Uma outra leitura da periferia

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Cansada de esmolas e sem o dim da faculdade
Ela ainda acorda cedo e limpa três apê no centro da cidade
Experimenta nascer preto, pobre na comunidade,
Cê vai ver como são diferentes as oportunidades. (Cota não é esmola – Bia Ferreira)

Homens, brancos e heterossexuais. Essas são as características da maioria das personagens que se destacam nos livros publicados no Brasil. Paulo César Marciano, apelidado carinhosamente como PC Marciano, me fala sobre esses dados durante uma chamada de vídeo. O idealizador da Gráfica Editora Heliópolis me recebe na sala de sua casa no início da tarde de uma quarta-feira de bastante calor para falar sobre um assunto que ele estudou bastante: os livros. Além de ser formado em Letras pela Universidade São Marcos, PC passou a estudar e entender as dificuldades e controvérsias do mercado editorial, que ele afirma, categoricamente,  ser  um  mercado que tem seus próprios interesses. “Os consumidores de livro compram mais livros estrangeiros,  os nacionais  que  são  mais  vendidos  são os de autoajuda, então as editoras investem nos livros estrangeiros. Assim, sobra uma camada pequena para os livros nacionais: 2%. Desses 2%, apenas 12% são as mulheres que publicam os livros, ou seja, é um número bem reduzido e exclui as mulheres trans”.

Ao longo da conversa, ele cita e caracteriza como “assustador” um estudo realizado pela pesquisadora brasileira Regina Dalcastagnè. A doutora em Teoria Literária  e a professora  da  Universidade  de  Brasília  (UnB)  realizou,  em  2003,  uma pesquisa sobre as personagens do romance brasileiro contemporâneo e descobriu  alguns dados interessantes. Na investigação, Regina analisou os livros nacionais publicados pelas editoras Companhia das Letras,  Rocco e Record entre os anos 1990 e 2004 e descobriu que 62,1% das personagens tidas como importantes para o desenrolar da história são homens, 79,8% são de cor branca e 81% heterossexuais.

As personagens dos livros refletem o perfil de quem os escreve. Os protagonistas são homens brancos e de classe média, pois são essas pessoas que publicam os livros no Brasil. Essa é a opinião de PC. O menino que foi diagnosticado como mudo aos 5 anos de idade, e que desde a infância foi desenvolvendo habilidades no mundo da música, do teatro, do cinema e da literatura.

Apenas em 2008, aos 30 anos, PC resolveu deixar o trabalho que tinha como gerente em gerenciamento de riscos na área de seguros de carga para passar a viver da arte. A decisão veio após ele ter terminado de escrever, com muito esforço, por conta da dislexia, seu primeiro livro. PC então passou a tentar desenvolver projetos  voltados  à  literatura  enquanto  conciliava  os  projetos  literários  com  os trabalhos como ator, pois nesse período, ele já tinha a formação necessária para interpretar papéis.

Inquieto, PC logo se adaptou também para o cinema, começou a trabalhar como assistente de câmera e a aprender sobre a sétima arte. Em Heliópolis, bairro em que sempre morou, fez dois cursos na área, além de fazer experimentos no projeto CineFavela. Fora da periferia, PC também fez diversos cursos e oficinas no SESC, em casas de cultura e bibliotecas. Ele sempre buscou cursos gratuitos, mas precisou pagar alguns.

PC sempre foi o cara “das gambiarra”. Do trabalho na indústria herdou destreza com as mãos e a facilidade de consertar itens quebrados. Quando trabalhava com cinema, conseguia improvisar até mesmo um tripé, amassando um pedaço de ferro. Ele fazia o mesmo para solucionar problemas que surgiam quando ia gravar uma música de artistas da periferia: colocava uma caixa de ovo na parede de um guarda- roupa para melhorar a acústica do lugar. O “Sr. Gambiarra” ri ao contar que essas ideias foram batizadas de “B.O.” (“Baixo Orçamento”).

