Trilhando a equidade no futebol em Minas Gerais

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Minas Gerais é conhecida como “caixa d’água” brasileira, referenciando a importância de suas bacias hidrográficas ao redor do estado. Já nos esportes, especificamente no futebol, dois times masculinos cisgêneros são reconhecidos nacionalmente pela sua grandeza e títulos. Atlético Mineiro e Cruzeiro representam títulos, grandes torcidas, história e revelação de grandes jogadores como: Ronaldo ‘fenômeno’, Fred, Toninho Cerezo e outras grandes figuras.

Mas há uma história notável que ainda é desconhecida por muitos: o Elite Futebol Clube, uma equipe inclusiva de Minas Gerais destinada a pessoas transgêneros, criado em 05/11/2022.

Bom, desde o início durante a minha abordagem para verificar o interesse do time em participar desta obra, sempre foram abertos a esta proposta, em especial o fundador do time, Victor Miguel Carlota Neves, de 26 anos e residente de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Victor é um rapaz que, ao primeiro contato que tive, foi mais que uma fonte, também se tornaria um amigo, mesmo com a distância sua disponibilidade e atenção no projeto me fez crer nesta questão. Encontrei-o após diversas buscas no Instagram, nos perfis de clubes transgêneros com o qual eu não obtive sucesso nos contatos. Mas com o Elite foi diferente, encaminhei uma mensagem pelo direct no dia 04/07/2023 às 12h48. Para podermos observar o que comuniquei acima, em 25 minutos já havia o retorno e me encaminhado o seu contato.

A partir desse ponto, bastava reservar um dia e horário para que pudéssemos iniciar nossa conversa. Dada a distância que nos separava, precisávamos permitir que o diálogo fluísse organicamente, de modo a nos inserirmos completamente na perspectiva do personagem. O livro-reportagem, com sua essência de jornalismo literário, nos proporciona a liberdade necessária para nos imergimos na história, transformando-a em uma experiência viva que permitiria ao leitor não apenas compreender os acontecimentos, mas também se identificar com as características e nuances informadas.

No dia da nossa conversa, naquela quinta-feira 20/07/2023, começaria a abrir meu pensamento e um norte de como seria vigorante, benéfico e de suma importância no meu livro o enredo desse time. A minha primeira impressão daquele moço com piercing na orelha, cabelo com luzes e com seu sotaque típico mineiro. Estilo de sobra ele tinha, também com um tom meio tímido de início me deixou ansioso para saber um pouco mais da sua história, antes mesmo do contexto da criação do seu clube.

Com uma infância um pouco conturbada, Victor lidava com o mal do vício alcoólico em sua família. Os seus pais ingeriam bebida alcoólica. Além dessa questão havia também muita briga que ele vivenciava, contatos físicos eram frequentes. Mas não era apenas ele que enfrentava essa situação, seu irmão com dois anos mais novo e sua irmã com quatro anos mais velha, tinham que lidar com essa questão. Sabemos que os problemas familiares impactam diretamente em nossas vidas.

— Minha irmã sempre foi pai e mãe para a gente, entendeu? Destaca Victor, que nesse momento ainda estava reservado.

Recentemente, meus pais também se separaram. Eu enfrentava as mesmas questões, menos o problema da bebida alcoólica na família. Mas as brigas eram constantes, sendo a mesma questão do Victor, desde pequeno eu e os meus irmãos sempre vivenciamos isso. Se tornou rotina. Sei bem como o Victor se sentia, por isso acho que foi essa conexão entre nós.

Emocionei. Somos humanos, erramos. Hoje eu tinha eu tenho meu convívio com minha mãe e meu pai. Eu os amo. Mas essa etapa nunca será apagada da minha memória.

Bom, vamos voltar à história do nosso amigo.

Seu pai era mecânico e todo final de semana ele recebia o dinheiro de seus trabalhos. Mas seus gastos eram com as bebidas, sendo assim, quando seu apoio paterno chegava em casa com alterações devido ao uso de substâncias alcoólicas, já havia discussões com sua esposa. Além da discussão, conforme informamos acima, havia agressões.

Então Victor e seus irmãos saíram atrás de sua avó chorando pelo que tinham vivenciado. Essa rotina era semanal, todo final de semana era a mesma coisa. Então aos 12 anos, cansado de tudo isso que presenciava em seu lar, Victor foi morar com a sua avó, então ela o acolheu.

— Aí, tipo, assim como eu nunca tive a presença da minha mãe e do meu pai, eu fui tipo assim, eu fui sendo uma criança, vamos dizer assim, muito carente, entendeu? Porque a gente tinha a nossa avó, só que não é a mesma coisa de mãe. Pode ser o carinho, pode ter um amor, mas não é a mesma coisa. Disse em tom entristecido.

