Quem quiser agora vai ter que pagar

publicado na Ed_06_jan/mar.2018 por

— Moço, já pode virar à esquerda e depois a terceira à direita.

— Tá bom.

— Se puder ir mais depressa, por favor. Estou com um pouco de pressa…

— Tudo bem.

Checou novamente o celular. Nenhuma mensagem, nenhuma ligação, nada. Coçou impaciente o pescoço e suspirou alto, tentando mostrar seu descontamento com a lentidão da viagem. As rodas do carro pareciam colar no asfalto enquanto o final da rua se alongava até o infinito, como se brincasse com ela. Precisava chegar o quanto antes, pois seu corpo e mente tinham urgência. Verificou o celular mais uma vez, apenas para constatar e reafirmar a falta de mensagens. Depois de uma longa espera, chegou ao local. Pagou o motorista e saiu apressada, indo em direção a porta da casa com passos obstinados. Tocou a campainha e, enquanto esperava, deu uma última olhada no espelho, arrumou o cabelo e limpou a maquiagem, que já começava a borrar no canto dos olhos por causa do suor. Esperou algum tempo até que um homem abriu a porta com ar sonolento. Assim que a viu o rosto de sono desapareceu, como se acordasse assustado. Ela foi entrando rapidamente, sem esperar o convite. Ele fechou a porta e, a partir de então, não tive acesso ao que acontecia no interior do lugar.

Ela saiu pela mesma porta algum tempo depois, dessa vez mais afobada do que em sua chegada. Quase corria na rua, dando passos muito mais largos do que suas pernas curtas podiam suportar. Estava em choque e parecia não se atentar aos eventos a sua volta. Assim permaneceu por algum tempo, andando sem direção para lugar algum, aos poucos diminuiu a velocidade até parar completamente. Percebeu então que precisava chamar um carro. Olhou angustiada para trás, espiando as tantas ruas pelas quais percorreu e decidiu morrer ali mesmo, estava fadada a viver aquilo desde a primeira violência sofrida. Esse foi o dia em que nasceu Branca. Nasceu em uma rua qualquer, de uma tarde qualquer, em uma São Paulo solitária e fria.

— Já que é pra transar, quem quiser transar comigo agora vai ter que pagar!

Quando era pequena, perguntava sobre tudo, pois adorava descobrir novidades. Gostava de estudar e tinha uma imaginação aguçada, desenhando os personagens de suas histórias preferidas e tagarelando pela casa. Ouvia sempre o pai dizer:

— Se quiser descobrir alguma coisa, é só perguntar para ela. Ô garota esperta!

Ela era, de fato, esperta. Sentia-se assim e gostava muito. Na infância da menina havia dois mundos diferentes: um onde era uma criança curiosa que podia descobrir um universo de novidades, e outro que gostaria de nunca ter descoberto. Ela esconde o rosto do agressor até hoje, mantendo-se em silêncio absoluto sobre seu algoz, mas foi violentada dos 7 aos 14 anos. O homem aproveitou-se do fato de ser adotada para ameaçá-la. Enquanto crescia, sua postura cada vez tornava-se mais agressiva quanto aos abusador e, ao longo dos anos, tentou intimidá-lo dizendo que o denunciaria à polícia. Quando ela se rebelava, os abusos diminuiam e davam lugar a ameaças, mas logo voltavam brutalmente. Conforme tornava-se mais frequente, ela começou a se punir cortando e beliscando o corpo, mas mesmo assim nada mudava e sentia um enorme nojo de si. A situação perdurou até seus 14 anos, mas ainda hoje convive com seu agressor e com as marcas que deixou em seu passado. Para ela, sua infância foi roubada e destruída. Aquilo a desfigurou por muitos anos e contribuiu significativamente para sua personalidade.