Um dia, PC começou a refletir sobre a importância da literatura. “Todas as artes vêm da literatura, porque ninguém faz uma música sem antes ter escrito, ninguém faz um roteiro de cinema ou filme sem ter escrito… Deixa eu ver o que eu consigo fazer aqui”. Isso ocorreu em 2016 e, logo em seguida, PC começou a realizar um mapeamento dos escritores de Heliópolis e região, pois, por conta das dificuldades financeiras, não conseguia se deslocar para bairros mais centrais. No percurso, ele descobriu   que   vários   escritores haviam conseguido  publicar suas obras, mas não conseguiam vendê-las, por causa dos altos custos de publicação e de comercialização. “Teve um caso em que o autor conseguiu publicar, mas não conseguiu vender o livro. Ficou com mil livros parados em casa, depois teve de vender o próprio carro e, com os problemas que ele teve, a esposa acabou se divorciando”.

Daí surge o novo, e talvez  o  maior  até  então,  projeto  que  a  arte  trouxe  para  a vida de PC: a Gráfica Editora Heliópolis. Com o objetivo de diminuir as  dificuldades para publicar um livro, em 1º de dezembro de 2018, a Gráfica foi inaugurada. Nesse dia,  PC  só chorava. A emoção era tanta que ele havia se esquecido de que estava com  outros cinco  autores,  publicando  um  livro  nesse  dia.  Na  ocasião,  a  Rede  Globo estava no local para produzir uma reportagem: “Eu estava dando  atenção  pro repórter da Globo, que estava lá fazendo uma reportagem  para  o Jornal Nacional. Então pensava mais na gráfica nascendo, nos escritores… E nem dei atenção pro meu  livro  que  estava  sendo lançado. A minha alegria foi maior por estar colocando a gráfica de pé e não de estar tirando meu livro da gaveta”, comemora.

Enquanto  aprendia  sobre  o  funcionamento  de  uma  editora,  PC  descobria  as lacunas presentes no mercado editorial. Um dos fatos que ele descobriu foi que, no Brasil, os jovens não publicam livros a menos que eles sejam famosos. São consideradas jovens as pessoas que têm entre 18 a 29 anos. Os jovens ficam fora do mercado editorial, porque não geram retorno financeiro para as editoras. Mas na Gráfica Heliópolis, todos os autores têm a oportunidade de publicar suas obras, pois ela foi criada com o objetivo de atender aos escritores da Comunidade Heliópolis. “Nós publicamos com personagens de todos os tipos, desde mulheres da periferia… A protagonista do meu livro, por exemplo, é uma mulher que é prostituta. Queremos dar voz para as pessoas da periferia, pois você vê que isso muda todo o sistema dentro da indústria do livro, a classe mais baixa começa a ter uma representatividade maior por conta desses personagens. Na gráfica, eu tenho dois livros em que a personagem principal é uma travesti e as autoras são travestis, isso muda tudo”.

Dentre os livros que ficaram marcados na memória de PC, por conta de ter feito com que ele pudesse fazer uma reflexão acerca do tema representatividade, estão os livros: Amor erevolta, de Júlia Bueno e RitmodaMargem, de Marcela Trava, ambos escritos por duas travestis, um universo que PC diz não ter um profundo conhecimento.  “Tenho bastante carinho por todos os livros que foram publicados pela gráfica, mas quando eu falo que eles me marcaram foi porque ou me trouxeram alguma informação que eu não tive acesso antes ou que eu tive o acesso, mas que na época eu não tinha compreendido… Quando eu li, eles sacudiram a minha cabeça e mudaram meu ponto de vista. Quando eu li, me emocionei”. Outro livro que PC considera que transformou seu olhar foi a obra Cabelo enroladinho, pele pretinha, cadê minha bonequinha? Escrito por Juliana Roschel da Silva, o livro conta a história de uma garotinha negra, que após sua professora ter pedido para os alunos levarem para a escola um brinquedo que os representasse, vai em busca de uma boneca que se pareça com ela.

