O futebol de várzea está presente em todas as regiões da cidade de São Paulo, mas é na Zona Norte que cinco times (Cruz da Esperança, Sade, Pitangueira, Paulista e Baruel) e uma comunidade lutam para manter os seus campos dentro do terreno do aeroporto do Campo de Marte. Acordei cedo, a viagem prevista da zona Sul para a zona Norte é de duas horas e meia, mas perdi o horário do ônibus que passa na Brás Leme a cada vinte minutos e segui os últimos 3,3 quilômetros a pé. Então o tempo foi de três horas.
Vou em busca do doutor Otacílio Ribeiro (que também não estava no local na hora combinada) e da minha curiosidade sobre qual seria o motivo dele ser chamado de doutor. Isso me sondava a cada passo que dava dentro do complexo.
Nem precisava olhar o relógio, porque a cada 10 minutos decolava um monomotor do aeroporto do Campo de Marte e, a cada 5 minutos, dois helicópteros rondavam a área.
Depois de meia hora aparece um pálio dourado, muito castigado, que para do meu lado, lá dentro um senhor com uma aparência simpática, de boina branca, camisa polo creme, bermuda jeans e mocassins brancos, mas nem tanto. A primeira coisa que ele procura são as fotos antigas que estão no espaço do Cruz da Esperança. Lá tem fotos de tempos diversos, de times e comemorações, então procuramos um lugar “tranquilo” para conversar.
Minha primeira pergunta não foi sobre como surgiu o Complexo Esportivo do Campo de Marte, foi porque o chamavam de doutor. E falou que era promotor da União Geral e atualmente estava aposentado. E logo em seguida começou a contar a história do local: a história do Complexo Esportivo do Campo de Marte começa na década de 60, a comunidade negociou com a Aeronáutica, detentora da área, para construir os campos de futebol. O primeiro está na entrada e é do time do Sade, uma empresa que tinha ao lado e conseguiram fazer o campo mediante pagamento de aluguel. Depois surgiu o campo do Baruel (se pronuncia Barruel), depois o campo do Cruz de Esperança, do Paulista, do Pitangueira, e por último o campo do Aliança. Todos os campos pagavam um aluguel mensal para a Aeronáutica.
A área faz parte de um contexto histórico e de uma briga judicial que começou em 1932, na Revolução Constitucionalista. Na época, o terreno era da prefeitura e utilizaram o local para os aviões paulistas saírem e bombardear Minas. São Paulo perdeu a revolução e a União ficou com a área. Em 1957, a prefeitura de São Paulo entrou com uma ação judicial contra a União e essa ação está tramitando há 60 anos. Na primeira e na segunda instância a prefeitura teve sentença desfavorável. Na terceira, finalmente sentença favorável, na qual foi determinado que a área voltaria ao domínio da prefeitura e a União pagaria uma indenização por todo esse tempo, ou seja, desde 1932. Essa ação está no Supremo Tribunal Federal para decisão final e a sentença favorável à prefeitura pode render uma indenização, dizem alguns, de dez bilhões de reais. Segunda a ação, diz que a área da pista e do hospital da aeronáutica as casas dos oficiais da aeronáutica ficariam para a aeronáutica e o restante passaria para o domínio da prefeitura e, justamente pelas áreas que não podem ser devolvidas, que a União tem que pagar.
A história do terreno do Campo de Marte vai além da Revolução de 32. Em 1761 a área era ocupada pelos jesuítas e com a Constituição Republicana (1891), o local foi confiscado pelo Estado e logo depois passou para o município.
Há oito anos a associação recebeu uma notificação extrajudicial para desocupar a área e foi preciso negociar com a aeronáutica, o comandante do 4º COMAR não sabia da disponibilidade da ocupação, e não sabia que a comunidade pagava aluguel por uma área pública. Esse aluguel era direcionado para um clube particular da própria Aeronáutica chamado CASSASP (uma entidade particular que agrega o pessoal da aeronáutica).