Na adolescência, começou a descobrir em seu corpo, que tanto a aprisionava, um instrumento de prazer e aquilo a perturbava de maneira enlouquecedora. Sentia uma necessidade muito grande de si mesma e esperava aflita um momento de sossego para poder tocar-se afobada. Considerava-se uma pessoa odiosa por ter tais desejos mesmo com os abusos que sofria desde tão jovem. Estava convencida de que era merecedora de suas feridas, pois era uma menina suja e maldosa. Por vezes, quando a culpa não cabia mais dentro do corpo, tentava trazê-la para fora, procurando expurgar seus demônios. Esquentava a água do chuveiro o mais quente possível e entrava debaixo dela. A água ardia em contato com sua pele, deixando rastros vermelhos que manchavam o corpo da menina. Ela aproveitava pra esfregar-se com força até machucar, friccionando a áspera esponja na pele macia para abrir feridas, que ela cultivava religiosamente. Precisava ficar limpa. Não aguentava mais o cheiro de imundice que sentia sair de suas entranhas.

Aos poucos, parou de ferir-se e permitiu que seus machucados se curassem. É claro que carrega consigo o fardo dos tempos de criança, mas compreende hoje sua isenção de culpa desse peso que a obrigaram suportar. Ao longo da adolescência até a fase adulta, apaixonou-se diversas vezes, mas um dia decidiu casar-se. Os dois tiveram sua primeira filha e passados 11 anos, tiveram mais uma garotinha. O casamento era instável, assim como a situação financeira do casal. Discussões calorosas acompanhavam suas rotinas, surgiam abruptamente dos mais triviais assuntos e tornavam os habitantes da casa cada vez mais carrancudos. Além disso, ainda tinha de lidar com toda a correria do dia e a dificuldade em atingir os objetivos que traçava meticulosamente, o que era extremamente frustrante. Há alguns anos tentava juntar dinheiro para comprar sua casa. Gostaria de sentir-se segura em um lugar que fosse seu e que não mais houvessem preocupações com o teto do dia seguinte. Quando esse dia chegasse, colocaria a cabeça no travesseiro tranquila, ela e as filhas estariam protegidas. Enquanto não atingia tal meta, morava em uma casa cedida por parentes.

Na época, era pastora em uma Igreja e tinha enorme alegria em fazer parte daquela comunidade. A família a acompanhava em suas pregações e pareciam felizes aos olhos forasteiros. Ela trabalhava com vendas, de imóveis e cosméticos, e mantia-se sempre  ocupada, pois não gostava de estar parada. Corria de um lado ao outro, em casa e na cidade, colocando tudo em ordem. As brigas com o marido não cessavam, até que um dia ele chegou bêbado em casa. Era fraco para a bebida. Completamente alterado, em um momento de confusão que misturava cansaço e vingança, confessou trair a esposa com três diferentes mulheres. Ela estava incrédula com a confissão, pediu o divórcio e ele deixou a casa. Há quem diga que deveria tê-lo perdoado, que havia sido dura demais. A grande maioria de seus parentes e amigos mostraram-se contra o rompimento, mas está convicta de que fez o certo, não poderia perdoá-lo naqueles tempos, assim como não pode perdoá-lo agora. É claro que o divórcio entre eles desencadeou uma série de outros problemas, como uma dificuldade financeira ainda maior.

Havia se divorciado há alguns meses depois de um casamento instável e decepcionante, mas sentia falta do ex-marido. Bem, pelo menos do sexo. Algumas noites, quando a urgência da carne era muita, não conseguia dormir e sentava-se na cama com o corpo em brasa com cheiro de suor. Tateava o escuro procurando o barulho do trinco da janela,  suas mãos penetravam todos os mistérios da noite e seu corpo, totalmente perdido no breu, era engolido pelo escuro profundo de seu quarto. Depois de algum esforço, arfando, sentia o gelado trinco de metal, abria a janela e tentava se refrescar um pouco de si mesma. Quando a noite era dura demais com ela, sabia que o dia seria ainda pior. Levantava e limpava toda a casa, preparava o almoço, empacotava o lanche de suas meninas, organizava os produtos que vendia e pegava um livro para distrair-se. Gostava demais de ler, fascinada pelas histórias que saltavam das páginas e todos os sentimentos que os personagens a permitiam presenciar através de seus pensamentos de papel. Adorava livros de mistérios e de amor, atiçavam sua imaginação já muito poderosa, e perdia horas imaginando desfechos múltiplos para seus plots preferidos. Ainda assim, nem todos os livros do mundo a acalmavam durante o dia quando a noite havia sido árdua. Precisava sair de casa e sentir alguém. Sua cabeça era invadida por sujeiras ternas e carícias aveludadas sem fim. Era o momento em que ela “saia à caça”. Ia para as ruas e procurava alguém com quem se relacionar. A busca por pessoas funcionou por algum tempo, mas depois passou a sentir-se cansada daquilo e decidiu, portanto, procurar um parceiro através de um aplicativo. Fez seu perfil e começou a buscar um novo amor. Encontrou um homem que chamou sua atenção e começaram a conversar. Marcaram um encontro na casa dele. Chegou ao local e fechou a porta. Saiu satisfeita e esperançosa. O homem parecia interessado nela e em sua vida. Podia enxergar um futuro estável com ele. Disse que a ajudaria em casa e a apoiaria em seus anseios. No segundo encontro, estava ainda mais animada. Finalmente as coisas melhorariam. No terceiro encontro, ele já  não respondia suas mensagens. Estava sempre ocupado e não retornava suas ligações. Decidiu, então, pegar um carro e ir até sua casa, porque estava aflita com a falta de comunicação dos últimos tempos, fora que sabia seu endereço, então não tinha desculpas para não ir.