Com o tempo, PC foi enfrentando algumas dificuldades com a gráfica. Além de ter sido atacado por editores e escritores por estar mudando o sistema do mercado,  ele também já precisou conversar com maridos de mulheres que publicaram na gráfica, chegou a ir até a casa desses homens para pedir que eles deixassem as esposas terem suas obras publicadas. Além disso, houve momentos em que PC encontrava alguns talentos no Sarau ou no Slam do Helipa, projetos criados pela própria gráfica para que os escritores recitassem seus poemas, e tentava conversar com essas pessoas, pois havia gostado do trabalho delas, entretanto, durante a conversa ele perguntava se a pessoa tinha alguma obra publicada e ela dizia que não, pois não se considerava escritora. Então PC tentava convencer esses autores de que eles eram sim escritores: “A pessoa falava que não se considerava escritora, porque nenhuma editora publicaria o livro dela. E eu falava que escritor é quem escreve, porque a pessoa tinha um trabalho maravilhoso. Isso aconteceu várias  vezes  e  tinha  pessoas  que  eu  não conseguia convencer”.

Além das dificuldades vistas e enfrentadas por PC, os autores da periferia passam por outros problemas, que, para o idealizador da Gráfica Editora Heliópolis, são estruturais. “Parece  que não,  mas a maioria das dificuldades  que eles sofrem  são  estruturais. Relacionadas ao social e ao racismo. Nem todo mundo conseguiu ter  acesso  à educação, principalmente as pessoas da minha idade, porque teve uma hora que a pessoa teve de parar de estudar pra trabalhar… E aí se a pessoa escreve ‘a gente vamos’ a frase está errada, mas não significa que o conteúdo não é bom. Isso é um fator. Tem  pessoas  que  escrevem  errado…  Aí  às  vezes  a  pessoa  tem  um  próprio preconceito, ela acaba julgando o trabalho dela como um trabalho feio”.

Para tentar quebrar esse preconceito, PC mostrava para os autores que o trabalho do escritor é passar o conteúdo que está na cabeça para o papel e que quem corrige é o revisor, além disso, ele também apresentava o trabalho da escritora  mineira Carolina Maria de Jesus, que viveu boa parte da sua vida na Favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo. É por esse motivo que não há uma seleção muito rígida das obras  que  serão  publicadas  na  Gráfica Heliópolis. Contudo, vale lembrar que, enquanto converso com PC, a seleção está parada por conta da pandemia do novo coronavírus. Antes da pandemia, ela estava passando por uma fase de transição, que  foi interrompida. A gráfica estava saindo da primeira fase do projeto, em que havia uma restrição maior para os escritores publicarem suas obras (era necessário morar ou ter alguma relação com Heliópolis, por exemplo) para ir pra segunda fase, em que as exigências aos escritores serão diminuídas. Então, enquanto a minha entrevista com PC acontece, a equipe está focada no trabalho social.

Em um certo momento, nossa conversa é interrompida. Um homem solicita algo a PC. Ele me pede licença e vai conversar com a pessoa que o chamou. A interrupção dura poucos minutos. Ele volta e me pede desculpas. A pessoa havia pedido uma cesta básica, pois a casa de escritor acabou virando uma espécie de Centro de Distribuição para oferecer ajuda aos moradores da região.

A gráfica criada por ele está localizada no CEU Heliópolis e o local está fechado devido ao isolamento social imposto. “Eu não posso levar ninguém lá dentro nem produzir livros lá. As atividades foram 100% interrompidas por conta da pandemia. Nesse momento, a única ferramenta que está sendo realizada é um podcastcomo Serviço Social do Comércio (SESC), um programa de rádio com os poemas dos escritores da gráfica e ele divulga pelo caminhão de som. E como o SESC está pagando, isso acaba gerando renda para os escritores”, explica.

Além da parceria com o SESC, outras colaborações que ajudaram no desenvolver do projeto da gráfica são com o Itaú Cultural e a empresa Ecoquality. Para PC, essas parcerias o ajudaram a realizar um dos seus maiores sonhos: “Eu acho que meu sonho é  tentar  ter  mais  sabedoria  e  mais  conhecimento  para  facilitar  as  pessoas  de realizarem o sonho delas”.

***

Também tenho um sonho
O sonho de Luther King
Não é e nem foi só dele
É os nossos também.