A situação da Aeronáutica não era fácil, pois receber dinheiro de um local público para manter uma área particular, como disse o dr. Otacílio “é uma grande prevaricação”. Depois disso, eles resolveram fazer um contrato de cinco anos sem ônus para o complexo. A Associação dos Clubes Mantenedores da Área de Esporte e Lazer e Cidadania e Cultura do Campo de Marte que agrega os clubes que usam essa área permanece no local. Antes disso cada clube tinha o seu próprio contrato de aluguel.
E a sorte mais uma vez ajudou os clubes, porque a Aeronáutica entrou com uma notificação judicial, que tem menos impacto que uma ação judicial, e “nós entramos com uma ação de manutenção e posse da área porque a gente é legítimo”, disse o dr. Otacílio. Essa ação deu resultado, recentemente saiu uma sentença da 12ª Vara Federal da juíza Doutora Elizabeth Leão determinando que os clubes permaneçam na área até a decisão final da ação, que se estende desde 1957 entre a União e a Prefeitura. A área é ocupada pelos campos de futebol e os parques foram construídos pela comunidade, cada clube construiu sua área que também é mantido pela comunidade, por semana o complexo recebe uma média de 10 mil pessoas isso porque no local tem escolinhas de futebol para as crianças da região e a área é aberta para a população usar e é tudo mantido pela comunidade sem ter um centavo de verba pública.
O Complexo Esportivo espera que o plano diretor aprovado na gestão Haddad tem como projeto abrir um parque público no Campo de Marte com 400 mil metros quadrados, esse parque público vai encostar no rio tietê, vai acabar com as Marginais, fechando a Casa Verde que será subterrâneo, “o Dória quando entrou deu uma entrevista na Folha de São Paulo dizendo que vai manter o parque e vai até duplicar e, por ser um parque público por lei de cunho federal tem que ter dez por cento de sua área ocupada pela prática de esporte”, lembra Otacílio. Com essa declaração todos da região estão pleiteando uma ação favorável ao parque público e para manter a prática de esporte funcionando.
Um oásis a quatro quilômetros em linha reta do marco zero de São Paulo essa área é utilizada por milhares de pessoas gratuitamente.
O parque do Campo de Marte está entre os 50 parques que tem prioridade para ser construído. Isso muda a sistemática da região da zona norte e é a única subprefeitura que não tem um parque. E que pode mudar a questão ambiental dessa região. É uma área muito importante e pouco tempo atrás surgiu a ideia de construir o museu da aeronáutica no Campo de Marte, quando o dr. Otacílio lembra disso, a sua fisionomia mudou completamente e desabafa: “uma coisa esdrúxula, o que museu da aeronáutica vai arquitetar na qualidade de vida nossa aqui da região, nenhuma, perder uma área que tem qualidade de vida, aqui tem mata atlântica, tem lago aqui dentro, ainda tem um resquício de mata atlântica”.
Os clubes só se organizaram porque passaram por esse problema, antes cada clube era independente dentro do complexo. Tinha rivalidade, o Cruz da Esperança nunca foi no clube do Baruel e estão no local há 50 anos. Eles vivem no mesmo bairro, mas a rivalidade urbana de bairro quase prejudicou a todos, para regularizar a situação do terreno foi muito difícil. Agora tudo organizado a associação ganhou força, além de terem há mais de 50 anos com eles um advogado. O dr. Otacílio, muito orgulhoso, é o responsável por todas as questões do complexo, vê o que está certo errado.
O local é administrado por todos da região e ainda recebe times de todo o estado de São Paulo. A várzea mantém muitas famílias financeiramente, tem o jogador que recebe um salário, a pessoa que faz o fardamento, os ambulantes que vendem na região, e hoje muitas pessoas vivem da várzea mesmo em fase de extinção.