— Moço, já pode virar à esquerda e depois a terceira à direita.

Na ida, o tempo parou e ela pôde sentir o gosto amargo do final do dia. Chegou no local. Ficou pouco e saiu logo, frustrada. A partir daquele dia, acredita que o homem só importa-se com o sexo e vive para conseguí-lo inescrupulosamente. Sua história estava fadada a acabar ali. Pediu um carro para voltar. Quando o motorista chegou, deu a ele as coordenadas. Já em casa, foi organizar a bagunça e fazer a janta, estava quase na hora de buscar a filha mais nova na escola. Na época, a mais velha tinha 17 anos e a mais nova 6. Foi deitar com a cabeça cheia de preocupações naquele dia. Não sonhou a noite nem nas noites seguintes. Contudo, deixou inspirar-se por sonhos que duravam um dia inteiro enquanto estava acordada. Imaginou histórias que não havia vivido, pessoas que ainda não conhecia e conhecimentos que ainda não possuía.  Queria conhecer um mundo novo e estava decidida a experimentar uma vida que não era dela, era de Branca, a personagem que criara e que faria tudo que ela nunca pôde ou imaginou. Como sempre gostou de ler e de criar personagens, pensou: por que não vivenciar tal mundo? Estava decidida a encarnar sua protagonista e escrever um livro que contasse suas aventuras.

Estava pronta para ser quem ela queria, só faltava um último compromisso. Perfumou-se e colocou seu mais belo vestido cerimoniosamente, planejava encontrar-se com alguém que considerava muito importante. Penteou os cabelos e desfez com cuidado todos os nós que lá moravam, buscou em sua caixinha discretos brincos aperolados e os pôs para embelezar o conjunto. Estava bonita e sentia-se em paz. Ao chegar na igreja, foi entrando despreocupada. Sentou-se em um dos bancos vazios e começou a conversa.

— Eu estou prestes a fazer algo que vai me mudar completamente, mas que eu preciso fazer. Eu não sei o que vai acontecer daqui pra frente e não sei como vai terminar isso tudo, mas sei que não vou envergonhar  o seu nome, Senhor, e é por isso que eu vou embora. Agora não é o momento de ficar, mesmo que seja uma despedida difícil. Eu vou voltar, prometo, mas, por hora, preciso me afastar. Vim, então, pedir sua permissão, Senhor, para ir e para voltar quando puder.

Agora, sim, estava morta e já podia andar com suas próprias pernas, sentir com suas próprias mãos e viver suas próprias histórias. Branca é uma mulher de estatura baixa, cabelos lisos castanhos um tanto quanto desgrenhados. Seus olhos, também castanhos, são arredondados e ternos, abrigam paixões infindáveis e relatos curiosos. As duas mulheres têm personalidades similares e rostos idênticos, a grande diferença entre elas é que Branca é uma prostituta e a outra não.

Decidiu começar a procurar seus clientes em grupos de Facebook. Criou um perfil e entrou em vários de garotas de programa. Logo, conseguiu organizar alguns clientes fixos que rendiam um pouco de dinheiro no fim do mês. A cada dia, ficava mais entusiasmada com a vida que estava descobrindo. Saia de casa para encontrar-se com diferentes homens e voltava cheia de ideias e histórias na bolsa.  Ao chegar de seu trabalho, buscava papel e caneta para escrever o que havia vivido.