(Também tenho um sonho Paulo Rams)

“Um sonho? Ver, culturalmente, a população exigindo os seus direitos e sabendo os  seus deveres. Ter um povo alfabetizado  de  forma que a  gente  não  tenha preocupação com o analfabetismo. Para mim, existe um projeto de governo para a população ser assim, infelizmente. Meu  sonho é que todos tenham mais acesso à cultura e à educação e questionem mais o poder público”. Paulo Sérgio Rodrigues, mais conhecido como Paulo Rams, é escritor, poeta, ativista e criador do Coletivo Perifatividade.  No  final  da  tarde  de  uma  segunda-feira,  durante  uma  conversa  pelo WhatsApp, ele me fala sobre seu trabalho e sua vida pessoal e é assertivo ao abordar seus maiores sonhos e inspirações.

Paulo foi um dos primeiros escritores a ter suas obras publicadas na Editora Gráfica Heliópolis, de PC Marciano. Pouco tempo após a inauguração do projeto, ele teve seu livro Meucantoem83poemas, que havia sido deixado na gaveta durante  muitos anos,  publicado  pela  editora.  O  escritor  demonstra  bastante  gratidão ao trabalho realizado pela gráfica, dizendo que se não fosse pelo projeto desenvolvido pelo seu xará, seu livro talvez nunca teria sido lançado. A obra publicada por Paulo é dividida em três  partes  e  contém  poemas  de  reivindicações,  lutas;  alguns  poemas  mais sentimentais  e outros  relacionados  à  espiritualidade.  São  83 textos que foram escritos durante mais de 15 anos, por isso o título da obra.

Como escritor, antes de ter publicado seu livro, Paulo postava seus poemas em  um  blog  que  teve  início  em  2010,  pouco  antes  da  criação  do  Coletivo Perifatividade. Nesse período, o poeta estava no primeiro semestre do curso de licenciatura em História pela Universidade Nove de Julho (Uninove), então a página surgiu, para suprir a necessidade de expor seus textos em alguma plataforma digital. Ele publicou nesse local durante cinco anos, até julho de 2015. O último poema foi Gramado verde da Esplanada, que o autor tem um pouco de dificuldade de lembrar, mas que escreveu enquanto militava contra a redução da maioridade penal, durante a votação desse projeto na Câmara dos Deputados.

Em 2010, enquanto o blog ainda estava em sua fase inicial, surgia o Coletivo Perifa tividade, com o objetivo de ocupar e articular novos espaços culturais na “quebrada”, nos bairros Parque Bristol, Jardim São Savério, Vila Livieiro, Jardim Clímax, Vila Moraes,  Jardim  Maristela,  Boqueirão  e  até  Heliópolis,  pois  nessa região existem poucos espaços culturais, como a Casa de Cultura no Ipiranga.

O espaço, que ficava localizado na rua Abagiba, 431, foi o ambiente de surgimento do Coletivo Perifatividade em meados de 2010, após se reunir para realizar atividades culturais,  como  roda  de  violão,  roda  de  forró  com  zabumba,  triângulo,  poesia, intervenções de malabares circenses e batalhas de rap. O grupo, mesmo durante a pandemia,  continua  em  atividade  produzindo lives com  pautas relacionadas  à violação dos direitos humanos.

Um dia antes da minha conversa com o idealizador do projeto, o coletivo havia realizado uma transmissão ao vivo para falar sobre a poesia negra. O sarau virtual contou com a presença de Abelardo Rodrigues, um dos coautores das antologias dos  cadernos  negros,  que  reúne  inúmeros  autores  e  autoras que  atuam  em diversos estados do Brasil. Atualmente, ele é uma referência para poesia marginal periférica e negra. Para Paulo, “todos os temas são vistos da necessidade orgânica de ter que falar. Precisamos falar sobre as violações dos direitos humanos, como racismo, homofobia, xenofobia e machismo. Então, a gente traz isso para o nosso sarau, não perdendo a linha da manifestação poética e da música”. Nas lives, o Coletivo também já abordou questões como a saúde pública na periferia durante a pandemia.

Em 10 anos de projeto, o grupo já obteve grandes conquistas. Paulo Rams recorda, com muita felicidade, de dois momentos que foram marcantes para o coletivo, como uma  viagem  para  Buenos  Aires.  Na  capital  argentina,  os  integrantes  do  grupo “invadiram” a FeiradelLibroInternacionaldeBuenosAires, onde eles passaram uma semana lançando seus livros e declamando suas poesias em uma das tendas.

