Desdobramentos do caso

publicado na Ed_06_jan/mar.2018 por

Depois de a imprensa “sair de cima” do caso e de a breve história da perseguição ter sido veiculada nos principais jornais do Brasil, restou ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) se encarregar das investigações, da reprodução simulada dos fatos, da perícia e dos inúmeros laudos. Por causa da pressão do Ministério Público, do Condepe, da imprensa e com a insatisfação de parte da sociedade, tudo foi feito sem muita demora. O primeiro laudo do caso foi divulgado em 9 de junho de 2016, e a reconstituição da morte de Ítalo ocorreria no dia 19 de junho.

Em seu primeiro depoimento, J. alegou que Ítalo estava armado e que havia trocado tiros com a polícia. No dia seguinte ao crime, porém, ele mudou a versão ao ser ouvido pela delegada do DHPP, Ana Paula Rodrigues, responsável pelo caso, acompanhada de uma psicóloga. Até hoje, J. apresentou três versões diferentes sobre o ocorrido: primeiro, disse que Ítalo estava armado, depois afirmou que não estava e, em seu último depoimento, relatou que o amigo estava armado, sim, mas que não havia atirado contra a viatura.

Os tiros que supostamente teriam sido disparados pelo revólver atribuído a Ítalo exigiriam um grande esforço do menino. Para atirar nos moldes como disseram os policiais, Ítalo teria de trocar a arma de mãos – já que a perícia encontrou vestígios de pólvora em suas duas mãos –, enquanto dirigia um veículo do tipo trail, o qual, segundo o Ministério Público, o proprietário do carro alegou ser pesado e de difícil dirigibilidade. Ítalo ainda teria que, dirigindo, abrir e fechar o vidro da janela do motorista. Ítalo tinha 10 anos, 1,43 metro e 39 quilos.

Logo após a batida do veículo dirigido por Ítalo e do disparo fatal feito pelo policial militar Otávio de Marqui, a primeira irregularidade surge durante a investigação: os policiais envolvidos na ação alteraram a cena do crime e retiraram a arma do local – atitude expressamente condenada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

O laudo nº 276.964/2016 da Polícia Técnico-Científica mostra o resultado: “Negativo para pesquisa de micropartículas produzidas por disparos de arma de fogo no interior do veículo”. Ou seja, não houve disparo de dentro para fora do veículo – apenas de fora para dentro.

Segundo o laudo, o exame visa “identificar a presença de micropartículas ou microvestígios produzidos após a realização de disparo de arma de fogo, provenientes da massa inicializadora (espoleta), principalmente Antimônio (Sb), Bário (Ba) e Chumbo (Pb). Quando da ação de disparos de arma de fogo, estas micropartículas podem ficar aderidas na pele da mão do atirador e regiões adjacentes ao mesmo (objetos)”. Se Ítalo atirou através da janela do motorista, vestígios de pólvora possivelmente ficariam na porta do veículo, no volante e em partes do teto.

Ainda no laudo, a Superintendência da Polícia Técnico-Científica destaca: “A ação de tirar a arma de fogo, instrumento do crime de agressão aos policiais militares, contraria a Resolução SSP-382, de 01/09/99, ‘SEÇÃO I, Da Polícia Militar, Artigo 1º – O policial militar ao atender um local de crime deverá isolar e preservar adequadamente a área imediata e, se possível, a mediata, cuidando para que não ocorram, salvos os casos previstos em lei, modificações por sua própria iniciativa, (…); Artigo 5º, Deverão ser adotadas as seguintes normas, sob pena de responsabilidade: (…) II – preservar o local, não lhe alterando a forma em nenhuma hipótese, incluindo-se nisso: a) não mexer em absolutamente nada que componha a cena do crime, em especial não retirando, colocando, ou modificando a posição do que quer que seja; (…) d) não mexer nos instrumentos do crime, principalmente armas’”. Segundo o laudo do perito, a ação dos policiais ao alterarem a cena do crime “dificultou a interpretação da dinâmica dos fatos finais, em virtude da alteração do estado das coisas”.

Em depoimento, os policiais alegaram que três disparos haviam partido de dentro do veículo contra a viatura. Um dos policiais envolvidos na perseguição afirmou, em um primeiro momento, ouvir um disparo vindo do carro. Durante outro depoimento, o mesmo policial afirmou ter visto “um clarão”. A defesa diz que não há contradição no depoimento. “Se houve clarão é porque houve tiro e, se houve tiro, houve clarão”, disse o advogado do policial militar Marcos Rogério Manteiga.

Ítalo vestia uma luva em uma das mãos – que, segundo o laudo, não continha vestígios de pólvora –, porém suas duas mãos tinham vestígio de pólvora. Teriam os policiais “plantado” a arma e forjado a cena do crime para justificar a morte de uma criança? Era o que a família de Ítalo alegava em matérias de jornal publicadas à época. Segundo eles, no Morro do Piolho, ou em qualquer outra favela, ninguém jamais colocaria uma arma nas mãos de uma criança.

