Em 1993, as gêmeas Ruth e Raquel, interpretadas por Glória Pires na novela Mulheres de Areia, de Ivani Ribeiro, exibida pela TV Globo, polarizaram o Brasil. Similares na aparência e distintas no caráter, as irmãs marcaram para sempre a teledramaturgia nacional. Coincidentemente, meses antes da novela estrear, mais precisamente em seis de junho de 1992, nasceram os também gêmeos Igor e Iago Benevides Nogueira, em Cuiabá, Mato Grosso.
Filhos de Inês Benevides Nogueira e Luiz Carlos Nogueira, eles não são famosos como as personagens da novela, mas compartilham do fato de ter o mesmo rosto e as personalidades totalmente distintas. Durante anos, a dicotomia foi evidenciada na vida de ambos, especialmente na de Igor.
As diferenças entre os gêmeos puderam ser notadas já na infância. Aos sete anos, Igor já chamava a atenção pelo seu porte afeminado — totalmente oposto ao comportamento de Iago.
— Nunca passei despercebido. Meus pais e todos ao redor sempre me reprimiram pelos meus trejeitos e atitude feminina. Minhas amizades eram com meninas ou meninos que eu considerava parecidos comigo.
Na escola, o comportamento afeminado também gerava inquietação, apesar de Inês, sua mãe ser professora na mesma instituição em que estudavam.
— Meu irmão jogava futebol e era super popular, enquanto eu era mais calado e convivia com as meninas. No colégio, nunca fomos da mesma roda de amigos, mas se alguém tirasse sarro de mim, ele sempre me defendia. Em casa, ele até podia reprimir meu jeito, mas não deixava ninguém de fora me humilhar.
Mesmo assim, a realidade era complicada para Igor, que se sentia perdido e incerto de sua personalidade, além de se sentir rejeitado por quem era.
— Exigiam que eu fosse igual ao meu irmão em tudo, não somente na aparência.
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Contudo, não era só Iago que defendia Igor. Inês também era uma mãe bastante protetora. Ela não permitia os gêmeos saírem de casa sozinhos ou brincar na casa de colegas por medo de algum mal lhes acontecer. Todavia, quando os garotos estavam prestes a completar nove anos de idade, finalmente tiveram a oportunidade de brincar um dia inteiro na casa de um amigo de Iago. Igor foi junto, mesmo não sendo muito próximo do menino. Ele não imaginava, mas aquela primeira tarde de diversão fora de casa iria mudar sua vida para sempre.
Ao chegarem na casa do colega, Iago e outros amigos decidiram jogar bola na rua. Igor — que não gostava do esporte — decidiu que iria ficar dentro de casa, assistindo televisão até eles retornarem. O colega que morava na casa tinha a mesma idade e estudava na mesma turma dos gêmeos. Enquanto os outros optaram por brincar lá fora, ele também preferiu ficar em casa. Com os dois sozinhos, o mal que Inês tanto temia tornou-se realidade. E, dessa vez, não havia ninguém para protegê-lo.
— Eu estava no sofá, assistindo televisão, quando de repente ele me chamou para ir ao quarto e disse que iria me mostrar o videogame novo dele. Eu fui, mas ao chegar lá, não havia jogo nenhum.
O garoto então passou a insultar Igor.
— Ele começou a falar que sabia que eu gostava de homens, que eu era bicha. Eu tentei ir embora imediatamente, mas ele não deixou.
O menino, que tinha porte atlético e era bem mais forte, segurou Igor pelo braço na tentativa de impedi-lo de sair.
— Enquanto ele me segurava e sussurrava ofensas no meu ouvido, ele se esfregava em mim. De repente, ele pegou meu pulso e me obrigou a massagear seu membro.
Durante todo o ocorrido, Igor tentou se desvencilhar do garoto, mas, aos poucos, foi esmorecendo devido à agressão física e à tortura psicológica.