Ele lembra, com gratidão, que a viagem foi uma iniciativa da gestão de Fernando Haddad (2013-2016), em que a cidade de São Paulo foi convidada e homenageada pela Feira del Libro. Assim, foram para o país os grupos e coletivos culturais que fizeram história na literatura recente da cidade de São Paulo.

O  segundo  momento  mais  marcante  para  o  Coletivo  foi  quando  o  grupo  foi contemplado pela Lei de Fomento à Periferia. Paulo recorda que, a partir dessa lei, o projeto conseguiu ter uma sede, em 2017. O espaço foi alugado no Parque Bristol e tinha oficinas culturais como grafite, dança do ventre e artes marciais voltadas para as mulheres e formação em direitos humanos. Paulo recorda, com tristeza, o momento em que essas atividades chegaram ao fim. “Infelizmente, a gente não deu continuidade por conta da falta de recursos mesmo e o projeto acabou. Durou apenas dois anos e o aluguel do espaço era caro”.

Além dos momentos de glória, o Coletivo também passou por tempos de dificuldades financeiras, mas Paulo relata outros tipos de  obstáculos que  quem mora na periferia conhece muito bem: “Também tem a dificuldade que a gente encontra  com  a  violência policial,  né?  Com  as  questões  que  a  gente  vê  que  toda periferia tem e a gente não pode ser conivente com isso. Muitas das pessoas que frequentam ou conhecem o sarau acabam  sofrendo  muita  opressão  pela  polícia.  E é a gente como um todo, né? Isso é algo generalizado e em todo coletivo de periferia tem essa questão”.

Apesar dos momentos difíceis que já passou com o Coletivo, para Paulo, uma atitude que atinge não apenas o grupo, mas também todas as outras áreas da sua vida pessoal, é a força para não desistir. Para se manter motivado diante das diversas dificuldades que entram em seu caminho, o escritor conta com o apoio  da esposa, Ana Fonseca, com quem é casado desde março de 2015. “Ela está nessa empreitada do Coletivo Perifatividade e, além de ser minha companheira, é a minha parceira. Se não fosse ela, eu já teria desistido disso tudo. Acho que ela me dá muita força”, diz, emocionado.

Além do apoio da esposa, Paulo também se mostra muito grato ao amigo PC Marciano, que o motivou a não desistir de seu livro e continuar mostrando a importância da literatura na periferia. “A importância da literatura na periferia ocorre por meio da riqueza do que muitos dos nossos autores e autoras periféricas têm muito a contar, muito a escrever e muito a expor no mundo”.

***

Eu digo convicto e certo
Que ler é libertador
Lendo temos repertório
Contra qualquer ditador.

(Uma quadra para os livros Fagner Araújo)

Umaquadraparaoslivros chama a minha atenção durante minha pesquisa para saber mais sobre Fagner Araújo, enquanto planejo a pauta para a entrevista com o autor. O piauiense, que é escritor e professor de Língua Portuguesa, tem uma página do seu livro com esse poema em um post publicado em seu Instagram.

Além de professor e escritor, Fagner também é músico, poeta, fotógrafo, artesão e tem uma conta no YouTube, em que fala sobre assuntos relacionados à arte, literatura, língua portuguesa, música e o Nordeste. O autor, assim como Paulo Rams, publicou seu primeiro livro, pela Gráfica Editora Heliópolis, de PC Marciano. Durante uma conversa, ele me falou sobre sua obra, suas opiniões sobre arte e literatura e suas inspirações para escrever.

A ideia para o nome do livro Não diga que digo verdade surgiu quando Fagner já tinha terminado de escrever todos os poemas e o livro ainda precisava de um título. O poeta, então, começou a reler os textos que escreveu em busca de algum verso que poderia servir, quando encontrou o poema Mensagem ao ser indeciso “Esse verso me chamou atenção, pois todos os meus textos são um tipo de verdade pra mim e pra muitos que se reconhecem, mas, ao mesmo tempo, eu não quis ser o ‘dono da verdade’. Por isso, eu escolhi batizar o livro com esse título. Além disso, eu queria um nome que o leitor pudesse encontrá-lo dentro do livro, como um tipo de desafio”, relata o escritor.