Nessa etapa de sua vida e com uma nova rotina, Victor começou a frequentar a escola no período integral. A paixão pelos esportes estava vigente, seu interesse contínuo em realizar alguma prática esportiva era frequente. Na escola ele praticava ping-pong, atividades como atletismo, basquete. Mas tinha uma que lhe chamava mais atenção, o futebol.

Após conhecer essa modalidade, ele se apaixonou à primeira. Diferente da nossa primeira personagem, Sheilla Souza de Jesus, que não gostava de praticar no início de sua jornada. Mas com Victor foi diferente, jogando as peladas na escola ele já demonstrava o dom com a pelota. Ele encontrou algo para ocupar seus problemas, a paixão pelo futebol fluía e ele já era destaque. Na sazonalidade da escola, ele jogava pela equipe feminina da sua turma e já tinha uma grande notoriedade pela sua habilidade e dribles desconcertantes.

Por conta da sua aptidão ao esporte, ele começou a ter incentivo da sua família, sua avó e seus tios então decidiram apostar em sua carreira.

— Eles decidiram, na época, pagar uma escolinha para eu poder participar, a mensalidade da escolinha era de 30 reais, mas na época o salário mínimo era o quê? Uns 400 reais e alguma coisa, então dinheiro na época era muito difícil. Aí eles começaram a pagar.

Mas nada seria fácil. A mensalidade era fixada ao mês, mas também tinha outros valores fora isso, tais como custos para participação de jogos, fora questão de alimentos, que também tinham que levar para as partidas. Então Victor vivenciava outro obstáculo:

— A gente tinha que levar um dinheirinho pra poder lanchar essas coisas e eu nunca tive uma condição para levar sempre, entendeu? Então começou afetar, eu comecei a não estar sempre nos jogos por causa dessa taxa e, quando eu ia, eu passava muita necessidade, às vezes via os meninos comendo alguma coisa, eu queria comer e não tinha, não tinha condição.

Realidade como essa muitos enfrentam em busca dos seus sonhos. A dificuldade sempre estará presente em nossas vidas, é assim que construímos nossa bagagem e sei que a pessoa incrível que o Victor é, foi por conta disso.

Nessa mesma época, também já começavam surgir aqueles sentimentos que ele não entendia muito bem, ele não se sentia como a sociedade o enxergava, a disforia é uma fase que a população transgênero enfrenta, e o tratamento e acompanhamento psicólogo pode ser necessário para ajuda e auxílio nessa etapa.

Ele se olhava no espelho e não se enxergava com o gênero que lhe foi concebido no momento do seu nascimento. Ele se enxergava como Victor.

— Então, eu fui crescendo, fui crescendo, fui crescendo, me tornei um adolescente. E desde pequeno, eu sentia que eu era diferente das pessoas, sei lá, tinha alguma coisa diferente. Não era só a minha sexualidade, tipo assim, tá ligado? Era tipo assim, sei lá, eu me sentia diferente. Eu me sentia um menino. Eu não sei te explicar isso desde novo, tipo assim, uns 8 anos, mais ou menos. Eu já comecei a ter disforia do meu corpo, entendeu?

O acompanhamento psicológico é importante, pois são diversas questões que podem acometer. Explicarei melhor adiante, a importância dos profissionais da saúde neste momento de vida das pessoas transgêneros.

Victor começava a se soltar, se sentia mais confiante em relatar suas vivências. O uso de roupas femininas não era o que agradava:

— Não queria nem a pau colocar sandália no meu pé. Também me davam vestidos. Eu acho que eu nunca usei vestido na minha vida, entendeu?

A fase da adolescência é onde começamos a nos descobrir. Então ali ele começou a alterar sua aparência, raspou o cabelo que até aquela fase era enorme. Começou a ficar com mulheres e se entendeu como lésbica. Mas ele se enxergava no corpo de um homem.

— Eu sempre tive uma passibilidade como homem, por exemplo, a maioria das pessoas que eu conheço, não sabem que eu sou um cara trans, entendeu?

Aos 19 anos, ele assimilou que era uma pessoa transgênero e começou a realizar o processo de transição apenas aos 22 anos. Com 24 anos, iniciou o tratamento hormonal com acompanhamento médico. A retificação de nome veio na mesma época, mas poderia ter sido mais rápida. No entanto, devido aos custos envolvidos, essa etapa foi um pouco demorada.

— A certidão paguei R$430,00, a segunda via da identidade R$94,00, a CNH foi o valor de R$124,00. Só o CPF e o título de eleitor que são de graça, o restante tudo paga. Então demorei para alterar o nome porque é muita grana! Explicou Victor.

Com essa paixão pelo futebol e pelo seu espírito de liderança, Victor decidiu elaborar um time de peladinha, envolvendo apenas pessoas transgêneros, de início três pessoas se interessaram pela sua iniciativa. Assim como Cristian, ele enfrentou dificuldades dos atletas com questões financeiras, havendo o desânimo dos presentes. Mas convicto que sairia algo legal do papel, começou a colocar a mão na massa para realizar este sonho.