Além de ser garota de programa, vendedora de imóveis e de cosméticos, também é pré-candidata a deputada. Adora política e pretende tomar medidas para melhorar a vida das mulheres que trabalham no universo da prostituição, principalmente com as questões que envolvem a saúde.  Considera, por exemplo, as consultas nos postos de saúde pouco eficazes, já que as perguntas feitas são invasivas, como quantos parceiros sexuais já teve ou com que frequência tem relações sexuais, o que, por vezes, cria obstáculos para essas mulheres irem a consultas regulares. Isso se dá pois sentem-se constrangidas ou porque os familiares não sabem de sua ocupação, por isso tentam afastá-los de ambientes onde haja risco de serem descobertas. Por conta disso, pretende fazer o possível para amenizar as dores pelas quais essas profissionais passam e que ela já sentiu na pele.

Em uma época de sua vida, tentou montar uma agência de garotas, mas não deu certo, pois as garotas exigiam coisas difíceis de arcar financeiramente, como um carro que as levasse e buscasse em todo programa.

— Eu não tenho cacife para certas coisas. Tem umas que realmente se achavam a rainha da cocada preta. Só que no final, você olhando vê que elas nem eram tudo aquilo. Tanto que se você vai na Luz, a maioria são drogadas, tem os trans, as lésbicas e senhoras de 60 anos fazendo programa. É muito zoado.

Enquanto tenta ganhar a vida com seus afazeres, se permite viajar todas as noites em suas folhas onde descreve suas aventuras. Muitas vezes aceita trabalhos, ou pelo menos diz aceitar, apenas para recolher recursos para sua personagem, Branca. Em seu telefone celular trava conversas com clientes que pedem coisas que ela julga estranho demais para aceitar e curioso demais para dizer não. Há pouco tempo, um homem pediu para encontrá-la, mas avisou que gostaria de um algo a mais. Queria um programa normal porém, no final, desejava colocar uma vassoura dentro dela. Ficou horrorizada, mas não deixou aquilo transparecer, não queria afugentar o homem. Respondeu afirmativamente a seu pedido no início, para, só depois de alguns dias, inventar uma desculpa e não comparecer ao incomum encontro. É claro que já havia passado por coisas similares antes, diz já estar acostumada, mas ainda não descobriu o que move esses desejos atípicos dos clientes que a procuram. Ela acha graça, e a cada nova excentricidade, seus olhos brilham de curiosidade e prazer. Obviamente, fica animada por poder escrever sobre essas situações peculiares. Tenta então, sempre que possível, aceitar propostas, pois assim tem mais bastidores a contar.

Ela me interrompe de repente. O telefone toca e tem que atender. É sua filha perguntando onde está. Quando desliga o telefone me diz que não tem mais tempo para continuar a conversa, pois a filha está indo encontrá-la e, como havia descrito antes, a garota não desconfia de sua ocupação. Tenho tempo de duas últimas perguntas:

— Você se arrepende de algo ou teria feito alguma coisa diferente? E o que você almeja pro futuro?

— Não! Eu sempre digo que tudo na vida é experiência. Pro meu futuro eu gostaria de ter minha casa, minha loja de bolos, que é um sonho, meu carro, mesmo que eu não dirija, mas eu quero ter.

Ela está impaciente, então nos despedimos rapidamente e ela caminha em direção à filha, me deixando para trás. Quando chegou, disse que tinha que levá-la ao médico, depois, ao final do encontro, disse que iam ao shopping. Bem, não sei bem ao certo o destino, mas parecem apressadas.

Enquanto sua imagem fica cada vez mais distante, relembro todos os fragmentos de sua vida que mostrou para mim, uma estranha. Curiosa, olho as duas se afastarem com uma careta no rosto, gostaria de ter tido mais tempo caminhando por seus relatos.

A silhueta dela e da filha ficam cada vez mais longe, dificultando distingui-las do restante da multidão. Misturam-se com todos os rostos daquela tarde.

Àquela altura, poderia ser qualquer uma.

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Crédito da imagem: Ilustração de Lorena Pimenta Bonfim

Capítulo do livro:Cantos de puta, de mulher e de berço

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