Antes de Não diga que digo verdades, Fagner nunca havia pensado em escrever e publicar algum livro. “Eu só comecei a pensar na possibilidade de produzir um livro, durante a faculdade, quando ingressei no curso de Letras e tive maior acesso às obras clássicas brasileiras, conheci a fundo os autores e explorei amplamente o universo literário. Comecei a sentir que teria muito a contar:  poemas, contos, crônicas  e histórias. A primeira ideia não era escrever um livro de poemas”.

Até então, o autor pensava em publicar um romance. Ele até chegou a planejar a publicação, mas não conseguiu terminar de compor a obra. Começou então a produzir um livro de contos, que ele revela, com bastante alegria, já estar pronto e prestes a ser lançado.

Ele lembra, com carinho, de como ocorreu o processo de criação de Não diga que digo verdades: “E aí veio o convite da Gráfica e Editora Heliópolis para lançar algo pequeno e rápido de produzir. Comecei então a fazer os poemas. Demorei apenas dois meses para escrevê-los e publicar a obra. Agora estou investindo no livro de contos, que está em fase de revisão textual”.

Para produzir o compilado poético, o autor que tem como referência escritores clássicos e contemporâneos da literatura brasileira, além de escritores internacionais, se inspirou na própria vida, no cotidiano e nos acontecimentos que o cercam, como notícias, fatos, personalidades, escândalos, o Brasil, as matas, e o Nordeste. Além disso, ele também teve como inspiração a própria arte: música, teatro, pintura e fotografia, e não teve uma pessoa específica que o inspirasse para os poemas.

Pergunto a ele qual a relação entre esses assuntos e ele afirma, brevemente, que todos estão  relacionados  à  arte.  No  canal  do  YouTube,  ele procura  falar  da  língua portuguesa (com aulas de gramática e redação) e também de literatura vinculada às artes-irmãs, como a música, teatro etc., pois acredita que isso fortalece tanto o ensino da Gramática quanto da Literatura. Ele também comenta sobre suas raízes: “E  como  sou  nordestino,  piauiense  com  orgulho,  aproveito  para  focar  mais  na literatura, na música e na arte nordestina”.

Um dos seus maiores sonhos é conseguir incentivar, cada vez mais, a literatura no Brasil. Para ele, “só a leitura, a apreciação da arte, do consumo e a vivência da cultura vão dar repertório para que a gente consiga entender a sociedade e partir para uma resolução dos nossos problemas”.

De acordo com Fagner, o incentivo na produção e no consumo da literatura na periferia não é algo difícil de alcançar, pois a palavra periferia já rima com poesia. “O  incentivo  ao  consumo  e  a  produção desse  gênero  literário  na  periferia não é difícil, a poesia já existe lá naturalmente. E a sua principal vertente poética é o rap”. Ele ainda fala sobre suas experiências como professor e sua busca por fomentar a leitura   na   periferia:  “Eu  não  precisei  de  muito  esforço,  bastou  um  incentivo  à apreciação poética, à leitura e interpretação de poemas, à apresentação de autores da periferia (como o poeta Sérgio Vaz), mostrei que todos os temas presentes na realidade dos alunos podem ser inspiração para se fazer um poema.  Apresentei também a modalidade do  cordel, que é muito  divertida  de  ler e de fazer, pois há muitos nordestinos na periferia e  pronto!”, revela o professor e  escritor  que  diz verdades em forma de literatura na e para a periferia.

***

Mas cuidado!
O “ toma lá dá cá” é “bicho solto”
Não larga o osso.
Se encontrar na viela,
É mais uma morte na favela.

(Cuidado – Jacson Domingos)

Violência  policial e  condição  das  mulheres  e  das  crianças  da  periferia são algumas  verdades  abordadas  no  livro  Divagações do terceiro mundo, escrito pelo poeta, escritor e futuro sociólogo Jacson Domingos. Jacson me conta, por meio de uma conversa via WhatsApp, que foi ganhador de diversos concursos realizados pela Editora Gráfica Heliópolis, onde publicou seu livro em agosto de 2019.

