão do nosso lado, mas na hora de realmente estar do nosso lado, de se posicionar pelos nossos direitos, pela nossa existência, elas preferem ficar em cima do muro”.

O “cancelamento” de Anitta, porém, não funcionou tanto na prática, apenas através de ataques de ódio na web produzido pela própria gaynet (bolha composta por pensamentos e opiniões apenas gays na internet). Naquela mesma semana a morena somava 30,9 milhões de seguidores no Instagram e registrou nas semanas seguintes um crescimento de 0,2% (no período anterior à adesão, era de 0,19%). Atualmente ela possui 47,1 milhões no Instagram[9].

Busquei novamente o pesquisador Christian Gonzatti para dar uma definição recente do que o Pink Money significa e o doutorando apresentou duas perspectivas: a primeira está relacionada ao Black Money[10] e está relacionada ao consumo mercadológico de culturas negras, sendo isso “o processo dentro do qual identidades marginalizadas passam a adentrar uma lógica da sociedade do consumo e se tornam potenciais consumidores”. Diversas marcas começaram a adentrar esse nicho após perceberem o poder de compra e os potenciais investimentos desses grupos no mercado.

A segunda, sendo essa mais crítica, tem relação com a “cooptação dessas identidades para a geração de lucro, visibilidade e apropriação desprovida de crítica e alinhamento com as lutas do movimento”. Um exemplo disso são as empresas que no Mês do Orgulho LGBTQ+ trocam a foto de perfil pela bandeira do arco-íris e usam outros elementos para “marcar uma posição com esse público consumidor”, sem se preocupar com uma mudança estrutural dentro da empresa.

Gonzatti também ressalta que o Pink Money perpassa as indústrias culturais, principalmente na medida em que personagens com apelo LGBTQ+ são construídos para atrair esse público. Isso consequentemente provoca uma cobrança em relação a políticas conservadoras e posicionamentos mais críticos desses artistas.

A problemática que envolve a apropriação de elementos da comunidade queer (tudo o que é fora das normas de orientação sexual e identidade de gênero) por artistas heterossexuais está diretamente ligada ao uso de bandeiras e roupas com as cores do arco-íris, fazer apresentações em eventos voltados ao orgulho dessa comunidade, mas escolher o silêncio na hora do embate político.

“Essa apropriação é vista como vazia. Isso foi muito presente nas polêmicas envolvendo Anitta, mas também vimos isso em situações com outras celebridades nos Estados Unidos. Taylor Swift, por exemplo, teve por muito tempo esse tensionamento por não se posicionar, até que se posicionou. Então, podemos concluir que são feitas fiscalizações das imagens dessas performers, mas que a celebridade também pode negociar e mudar esse posicionamento de apropriação”, declarou Gonzatti.

Um dos momentos mais problemáticos que explicam o Pink Money na prática aconteceu em julho de 2018, com o lançamento da música “Me Solta” de Nego do Borel – um MC da periferia do Rio de Janeiro que derrubou barreiras como homem negro, da comunidade, e garantiu um contrato com a Sony Music Entertainment. A representação do funkeiro para a sociedade sempre foi muito importante, já que ele é um símbolo de superação e chegou a emplacar sucessos nas rádios Pop com o Funk.

O escândalo aconteceu quando o artista lançou o clipe da música, em que se caracteriza como uma mulher de forma completamente satirizada e chega a beijar um homem — o modelo Jonathan Dobal. A personagem foi chamada de Nega da Borelli pelo intérprete e em entrevista ao jornal Extra, na época, Nego explicou que tentou mostrar a “maior diversidade possível”.

A declaração não foi bem aceita. Por ser um homem heterossexual e cisgênero, a atitude do artista foi vista apenas como tentativa falha de ocupar um espaço de discurso que não é seu. Fazendo uso da sátira, naturalmente desrespeitosa dentro desse contexto, para apresentar estereótipos travestis e transexuais visando lucro, Nego foi apontado pelo público LGBTQ+ nos mais diversos níveis de absurdos divulgados na produção audiovisual.

“Pode chegar, pode chegar/ Que a festa vai começar/ Sabe aonde você tá?/ Naquele lugar que tu ouviu falar/ Aonde tu senta, aonde tu sobe/ Aonde tu desce, aonde que tu rebola/ Sabe aonde você tá?/ É no Baile da Gaiola/ Ai, me solta, porra!” (letra de Me Solta, de Nego do Borel, que fala sobre liberdade no ponto de vista do funkeiro).

Nego do Borel foi acusado de praticar o Pink Money. A revista Isto É Dinheiro[11] revela que o público gay movimenta cerca de 30% mais na economia do que homens heterossexuais, já que a sua maioria não possui filhos e grande parte de seus investimentos são direcionados à cultura e ao lazer. Paul Thompson, dono da LGBT Capital – empresa especializada em consultoria corporativa e gestão de ativos atendendo ao setor de consumo LGBT – afirma que “o mercado consumidor gay no Brasil é muito dinâmico e está em constante desenvolvimento”, por isso é tão interessante assim investir nesse mercado.