Antes mesmo da Avenida Brás Leme existir, os moradores do Parque Peruche iam nadar no lago que tem no Campo de Marte e nadavam lá onde hoje tem o Anhembi. Na zona Norte existiam vários campos de várzea. Atualmente os jovens não têm a mesma experiência e acabam jogando no campo sintético, pelo tempo que fiquei no complexo era difícil encontrar adolescentes, mas era encontrei várias crianças com menos de nove anos. Passar pelos campos que saíram Chulapa (artilheiro do São Paulo que conquistou os Campeonatos Paulista de 1975,1980 e 1981 e o Brasileiro de 1977) e o Basílio conhecido como pé de anjo (pelo Corinthians conquistou os campeonatos Paulista de 1977 e 1979), me fez pensar o que será do futebol brasileiro que a cada dia busca o padrão europeu? Será que daqui alguns anos teremos jogadores com técnicas que só na várzea é possível? A várzea é uma qualidade de vida tanto física como mental, é possível ver isso pelo pouco que presenciei nessa manhã nublada.
Os jogadores profissionais voltam para jogar na várzea, a maioria deles já não tem condição física de jogar depois de tanto tempo no profissional. Por ano ocorre de dois a três jogos com ex-jogadores ou que ainda estão no profissional, o último jogo reuniu uma seleção brasileira e também é comum encontrar jogadores do Corinthians, como o Basílio que é o diretor da Cruz da Esperança e o Serginho é da região, os campeões de 77, do Santos, do Palmeiras e do São Paulo marcam presença. “O que começa na várzea termina na várzea. Porque ele foi criado na várzea e é onde ele tem os amigos dele e vire e mexe tem profissional aqui jogando, assistindo jogo é a turma dele é o bairro dele”, enfatiza Otacílio.
Eles têm um camarote no Sambódromo e agora a Prefeitura quer tirar esse mimo que alguns sambistas conseguiram para o complexo, e uma nova briga que começa agora com as escolas de samba. É normal encontrar o presidente da Gaviões, do Peruche andando pelo Cruz da Esperança.
Otacílio: Fala meu craque, esse é o Mariposa um grande jogador, joga muita bola. Vem cá meu camarada. A várzea é ligada ao samba, aqui todo mundo usa a camisa da nossa escola, o pessoal é fanático.
Andando pelo local vejo os carros alegóricos, do outro lado da avenida é o Sambódromo, vejo o barracão do Império e logo adiante tem a cidade do samba que estão construindo, e do lado oposto tem a torre do sambódromo.
Entro no Aliança, “você não foi no festival ontem por que? Tava bom o jogo”, “o time lá queria bater no cara do Baruel, do juiz que estava roubando? ”
Conheço a Soraia, ela tem o bar, mas basicamente ela que manda no local. Ela faz os festivais, ela que vai no campo tira o juiz põe o juiz, põe o time e tira o time. E como vista eles têm um pedaço da mata atlântica. Todo o local tem 45 mil metros e com o parque de 400 mil metros eles perdem 5 mil metros, se for uma área de 800 mil metros cabe mais 35 mil metros para área de esportes. E vão continuar a luta para que o parque saia do papel. Eles brincam dizem que “o Dória nunca chutou uma bola, o Haddad nunca chutou uma bola”.
Soraia: é um assunto importante, o futebol de várzea está acabando é um espaço que não paga que é para a família, olha o espaço que tem aqui o que falta é aprimorar. Ontem teve festa no Cruz e aqui (Baruel), era um festival do futebol e teve o aniversário também.
“Você viu o que aconteceu no Cruz? Virou uma piscina, mas foi porque mexeram no campo, o campo nunca teve problema. O zelador fica dormindo lá, não faz nada”. Ele tá a 50 anos aqui já”, “o cruz está abandonado, eles são do samba né, sambinha”.
A noite tem previsão para ter mais de 2 mil pessoas, porque é a festa de São Jorge, tem uma estimativa de arrecadar 10 contos.
“O campo do Baruel tá ruim também, mas agora melhorou um pouco, ontem não teve problema”.
Entramos na praça de esportes do Paulista. O dr. Otacílio me alerta para tomar cuidado com uma cadela que fica na entrada do Paulista, estava com sorte ela não estava lá, a história da cachorrinha é: um dia ela apareceu com a casinha e ficou ali.