— Ele falava que, caso alguém chegasse e nos flagrasse juntos, ele iria dizer que fui eu quem havia proposto o ato. Ele também insistia que eu estava gostando daquilo tudo. O que não era verdade.
Igor reflete sobre sua impossibilidade de se defender.
— Eu era apenas uma criança. Aos oito anos, eu estava bem longe de ter certeza sobre a minha sexualidade, independentemente dos meus trejeitos e dos comentários alheios.
Igor não se recorda como terminou o ocorrido. Mas o medo o envolveu quando se deu conta de que teria de encontrar o colega novamente, afinal eles eram da mesma sala. O reencontro não teve agressão física, mas foi carregado de ameaças.
— Na frente dos outros, ele agiu normal, mas quando me viu sozinho, disse que se eu contasse para alguém, ele iria contrapor, afirmando que eu fui para cima dele.
No fim das contas, Igor não compartilhou o abuso com ninguém por temer que a história se espalhasse e por se preocupar com o fato de sua mãe ser professora dele.
— Ela nem desconfiava, mas estava dando aula para o garoto que abusou de seu filho.
As ameaças duraram cerca de um mês. Depois disso, o garoto se afastou de Igor e de seu irmão. O distanciamento, no entanto, não reduziu as marcas de Igor. Ele se mantinha absorto em todo o ocorrido e o sentimento de culpa era constante.
— Com o tempo, eu comecei a achar que eu era o culpado e merecia o que aconteceu por não ser como os outros meninos.
Como consequência, toda vez que era ofendido ou xingado, o jovem sentia raiva de si mesmo.
— Eu não queria ser gay pois, para mim, isso significava merecer ser tratado mal e até sofrer abusos.
Ao seguir para a segunda parte do ensino fundamental, Igor teve de mudar de escola. Felizmente, o rapaz agressor não foi para a mesma instituição. No fim, o livramento demorou, mas aconteceu.
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A dúvida de ser ou não homossexual, só foi sanada na vida de Igor por volta de seus 13 anos de idade, quando se apaixonou pela primeira vez por um rapaz da mesma classe. Todavia, o sentimento não foi compartilhado com ninguém. Se a paixão fora mútua, Igor nunca teve a chance de saber. Afinal, ele estava ciente de sua homossexualidade, mas não estava preparado para partilhar isso com o mundo. A sensação de “ser gay é errado” perdurava em sua consciência, ainda que de modo menos incisivo.
Sem se abrir com ninguém, a culpa acompanhou Igor pelo restante de sua adolescência. A ruptura de tanta pressão interior somente aconteceu ao final do primeiro ano do ensino médio, quando uma habilidade, até então desconhecida, sobressaiu-se. Inglês era a disciplina na qual ele tinha melhor desempenho e da qual mais gostava. Por isso, certa vez se arriscou a dar uma aula experimental de reforço para uma conhecida e se surpreendeu.
— A aula fluiu super bem e então eu não só vi que tinha uma missão a ser realizada, mas decidi também a profissão que teria: professor.
A intenção de Igor ia mais além, pois ele pretendia estudar mais para compartilhar o conhecimento com os estudantes de escolas públicas.
— Eu não queria ser professor de escola particular ou de um curso renomado apenas para ser bem-visto. Esse egocentrismo eu nunca tive.
A descoberta da aptidão de lecionar tornou o fim da adolescência de Igor um pouco mais tranquila. A autoaceitação da sexualidade não aconteceu, mas sua tensão era canalizada nos estudos. Um ano depois, após concluir o ensino médio, ele ingressou na Universidade de Várzea Grande (UNIVAG), como estudante de Letras.
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Do ponto de vista acadêmico, seu ingresso na universidade não poderia ter sido melhor. Igor se interessava pelas disciplinas e a identificação com o curso foi inevitável. Igor observava o sonho de adolescente tornar-se realidade. Por outro lado, havia desafios também, mais precisamente na convivência com os colegas de turma, majoritariamente mais velhos.
— Na faculdade eu entendi melhor o preconceito. A princípio achei que conviver com pessoas mais velhas seria um ponto positivo, mas não foi.