Já o amigo de Ítalo que sobreviveu, testemunha ocular de todo o ocorrido, teria sido intimidado pelos PMs. Dias após o crime, surgiu nas redes sociais um inusitado vídeo de J, de 11 anos, minutos depois da morte do amigo, respondendo a perguntas supostamente feitas por um dos policiais militares envolvidos no caso. A defesa deles nega participação na gravação. Segundo o advogado, o vídeo foi feito por um desconhecido que passava no local. O Ministério Público do Estado de São Paulo afirma que os policiais militares “rodaram” com J. dentro da viatura por cerca de quatro horas antes de chegar a sua casa e comunicar à mãe de J. sobre o ocorrido. O Conselho Tutelar alegou que não compareceu ao DHPP porque a mãe de J. já estava com o filho no local.

No dia da reconstituição da morte de Ítalo, mais de 30 moradores do bairro onde aconteceu o episódio participaram de um ato em apoio aos policiais militares envolvidos na perseguição. Homens e mulheres se aglomeraram nas imediações da rua José Ramon Urtiza, na Vila Andrade, para prestar solidariedade aos policiais, mesmo com o frio daquele 19 de junho de 2016. Um vídeo divulgado pelo site do jornal Folha de S. Paulo mostra os moradores da região gritando “Polícia, polícia, polícia”, enquanto os peritos da Polícia Técnico-Científica, autoridades da Polícia Civil e os policiais envolvidos na ação participavam da reconstrução da cena.

Dadas as incongruências e contradições do caso, e após o DHPP concluir que os seis policiais militares agiram em legítima defesa e não indiciá-los, o Ministério Público pediu 23 novas diligências do caso no dia 20 de março de 2017.

Nessa nova investigação, o promotor Fernando Bolque, do 1º Tribunal do Júri, quer que o DHPP inclua no inquérito o hard copy da viatura, onde as conversas ficam armazenadas, nova oitiva de J., dos policiais envolvidos no caso, do delegado do 89º DP (onde o caso foi reportado de início), esclarecimentos quanto a retirada da arma do local do crime, novos laudos da perícia, como fotomontagem da cena do crime, entre outros pontos que, segundo o MP, ficaram “inconsistentes”. O Caso Ítalo continuava em andamento durante o mês outubro de 2017 – um ano e quatro meses depois da morte de Ítalo.

A defesa dos PMs

O advogado Marcos Rogério Manteiga nega que seus clientes – os seis policiais envolvidos na ocorrência – tenham propositadamente alterado a cena do crime. De acordo com ele, não havia outra maneira de agir. Havia uma criança no banco traseiro que parecia estar em estado de choque e, devido ao horário do fato, em pouco tempo muitas pessoas haviam se aglomerado no local.

Otávio de Marqui, policial da Rocam que disparara contra o vidro do Daihatsu e matara Ítalo, ficou atônito ao descobrir que havia acabado de atirar em uma criança. Sem reação diante do carro, a primeira imagem que veio à sua cabeça foi a de seu filho, relatou o advogado.

Sentado atrás de uma mesa grande de madeira em um amplo escritório, Manteiga admite ter feito seu nome entre os policiais militares. Ele não atua exclusivamente para policiais, mas afirma que é bastante procurado e querido nesse meio. Segundo ele, sua paixão sempre será a matéria, a lei, nunca o envolvido. “Assim como um médico, que deve aplicar o que sabe para salvar um paciente, não importa quem seja aquele paciente”, disse, olhando para uma parede de seu escritório repleta de diplomas, certificados e premiações.

No canto da mesa, uma placa preta e dourada indica: “Consulta R$ 620,00”. Antes de falar sobre o caso, Manteiga atendia um de seus clientes, um integrante da Guarda Civil Metropolitana (GCM) que estava lá para saber sobre a situação de um amigo, também guarda. Afastado de suas funções, o guarda civil amigo do homem recebido por Manteiga estava com sérios transtornos psicológicos, segundo o advogado. Fora de suas funções, o oficial andava apontando a arma da corporação para moradores do condomínio onde residia. Mais de 10 moradores confirmaram seus abusos dentro do prédio. Segundo a conversa, que se deu a portas abertas, o guarda mandava dezenas de áudios e vídeos sem sentido para Manteiga. “Isso é absurdo, eu também tenho vida social. Ele me manda áudios e vídeos de coisas sem o menor sentido”, dizia o advogado ao guarda, numa mistura de pena e revolta.

Ao ser interrompido por um telefonema de outro policial, Manteiga foi curto e grosso: “Estou no meio de um atendimento, não podemos conversar agora (…) Sim, depois vemos isso, por favor… Estou vendo um caso de um irmão de farda seu. Depois a gente conversa, tá?! Meu querido, depois a gente vê isso, estou no meio de um atendimento de um irmão de farda seu”. Desliga o aparelho.