“Bom dia… ô meu garoto!”
Eles também jogam a bocha, tem até campeonato de bocha. “Bom dia garotada”. E as brincadeiras começam “quando o pai dele vem buscar ele para levar pra casa. Aqui a gente chama eles na marra porque esquece da vida, e aqui são tudo craque de bocha”, “o pior aqui conserta relógio no escuro com luva de boxe” eles investem muito dinheiro para ter uma equipe de bocha. No local tem um parque dos brinquedos e estão fazendo um campinho para a “molecada”. Esse é o Baruel, o campo não é um dos melhores. Os mais velhos chamam de Barruel e a “molecada” fala Baruel, é um sobrenome espanhol que se pronuncia com dois erres.
Encontrei várias características dentro do complexo e para começar, o Pitangueira fundado em 1938, por entusiastas esportistas que levou o lema “o clube das famílias” a sério, todas as decisões e responsabilidades são divididas entre os membros. O Pitangueira tem o pessoal de Santana e tem um poder aquisitivo maior, de médio para cima. O Baruel fundado em 1941, é organizado pelos moradores do Parque Peruche e tem sua diretoria também do Peruche. O Cruz da Esperança fundado em 1958, é um time onde se predomina membros negros e a diretoria é o pessoal do samba. No Cruz eles são conhecidos como bravos. O Sade surgiu em 1963, e foi formado por funcionários de uma empresa que levava o mesmo nome, a praça de esportes do clube foi a primeira a entrar em negociação com a Aeronáutica para usar o local. O time Veteranos Unidos Paulista fundado em1966, é o clube que dá mais trabalho, “o Paulista é complicado”. Outro time que faz parte também é o Aliança, sem muitas informações, o que descobri, a maioria dos membros são nordestinos.
Tem jogadores que nunca jogaram nos outros clubes. Um momento que o dr. Otacílio lembra de quando finalmente ocorreu um campeonato entre o Cruz e o Pitangueira que ganhou o campeonato e se fosse outro tempo teria saído uma bela briga.
“Aqui é uma fotografia de como é São Paulo. Ao lado do complexo tem um centro empresarial, o menor preço é de 2 milhões de reais”.
Conheci o Paulo, ele estava sentado com gelo no joelho, é uma figura emblemática, porque ele segura a “molecada”, ele cuida da escolinha. Ele é responsável pelos campeonatos do sub 17, 15 e 13 e eles jogam pela manhã. Paulo sempre ficou no gol e ninguém conseguia quebrar o seu bloqueio e os “caras” não querem que ele jogue mais.
No Pitangueira tem muitos sócios, eles fazem campeonatos internos, eles têm uma condição financeira muito boa, tem sócio que paga até cem reais por mês.
Uma figura curiosa aparece se identificando como comunista e logo diz: “na área de esportes todo mundo tem que saber trabalhar, infelizmente o esporte tá na mão da direita, na mão dos conservadores, a gente tem que fazer um trabalho também e aqui tem essa divergência do cara que é direitão, o cara que é esquerdista, o anarquista, o conservador.”
Observando o local, conclui que daria um belo parque.
O Complexo só tem uma entrada e parece que está dando problemas, a “mulecada” vai lá para soltar pipa, eles podem usar o espaço na segunda e na quinta, mas tem que deixar o local limpo e não limpam. Um dia um jogador cortou a perna por causa do cerol.
A última área que conheci é do Sade, é a maior do complexo, tem até bolivianos. Os brinquedos são mais organizados e estão numa área fechada.
O fluxo é muito grande, não hoje, porque é um sábado no meio de um feriado prolongado, mas no dia 7 de setembro é feito um festival com 140 times que utilizam todos os campos. São cerca de 2500 jogadores e 10 mil visitantes. No fim de semana ocorrem cerca de 60 jogos, 10 por campo, com uma média de 1500 jogadores sem contar as pessoas que utilizam o local, o número pode chagar a 2 mil pessoas entre sábado e domingo praticando esportes.
“Seria uma pena a comunidade perder essa área.”
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