As incoerências em seu discurso anterior de liberdade e diversidade foram sentidas com o tempo. Nego do Borel, no dia 12 de janeiro de 2019, expôs através de uma interação nas redes sociais o seu desprezo e despreparo para lidar com a comunidade LGBTQ+. Luísa Marilac – transexual conhecida pelo bordão “e teve boatos que eu estava na pior” – foi alvo de um ataque transfóbico do cantor quando, ao comentar em um clique publicado por Nego no Instagram, elogiou: “Cada dia que passa você tá mais gato, homem” e teve como resposta do funkeiro a frase que causou uma onda de revolta: “Você é um homem gato também, parabéns, deve estar cheio de gatas”.

Diminuir a batalha de uma pessoa trans ao usar o sexo biológico como forma de piada é um dos piores ataques à comunidade. A influencer usou seu canal no YouTube para lamentar o episódio: “Você foi hiper transfóbico nas suas palavras. Mas, enfim, a gente aprende com os erros, mano. Repetir no erro é burrice. Quem tem que perdoar é Deus”, declarou. No início de 2020, Nego do Borel perdeu o seu contrato com a Sony Music.

Para Christian Gonzatti, a situação envolvendo o funkeiro poderia ter sido evitada com estudo e consequente quebra de preconceitos. “Quando um artista vai se posicionar não pode ser apenas uma onda do momento com a intenção de surfar na visibilidade que isso pode trazer. Tem que realmente tentar estudar, seja a partir de um assessor, de profissionais de relações públicas, de um media training, para construir um posicionamento que não seja vazio”, explicou.

Gonzatti, que também é consultor de marketing digital, avaliou que os verdadeiros posicionamentos são mostrados com o tempo e caso essa apropriação vazia não mude, como aconteceu com Nego do Borel, a carreira do artista pode ser prejudicada. “É preciso acontecer um posicionamento complexo.”

Sobre uma possível consequência negativa para a carreira de artistas que levantam bandeiras — seja do feminismo, do movimento negro ou da comunidade LGBTQ+ — mas possuem argumentos e posicionamentos vazios, Christian Gonzatti acredita que o momento político atual é importante de ser observado, principalmente por estar muito “convulsionado” em relação aos avanços das minorias na sociedade.

“Está tudo emergindo agora, principalmente com o movimento #VidasNegrasImportam[12] e eu acho que a gente não tem que pensar no prejudicial a partir da lente econômica, mas a gente tem que pensar no quão prejudicial é para uma sociedade se silenciar diante desse contexto, não se posicionar em relação a um mundo menos violento, em um mundo menos desigual e aí eu acho que o prejudicial vem desse silenciamento. Porque a gente está em um momento em que é preciso rever essas estruturas”, diz Christian Gonzatti, deixando clara a importância de se pronunciar.

O pesquisador acredita que todas essas mudanças e conflitos sociais fazem com que a produção de cultura acompanhe o seu momento. “A própria indústria cultural foi se reconfigurando, transformando em consumo muitas dessas pautas, mas acho que é algo que pode emergir daí. Aliás, se pensar em prejudicial só a partir de lentes econômicas, isso nos coloca em um contexto tecnicista, em uma lente que não pensa na sociedade e em suas transformações, e aí se eu vou conseguir prever o que vai emergir daqui para frente, se vai prevalecer como uma lógica de consumo de incidência no conservadorismo, seria um pouco de Sibila Trelawney[13] aqui, seria uma previsão”, concluiu entre risadas.



Nego do Borel no clipe de “Me Solta”
(Foto: Divulgação)

***
[1]Queer pode englobar todas as orientações sexuais e identidades de gênero, sem se especificar em apenas uma delas
[2]Maior canal de conteúdo voltado à comunidade LGBTQ+ do Brasil, com mais de 1 milhão de seguidores em 2020
[3]Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JuVj59-jGxQ&t=124s
[4]Assinatura da versão premium do Spotify no primeiro semestre de 2020
[5]Protestos contra as ideologias de Jair Bolsonaro que tomaram conta das ruas e da internet em 2018
[6]Disponível em: https://veja.abril.com.br/entretenimento/anitta-cancelada-evidencia-o-risco-de-abracar-causas/
[7]Dinheiro rosa em inglês
[8]Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BzoMWEf4Rvg
[9]Perfil acessado em 31 de maio de 2020
[10]Dinheiro negro em inglês
[11]Disponível em:  https://www.istoedinheiro.com.br/noticias/investidores/20130531/poder-pink-money/3262.shtml
[12]Que voltou a motivar manifestações nos Estados Unidos e em outras partes do mundo após a morte de George Floyd, vítima da brutalidade de um policial durante uma abordagem, no dia 25 de maio de 2020
[13]Personagem da saga Harry Potter que faz adivinhação através de bruxaria

Crédito da capa: Autor

Capítulo do livro: Pre-pa-ra: A revolução na forma de criar e divulgar música Pop no Brasil

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