Ao longo da entrevista, Manteiga revela que um dos seus sonhos era ser delegado de polícia. Mas foi desaconselhado por amigos íntimos e profissionais do meio devido a sua postura considerada explosiva. Daí então partiu para o Direito, e atualmente cursa pós em Direito Militar, visando a se especializar ainda mais em seu principal nicho de clientes: os militares e policiais militares.

Há mais de 12 anos instalado na rua 12 de outubro, na Lapa, Zona Oeste de São Paulo, Manteiga é o tipo advogado que não corre de briga e se orgulha dos casos que defendeu com a faca nos dentes. De acordo com ele, um homem covarde não pode ser advogado. Durante a conversa, Manteiga esclareceu todos os pontos da investigação sem olhar em laudos ou abrir arquivos. Ele defendeu a postura de seus clientes na data do fato com a costumeira eloquência dos advogados. “Um policial com 30 anos de farda faria a mesma coisa. Não era possível saber que se tratava de uma criança ao volante. Se fosse um adulto, o tiro pegaria no ombro”, disse. Para ele, o caso está esclarecido e se encaminha para arquivamento até o fim do ano. Manteiga tem uma das notícias dadas sobre o caso emoldurada e pendurada na parede do escritório.

O advogado disse ser contra a redução da maioridade penal. “Há muito que mexer antes de falarmos em redução da maioridade penal”, afirmou. Ele também mostrou uma realidade pouco falada: as condições de trabalho de um policial militar do Estado de São Paulo.

Segundo Manteiga, a carreira de policial militar é uma das mais difíceis que existem. Um policial que comete alguma infração nas ruas responde sozinho a três tipos diferentes de processo: se ele desobedeceu a um Procedimento Operacional Padrão (POP), responderá a um Processo Disciplinar (PD), e, caso não consiga se justificar, será punido com exoneração. Há também o processo criminal pelos fatos ocorridos naquela ação e, além disso, um processo disciplinar definido pelo tempo de casa: o Processo Administrativo Exoneratório (PAE) é aplicado se ele estiver nos três anos de estágio probatório. Se o PM já for efetivado e tiver menos de 10 anos na corporação, responderá a um Processo Administrativo Disciplinar (PAD); se tiver mais de 10 anos e for praça, responderá a um Conselho Disciplinar (CD). Caso seja um oficial da PM, ele responderá a um Conselho de Justificativa (CJ). Todos esses processos são de cunho exoneratório.

Muitos policiais não possuem nenhum outro curso profissionalizante ou de ensino superior, e, caso sejam exonerados, acabam partindo para o ramo de segurança clandestina, atuando em boates, casas de shows, comércios etc. Uma empresa de segurança, por exemplo, não vai contratar um exonerado da PM, e ele também não poderá andar armado. Segundo Manteiga, alguns de seus clientes cursam Direito aos trancos e barrancos – uma forma de garantir uma profissão a longo prazo e conhecer a lei com profundidade. Mas são poucos os que concluem o curso em decorrência das constantes mudanças de horário de trabalho.

A categoria é dividida entre praças e oficiais e, segundo Manteiga, é raro um praça que começou como soldado se tornar um oficial da PM. “Coronel da PM jamais. Quando muito, ele se torna major”, disse. Dentro da categoria dos praças há os soldados, cabos, 3º, 2º e 1º sargentos e subtenentes, e os oficiais vão de tenentes até coronéis. Segundo ele, há muita discriminação nesse meio.

Entre praças e oficiais, há os que pertençam há outro viés da PM: os PMs bandidos. “Não podemos pensar que só porque o cara é PM ele é do bem, quer ajudar. É lógico que há uma parcela de bandidos no meio. Isso acontece em todas as profissões. Já vi casos de PM da Força Tática que explodia caixa eletrônico quando estava sem farda, ou seja, ladrão.”. Os problemas psicológicos também são uma constante na vida policial e, para Manteiga, não importa quanto tempo de farda o policial tenha, se houver uma “resistência”, ele terá que passar pelo tratamento psicológico oferecido pela Polícia Militar e será afastado das ruas. As controversas “resistências” – também conhecidas como “autos de resistências” – são as ocorrências onde os policiais alegam que mataram para se defender. A denominação surgiu pela primeira vez na ditadura militar (1964-1985) e, desde então, é adotada pela PM.

Em janeiro de 2016, quatro meses antes da morte de Ítalo, o Diário Oficial da União (DOU) publicou uma resolução da Polícia Federal e do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil que determina o fim das nomenclaturas “autos de resistências” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais no Brasil. Os termos genéricos para mortes provocadas por agentes do Estado passaram então a ser registrados como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. No boletim de ocorrência e na nota do Caso Ítalo à imprensa, apresentada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, consta a denominação “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”.

Dos seis policiais militares envolvidos na ação que resultou na morte de Ítalo, apenas Otávio de Marqui, autor do disparo, ainda presta serviços administrativos. Os outros cinco já cumprem suas funções normais na Polícia Militar. Marqui tem cinco anos de Polícia Militar, segundo seu advogado.

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Crédito da imagem: CC0 Creative Commons

Capítulo do livro:Caso Ítalo: o crime, a morte e as dúvidas

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