Por ser o mais novo da sala, com apenas 18 anos, involuntariamente Igor era o centro das atenções por conta do seu jeito. A pessoa mais nova da turma, depois de Igor, tinha 27 anos e a mais velha 60, uma disparidade bastante relevante ao longo do curso.
— Aguentar os comentários acerca de mim, inclusive por parte de professores, não era fácil. Mas eu aprendi a aplicar a palavra resiliência não apenas no meu vocabulário, mas também na minha vida. Ninguém iria atrapalhar o meu futuro.
Por conta desse início difícil, Igor era acostumado a ir embora da universidade sozinho. A situação, já melancólica, agravou-se quando ele sofreu a primeira ofensiva homofóbica.
— A parada de transporte em que eu descia era no terminal próximo da minha casa. Porém, numa noite, ao longo do trajeto, eu percebi um grupo — que eu já havia visto no ponto de ônibus da faculdade — me seguindo. De repente, eles estavam arremessando ovos podres em mim e me chamando de ‘bicha’ e ‘viado’.
Naquele momento, além de se importar com a própria sobrevivência, Igor teve de se preocupar com como explicaria aos pais a razão de estar todo sujo.
— Não dava para explicar o real motivo. Aos 18 anos, eu ainda não havia tido com eles uma conversa franca sobre a minha sexualidade.
O jovem optou por omitir o ocorrido e se desfez da jaqueta suja de ovo antes mesmo de entrar em casa.
— Limpei minha calça e lágrimas, e entrei sorrateiramente. Sem pestanejar, já subi para o banho e deixei a calça e a camiseta para lavar.
Igor teve receio de ser questionado pelos pais e não conseguir mentir a respeito.
— Eu sabia a gravidade do que tinha acontecido e não estava preparado para lidar com a situação.
E, de fato, não lidou. A atitude homofóbica não foi compartilhada com a família e Igor imediatamente voltou a sentir aquela culpa que o acompanhou durante toda a adolescência.
Não por menos, a faculdade havia se tornado um estorvo devido ao medo de reencontrar o grupo de agressores. As reflexões e dúvidas sobre voltar ou não a universidade perduraram alguns dias, mas por fim ele optou por continuar o curso.
Quase como um presente divino para amenizar a situação, Igor não mais reencontrou o grupo que o agrediu. Além disso, conseguiu ainda no primeiro ano do curso, um estágio em uma escola pública. Durante essa fase, sua vida começou a tomar outro rumo, pois o estágio o deixou mais confiante, reafirmando sua vocação para lecionar. Sendo assim, ele ganhou confiança não somente profissional, mas também pessoal. No segundo ano de curso, a virada na sua vida aconteceu.
Aos 19 anos, Igor começou a frequentar as baladas LGBTQIA+.
— No começo eu fiquei bem tímido, mas não demorou muito e fiz amizades com muitos gays, travestis, transexuais e outros da comunidade. A sintonia não era pouca. Eu finalmente estava com a minha galera.
Ao conviver cada vez mais com os amigos, Igor foi se sentido mais confiante e corajoso, a ponto de levar alguns amigos para dormir em sua casa. Aquela foi a maneira encontrada de revelar sua sexualidade sem ter de se assumir diretamente.
— Nunca cheguei para os meus pais e disse ‘oi, eu sou gay’. Eles viam minhas amigas trans e isso foi o suficiente para eles compreenderam o universo do qual eu fazia parte. E eu, de uma vez por todas, finalmente entendi que não havia nada de errado em ser gay.
Dono de si, Igor finalizou com êxito a sua graduação em 2015.
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Devido a sua experiência como estagiário, Igor logo passou em um concurso e conseguiu ser professor efetivo na rede pública. Apesar de estar ciente dos desafios do ensino, o jovem estava animado para finalmente atuar como professor titular de uma turma. Dentre as dificuldades para as quais se sentia preparado, estavam a indisciplina de alunos, faltas e notas baixas. Problemas que de fato aconteceram. Entretanto, não foram essas adversidades que tornaram a experiência inicial como professor desanimadora.