Em Divagações do terceiro mundo, Jacson traz situações que as pessoas que moram nas periferias já conhecem e que ele mesmo já vivenciou. No poema Cuidado, que tem uma característica do autor de misturar o erudito e o marginal, ele retrata uma situação que já passou. Atualmente o escritor tem 33 anos, mas na época tinha 24. “Quando o escrevi, morava no centro de São Paulo, na baixada do Glicério, uma periferia no centro, e não apenas sofri com isso, mas vi outras pessoas sofrerem. Não é uma questão apenas de periferia, mas de racismo, segregação social, vigiar e punir, como diria o filósofo francês Michel Foucault”.

Morar em uma periferia no centro é apenas uma das dificuldades que ele já passou em sua vida. O escritor e poeta recorda, com tristeza, de uma de suas piores lembranças.

Ele estava cursando Sociologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, após ter recebido uma bolsa integral durante seis semestres (três anos). Como a bolsa só contemplava esses seis semestres, ele precisou trancar a matrícula durante o 4º ano, por conta do alto valor das mensalidades.

Apesar disso, a bagagem que Jacson adquiriu enquanto cursava Sociologia serviu de  inspiração  para  sua  obra,  pois  ela  também  traz  diversos  conceitos  sociológicos. “Divagações é como se fossem reflexões sobre a sociedade e sobre minha existência, o ‘terceiro   mundo’   vem   de   meus   estudos   sobre   o   Brasil   e   seus   problemas socioeconômicos. Mas, isso não quer dizer que a obra seja de críticas sociais, apenas”.

O autor considerou que a sua obra deveria ser registrada na Biblioteca Nacional, pois isso seria necessário para zelar por seu  trabalho e ter seu direito sobre ele. “O processo foi simples, apenas organizei os poemas em um livro, paguei a taxa e levei até a Fundação Nacional das Artes (Funarte). Em março de 2019, recebi meu certificado do registro sem nenhum texto cortado. Esse registro é importante para evitar plágio”. Pergunto a Jacson se os autores da periferia  correm  mais  riscos  de  perder  seus direitos  autorais.  A  resposta  é  breve e categórica: “Claro que correm, eles não registram. No meu caso, foi algo bem normal por causa da faculdade. Mas conheço autores e autoras que têm livros publicados e sem registro”.

Para o escritor, essa falta do registro ocorre porque existe um mito do poeta/escritor marginal. “No meu ponto de vista, tudo é literatura, mas de umas décadas pra cá, houve uma  disseminação  da  ideia  de  a  literatura  marginal  ser  algo  periférico. Entretanto, já havia poetas marginais da classe média nos anos 1970 como Paulo Leminski e Ana Cristina César, que viam na poesia marginal uma forma de trabalhar a estética do texto”.

Por isso, Jacson acredita  que a realização de ações de fomento à literatura sempre será importante, pois considera a inclusão social como o fator mais importante em todos os projetos. Além das ações referentes ao consumo, o autor  acredita que há diversas dificuldades na produção de conteúdo voltado às periferias. “Além  do  difícil  acesso  às editoras  para  a  publicação,  temos  problemas  com a ausência da leitura que dificulta a venda nas quebradas. Com o zine, pude ver isso mais de perto. Em um momento mais crítico, financeiramente, tive de vender  apenas em lugares específicos como a Avenida Paulista, o Largo da Batata, o Centro Cultural Vergueiro e em algumas estações. Por isso tem  que  haver  mais  projetos  nas  quebradas, sem  tais  fomentos,  nós  temos  que procurar um público- alvo para ter leitores”.

Para Jacson, a raiz desse problema é histórica e está relacionada a fatores socioeconômicos: “são mais de 500 anos de desigualdade social. Mas hoje, ao meu ver, ficou pior, pois vivemos na era das redes sociais e da banalização da vida”.