O brilho nos seus olhos irradiava, mesmo com a distância eu pude enxergar que essa realização é um marco para ele. Então ele explicou diretamente como foi este processo inicial:

— Arrumei uma quadra pela prefeitura que a gente não paga nada. Eu fui chamando os meninos. Muita gente saiu, muita gente entrou, mas eu nunca desisti do time, entendeu? Foi isso que fez, eu, tipo assim, criar um time e revolucionar, digamos assim, né? Criar um time de pessoas trans.

A quadra que conseguiu após reunião na prefeitura, antes estava largada pelos órgãos competentes. Era ponto de encontro para utilização de drogas, estava bem danificado. Com sua liderança, Victor apresentou aos responsáveis a importância de um time transgênero no local, porque iria abrir a visão e ter novos olhares de utilização do ginásio.

— Aí a prefeitura fez uma reforma no ginásio todo e colocou catraca, colocou o porteiro. E hoje em dia o acesso é restrito, só entra quem tem horário na quadra, né? Então assim foi uma revolução para o ginásio. Destacou.

Então, ali saía do papel o projeto, o primeiro time composto por pessoas transgêneros de Belo Horizonte e um dos mais recentes nacionalmente.

Após conseguir a locação da quadra, começou a criação da identidade visual do clube. O logo é um Bison, que significa igualdade e família, com as cores vermelho, azul e branco essa escolha foi pela questão apenas estética. O uniforme é composto pelo logo e as cores preta e azul.

Com local definido, surgiram meninos trans interessados no projeto. As portas sempre estarão abertas à comunidade no Elite. Também como uma forma de acolhimento e bem-estar, onde eles podem ser eles mesmos. Os treinos acontecem no poliesportivo Dom Bosco de quarta-feira, sexta-feira e domingo. Durante a semana os horários são das 20 às 22h e aos domingos das 12 às 14h.

Com tudo resolvido. Estava preparado o primeiro confronto do Elite Futebol Clube. No dia 22/01/2023 contra o time feminino mineiro o Vida Loka FC, marcava o início da jornada recente do clube. O placar não poderia ser diferente após árduos treinos e empenho do time. 4×3 o resultado final. Marcava ali o início de tudo!

Podemos constatar que, em relação à inclusão no futebol, a situação se mostra complexa quando comparada a dos jogadores cisgêneros masculinos. A concepção de um time exclusivamente transgênero representa mais do que simplesmente formar uma equipe; ela busca criar um ambiente onde todos possam se sentir à vontade, sem a necessidade de enfrentar julgamentos.

Do ponto de vista financeiro, a decisão de custear as despesas pessoalmente acrescenta uma camada adicional de desafios, e há várias questões que precisam ser abordadas de maneira orientada.

— Nosso time tem duas bolas de treino. A gente não tem cone, os nossos cones foram feitos de garrafa pet, pra você ter ideia, entendeu? Eu trabalho, tem pessoas do time que trabalham, só que o que que acontece? Às vezes é um dinheiro que sobra. A gente investiu em que? Em uniforme, porque a gente não tinha nada. Às vezes um menino vem carente treinar, a gente dá um meião para incentivar a vim, dar um short, entendeu? — São dificuldades que Victor relata ter que conviver para deixar o seu projeto em pé.

Além do Elite, o mineiro tem um projeto visando crianças da comunidade Dom Bosco, onde reside. Seu propósito é além do jogo e sim uma forma de dar outros horizontes à molecada da favela e também como uma forma de levar conscientização aos mais novos:

—  A gente passa a vivência do que são pessoas trans para os jovens, para eles também terem esse entendimento. Às vezes na escola, ver um colega trans, e ao invés de prezar o preconceito, eles vão lembrar do que? Do Elite. Nossa, que legal lá no time ter uma pessoa assim, entendeu a importância do que é levado para as outras pessoas. Destaca.

A luta árdua prepara um grande guerreiro. No início deste capítulo lembra qual era a profissão do pai do nosso amigo? Então, Victor atualmente é mecânico, seguindo os passos do seu pai, e ama sua profissão, sei disso por conta das inúmeras postagens, e continua conciliando seu trabalho com o seu time. Com o seu poderio criativo sempre em alta, ele continuava pensando em nossos ideais.

O Elite Futebol Clube não estava focado apenas em seus próprios interesses, mas também tinha como objetivo principal elevar a comunidade transgênero a um nível maior de reconhecimento. Daí surgiu a concepção da Copa Inclusão, um torneio que abraçava todos os gêneros, sem se limitar a apenas um deles. Essa ideia reflete a aspiração de como poderíamos vivenciar uma sociedade mais inclusiva em nossos dias.

Crédito das fotos: Autor
Capítulo 05 do livro-reportagem: Pontapé inicial: times, atletas e campeonatos de futebol trans no Brasil

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