Já no primeiro colégio estadual para o qual foi contratado, Igor teve de passar pelo crivo de uma diretora que o julgou baseada em sua aparência jovem e em seu comportamento afeminado.
Ao vê-lo pela primeira vez, a dirigente o informou que não havia mais vagas, pois pensou que ele era um estudante. Ao dizer que era professor e não aluno, Igor teve de convencê-la a confirmar a informação com a assessoria pedagógica, mesmo após mostrar o encaminhamento comprovando seu vínculo empregatício. Depois de provar o fato, ela demonstrou sua falta de confiança no trabalho de Igor.
— Ela me encarou, dizendo que eu não iria durar muito na escola pela minha falta de experiência e de domínio de sala, segundo ela, visíveis nas minhas características físicas.
Ao perceber o preconceito por idade e sexualidade, Igor enfatizou que “ela teria que pagar para ver”.
— Deixei claro que a função dela era somente fazer minha atribuição e acompanhar meu trabalho.
Aos poucos, a diretora teve de dar o braço a torcer. Depois de observar as aulas de Igor por duas semanas, checar caderno de alunos e questioná-los sobre as lições, ela finalmente se certificou da competência do jovem professor.
— Minha eficiência estava comprovada.
Com a aprovação da diretora, Igor temia que o comportamento dos estudantes mudasse, já que agora ela não estaria mais presente em sala de aula para observar tudo. O temor dele felizmente não se concretizou.
— Percebi que meu jeito os deixava curiosos. Logo surgiu o questionamento a respeito da minha sexualidade. Receoso, mas prezando a sinceridade, respondi que era gay.
Sanada a curiosidade, a aula prosseguiu normalmente.
— Nunca tive nenhum problema grave em sala de aula. De todo modo, eu fazia questão de inserir ensinamentos sobre respeito e aceitação no conteúdo estudado.
Aprovado pela diretora e pelos alunos, ainda faltava Igor enfrentar os pais dos alunos.
— Nas primeiras reuniões de pais, eu percebia que eles não me levavam a sério. Passavam na mesa de todos os outros professores para saber a nota dos filhos, menos na minha.
A situação foi relatada à coordenação, contudo nada nunca foi feito a respeito. No decorrer do ano, entretanto, as circunstâncias mudaram.
— De repente os pais começaram a falar comigo. Apesar de alguns ainda possuírem ressalvas pessoais. À estes eu apenas entregava as notas. Não havia conversa. E estava tudo bem, contanto que me respeitassem. A minha missão era ensinar os alunos a serem cidadãos conscientes e livres de intolerância e preconceito.
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Aos 28 anos de idade e após dez anos de carreira como professor em 15 escolas diferentes, Igor aproveitou a pandemia para abrir mão de lecionar e concretizar outra paixão: cozinhar. O jovem inaugurou um restaurante delivery de comida típica brasileira, chamado Igor Haus Bier Food.
— Não desisti de lecionar, apenas quis me arriscar em outro projeto durante a pandemia, afinal, dar aula de forma remota não é para mim.
Seu irmão, Iago, casou-se, divorciou-se e teve uma filha, Catarina. Ele e Igor voltaram a morar com os pais e as divergências que causavam desarmonia entre ambos durante a infância, hoje somam-se.
— Meu maior desejo é que as pessoas vejam histórias como a minha e saibam que por mais que a vida às vezes possa ser dolorosa e injusta, nós ainda temos uma força interna sobrenatural. Quero que, principalmente meus irmãos e irmãs LGBTQIA+, saibam que nós podemos tudo. E, se a vida tentar nos derrubar diariamente, sejamos teimosos para recomeçar, sem permitir que os desafios tirem nosso brilho e vontade de vencer.
Crédito da ilustração: Kate Scarpi
Capítulo do livro: Gay Demais Para Ser Levado a Sério