De acordo com o escritor, outro problema que o autor da periferia sofre está relacionado ao machismo: “Meus textos sobre a condição das mulheres, por exemplo, não ganham o público periférico pelo alto grau de machismo imposto nas quebradas. O poema ‘Às mulheres’ é um deles”. Em Divagações do terceiro mundo, Jacson também fala sobre as condições das mulheres da periferia. No livro, há o poema Ausência de Maria, em que o autor fala sobre as nuances que impedem a mulher da quebrada ir a um protesto.

Ainda falando sobre as mulheres da periferia, Jacson lembra, com carinho, que se inspirou em sua mãe para escrever esses poemas. Além disso, em sua obra, ele também aborda o alcoolismo, problema que seu pai sofreu e que atingiu toda a família.

***

Seu Manoel veio dizendo que o campo de futebol local não estava aberto para as pessoas e que Jamile deveria sair, porém teimosa como sempre, disse que estava ali para jogar e que jogava muito bem. Ele riu e disse que futebol não era para mulheres e sim para homens, ela já irritada falou que na TV havia mulheres jogando e que viu várias partidas e que gostaria de mostrar como sabe jogar. De tanto insistir, aquele senhor finalmente esboçou um sorriso e a deixou participar da partida. Manoel não sabia quem ela era e pensou que no primeiro lance desistiria.

(A princesa de cabelo enrolado e sua bola de futebol – Edna Lima)

A inspiração para o livro Aprincesa de cabelo enrolado e sua bola de futebol, de Edna Lima, surgiu a partir de um trabalho realizado por ela com seus alunos de Educação Infantil (de 2 a 4 anos) sobre a CopadoMundode2018. O olhar de uma de suas alunas incentivou a criação da obra. Edna então começou a organizar seus pensamentos e a colocar as ideias no papel. Assim que terminou o conto, mostrou a obra para sua coordenadora  e,  após  isso,  notou  que  a  obra  abria  uma  infinidade  de possibilidades.

A educadora, que morou em Heliópolis, onde foi voluntária na área da educação durante a adolescência, só descobriu recentemente sua vocação como escritora e o lançamento de sua obra foi um momento mágico em sua vida: “Nem acreditei que  seria  possível  chegar nesse  mundo, pensava que  ser  um  escritor  era  algo magnífico, fora do meu alcance”.

Ela ainda lembra que o conto ficou guardado durante um ano, por conta das inúmeras dificuldades que um autor tem para publicar um livro. Certo dia, Edna viu uma reportagem sobre o projeto proposto pela Gráfica Heliópolis e procurou informações sobre o assunto. Para as ilustrações do livro, PC indicou à Edna uma profissional, pois a autora não conhecia ninguém do ramo e, além disso, com outros profissionais, o trabalho acabaria ficando mais caro e a escritora não teria condições financeiras para pagar.

Edna já vendeu aproximadamente 100 cópias de seu livro e conta as dificuldades com a  venda  da  obra:  “Bom,  somos  escritores  pequenos  e  independentes,  é um empecilho não ter essa força nas lojas ou grandes sites. Então a editora, às vezes, nos  chama  para  algum  evento  e  também  uso  as  redes  sociais.  Na  época  do lançamento, fiz uma parceria com uma escola de idiomas que me ajudou muito. Sempre que posso, divulgo, mesmo na pandemia eu vendi alguns exemplares. Tenho  um projeto  de  apresentar  nas  escolas  de  futebol,  mas,  por  enquanto,  só  está no pensamento”, analisa.

A representatividade que a obra tem é um dos maiores orgulhos de Edna. A autora conta, com alegria, os relatos de crianças na faixa de 7 a 10 anos que estão se identificando com a Jamile, e têm visto a personagem como se ela fosse uma amiguinha que os incentivasse a lutar ou tomar decisões, principalmente no caso de  meninas  que  desejam  jogar  futebol.  “Jamile  simboliza  as  meninas  com personalidade forte e que não desistem dos sonhos, não se prendem a status ou preconceitos. Não se deixam levar por opiniões alheias como fonte de decisão de suas escolhas. E levam a vida com alegria, livre e com amigos sem rótulos”, diz a autora.

Crédito das fotos: Adobe Stock
Capítulo do livro-reportagem: A Vivacidade da Perifa, TCC de 2020

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