A menina que dormia debaixo da banca

publicado na Ed_20_jul/set.2021 por

Dos 21 anos que Mariana Alves da Silva 18 são à beira de uma banquinha na feira. Filha da dona Maria de Fátima Pereira da Silva, 43 anos, e do Seu Vanderlei Alves dos Santos, 42, Mariana não sabe dizer como era sua vida sem a feira. Exceto por dois anos, ainda no seu ensino fundamental, que deixou de acompanhar os pais no trabalho pela necessidade de estudar à tarde, em todos esses 18 anos, Mariana, apelidada carinhosamente de “preta” pela família, passou metade da sua vida nas feiras de Palmas.

Sua profissão? Feirante. Como seu pai, sua mãe, seu irmão e até a cunhada que já entrou pra família vestindo a camisa da “Banda do Vanderley e da Fátima” e ajudando nas vendas. Desde pequena, Mariana frequenta o ambiente onde são vendidos produtos, verduras, comida, temperos, entre outros, antes diariamente e agora duas vezes por semana.

Todas as terças e sextas-feiras, a família está na Feira da 304 Sul, no ponto bem pertinho da tenda de uma senhora chama Felisma, e um pouco mais à frente da tenda de pastel crocante da Marly, vendendo legumes, verduras, empacotando mandioca e esbanjando sorrisos e atenção para todos os clientes que chegam.

Mariana diz que esses dois últimos itens são o diferencial da banca, além dos uniformes bem chamativos, na cor verde, combinando com o tom das verduras, que toda a família usa para alinhar a equipe e serem reconhecidos mais facilmente pelos clientes.

O início

Dona Fátima conheceu o seu Vanderley ainda em Goiás. Ela, baiana, ele, do Rio Grande do Norte. Os dois se conheceram em Goiânia, quando o seu Vanderley já era feirante. Eles continuam juntos até hoje, 24 anos depois daquele pequeno encontro. O lugar de encontro do casal se tornou a base do sustento da família que hoje é formada por Vanderley, seu filho Hernandes, sua esposa e a filha Mariana.

Juntos, Fátima e Vanderley trabalharam na Central de Abastecimentos (Ceasa) de Goiânia. Diferente da feira, a Ceasa é um espaço só para produtores venderem seus produtos a um preço mais baixo. Em 1997, os dois decidiram vir para o Tocantins, pois Goiânia e, consequentemente, o número de produtores, estava crescendo muito e as vendas diminuindo.

De início, a família começou a plantar em uma horta em Porto Nacional, mas pouco tempo depois se mudaram para uma chácara em Taquaruçu[1], onde ficaram cerca de sete anos. Nesse tempo, Mariana conta que os pais trabalhavam em todas as feiras de Palmas e na feira de Taquaruçu.

Sem ninguém conhecido para deixar os filhos pequenos enquanto iam trabalhar, dona Fátima e seu Vanderley levavam as crianças para as feiras quase que diariamente. Mariana e Hernandes brincavam, estudavam, comiam e até dormiam na feira. Isso porque a família trabalhava na feira aos sábados e domingos e, como moravam distante de Palmas, era muito cansativo e caro ir para casa no sábado à noite e voltar para a cidade no domingo de manhã, bem cedo.

Para aconchegar todos na noite de sábado para domingo, eles levavam colchões, cobertores e travesseiros, colocavam de um modo cômodo e toda a família dormia no carro do pai.

— É porque a gente morava em Taquaruçu, então não tinha com quem deixar a banca, a gente montava a banca e tinha que cuidar dela, então chegava certa hora, não vendia mais, então fechava. Só que quando eram cinco horas da manhã meu pai ia lá e abria de novo. Então quando meu pai fechava a banca, a gente ia lá, arrumava o carro e dormia no carro. Minha mãe levava colchão, coberta, levava tudim. Aí a gente ia pro carro dormir, porque a gente ficava pro sábado, banhava de manhãzinha lá naqueles banheirinhos lá de trás — disse ao explicar o porquê de a família virar a noite na feira.

No entanto, às vezes dona Fátima e seu Vanderley ainda estavam vendendo quando os filhos sentiam sono, então eles ajeitavam um espaço dentro das caixas vazias, com um cobertor e era lá que Mariana era colocada para descansar enquanto os pais continuavam trabalhando.

— Quando eu era pequena, menor, minha mãe arrumava embaixo da banca pra gente dormir, porque não tinha lugar pra dormir, então ela colocava dentro daquelas caixas de verdura, ela arrumava, colocava uma coisinha e eu deitava, e o povo, todos os clientes morrem de rir até hoje de mim porque eu dormia dentro da caixa de verdura. A mãe nunca deixou os filhos dela com ninguém, sempre levava, até uma época o conselho tutelar foi na feira e bateu em cima disso e tal, e minha mãe pegou e falou ‘mas como que eu vou deixar eles? eu não tenho ninguém, eu não conheço ninguém aqui, como é que eu vou deixar eles com alguém? é melhor eles estar aqui na feira perto de mim do que eles lá em casa e eu não sei o que que eles estão fazendo. Porque eu não vou deixar eles sozinhos’ — Mariana relembra dos seus tempos de menina.

— Por que eles estavam reclamando de vocês dormindo na feira? — perguntei curiosa.

— Porque tipo, a gente dormia na feira. Dava uma hora da manhã e a gente tava lá na feira, tinha que ficar lá com eles né, e às vezes a gente não dormia porque criança é levada, não vai dormir cedo, às vezes era uma hora da manhã e minha mãe tava lá, e a gente tava lá fazendo alguma coisa. Então eles reclamavam. disse sorrindo por recordar de como foram os primeiros 10 anos da sua vida. Por isso, Mariana se tornou “a menina que dormia debaixo da banca de verdura” para os feirantes mais próximos.

Além das histórias, Mariana carrega o orgulho de trabalhar na feira com a família. Sem medo, ela conta que a partir dos 10 anos já não ia à feira mais para acompanhar, mas para ajudar.

— […] A gente estudava pela manhã, chegava em casa, tomava banho e ia pra feira. Sempre foi assim. Aí quando eu peguei um tamanho, quando eu tinha 10 anos, aí meu pai comprou uma cadeira, daquelas giratórias de balcão e colocou na banca, daí ele colocou um caixa, e eu ficava sentada passando troco pra eles. Aí então eles iam embalando, colocando as verduras e tudo e eu ficava sentada, porque tamanho também não alcançava, passando troco. Então desde os 10 anos eu trabalho na feira.

Também é fruto de todo esse trabalho a faculdade de Mariana, paga integralmente com o lucro retirado das vendas. Estudante de Medicina Veterinária na Faculdade Católica do Tocantins, ela já está no quarto período e até agora os pais decidiram por continuar pagando, mesmo com as dificuldades do último ano de produção, depois que a família perdeu toda a horta, em Taquaruçu, distrito de Palmas, por falta de água e precisou transpor a plantação para uma nova chácara em Porto Nacional, onde moram atualmente.

— […] Assim, na época que eu comecei, até tava mais em conta, tem um reajuste anual, aí vai subindo um pouco. Aí como tem os juros (o financiamento), meu pai falou ‘enquanto eu tiver dando conta de pagar é melhor’, aí ele vai pagando a mensalidade, se apertar muito e ele não conseguir mais, daí a gente vai procurar o FIES, mas enquanto ele tá conseguindo é melhor porque senão depois ainda tem juros em cima, aí fica mais caro.

Atender bem é a alma do negócio

— E além dos uniformes, o que vocês fazem para chamar a atenção? Ou acham que não precisam? Porque, enfim, já tem toda uma clientela fixa — perguntei, querendo saber mais sobre como a família “vende o seu peixe”, ou melhor, sua verdura.

— Não, assim… a gente, a única coisa que faz mesmo é atender bem mesmo. Tentar atender diferenciado mesmo a pessoa, conversar, porque é igual eu até brinco com minha mãe lá na feira, eu falo sobre o pessoal que vai… digo ‘mãe, os seus clientes, eles são meio carentes’, porque o cliente vai pra banca e ele quer contar uma história, quer falar alguma coisa. O cliente chega lá, ele quer perguntar, quer uma receita, quer saber como que faz. Então, cê tem que ter atenção com o cliente. A única coisa diferente que a gente faz é tentar ao máximo dar atenção para o cliente disse, certa da resposta.

Mariana disse que foi esse um dos motivos, inclusive, que fez com que a clientela aumentasse significativamente nesses 18 anos, e com que a família atendesse, até supermercados, buffet, restaurantes, o que aumentou também a produção.

— […] Como minha mãe gosta de conversar e falar, a gente foi pegando muito cliente, porque antes, quem trabalhava na banca era só eles dois, meu pai e minha mãe, e aí agora já aumentou o pessoal que trabalha, então minha mãe sempre fala ‘paciência, o cliente sempre tem razão e escuta’. Então é só isso. Só tentar atender bem, porque eles sempre querem conversar.

Para além das técnicas ensinadas pela mãe de como conquistar a clientela com os sorrisos e ouvidos atentos; e de como chamar a atenção, com os uniformes verdes e os nomes dos pais estampados na frente, a banca também tem como requisito básico e cuidado por toda a família a qualidade. Seu Vanderley comanda a produção da horta e faz do jeitinho que seu pai ensinou.

Trabalhando na plantação desde quando morava com os pais, tudo que o pai aprendeu, agora repassa para os filhos e funcionários, primando pela qualidade do produto que chega até os clientes e até a sua própria mesa.

Todos ajudam durante a feira e antes também. O filho Hernandes trabalha com o pai na plantação, ajuda a separar as verduras, a cunhada de Mariana ajuda nas notas de pagamento e Mariana faz as entregas em dias determinados. No dia de feira, toda a família sobe para a 304 Sul e faz de tudo um pouco.

Mariana empacota, mas também conversa, passa o troco, e também separa os produtos. Assim que chegam na tenda, a primeira preocupação é separar os pedidos dos supermercados, buffets e clientes fixos, e organizar todos os produtos na banca. Mas isso não acontece de maneira aleatória. Cada verdura, legume, pimentinha, tem seu espaço já pensado para que tudo caiba na mesa e fique bonito aos olhos de quem passa.

A família de Mariana já está perto de completar vinte anos nesse árduo trabalho nas feiras de Palmas e sabe que o diferencial é o olhar. O olhar do freguês para a banca e, sobretudo, do feirante para o seu cliente.

O irmão de Mariana oferecendo cheiro-verde para um cliente.
Foto: Lauane dos Santos

A família se comunica bem para que nada passe batido,
já que todos acabam fazendo de tudo um pouco.
Foto: Lauane dos Santos


[1] Distrito do município de Palmas, localizado a cerca de 30 km da capital.

Crédito da capa: A família se reversa para organizar, cuidar da banca e servir os clientes. Foto: Lauane dos Santos

Capítulo do livro “Banca Exposta: A vida e o trabalho dos feirantes de Palmas”. Disponível em: https://editoraflutuante.com.br/livraria/banca-exposta/

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