Ela

publicado na Ed_06_jan/mar.2018 por

Ela se esconde entre mil vestidos de noiva. Quem tentar desvendá-la, antes é obrigado a assistir manequins em suas mais puras formosuras e aceitar muitos panfletos de rua. Com seus vestidos brancos de renda e seus paletós, as vendedoras das lojas vendem não só mais uma peça de roupa, mas a promessa de um futuro gentil.

Entro em uma rua bem arborizada, com vários comércios, a maioria de tecidos. Busco pelo número da Casa, mas não encontro e resolvo perguntar.

— Qual que é o nome? Não conheço esse lugar aí não. Nunca ouvi falar. Mas esse número que você disse é aquela Casinha ali. É só entrar. Deve ser ali dentro da Vila.

De fato, era só entrar. O portão largo de ferro estava escancarado, convidando  todos a percorrê-lo. Parece seduzir os que ali passam. O corredor, razoavelmente espaçoso, tem paredes de cimento, pintadas de azul. Ao longo dele, há diversas plantas, dos mais variados tamanhos, plantadas em tambores azuis de plástico, todos tingidos em amarelo claro. Algumas portas e janelas vigiam minha entrada, sorrindo para mim. Me imagino em uma passagem, um portal para algum lugar novo, desconhecido. Estou encantada com o lugar, que tem um ar fantasioso e um cheiro de infância. O corredor parece crescer a cada passo meu, mas é só impressão. Chego ao fim. À medida em que percorro meu caminho, um novo quadro surge. É o final da passagem e o início de uma rua. Ela é retangular e muito agradável. Sabe aquelas ruas quietas e cheias de árvore, onde sempre pode-se ver uma senhora de avental vermelho varrendo a calçada? Então, é exatamente essa.

Aos poucos, me aproximo de quem vim de tão longe para conhecer. A princípio, não tenho certeza, mas me dou conta de que é ela mesma.  Ela é pequena, tem 51 anos e um ar charmoso e aconchegante. Toco a campainha e espero enquanto o som dos pássaros preenche o ambiente. Rapidamente, sou convidada a entrar por uma mulher, que parece um tanto confusa com minha presença ali.

O interior dela é composto de dois andares, com cômodos pequenos, mas que abrigam seus móveis em harmonia. Na entrada, uma mesa redonda coberta por um pano branco com detalhes vermelhos me fita curiosa. A mulher senta-se e pede que me acomode. Sem hesitar, puxo a cadeira preta para sentar. Estou cansada. Olho em volta e suas paredes rosas e brancas me fecham dentro de si. À minha frente, há uma mesa pequena com um pano bordado com a imagem de uma santa. Uma foto do papa com uma senhora e o bispo compõe a decoração da mesa. Em sua companhia, encontra-se uma estátua de Nossa Senhora Aparecida e de uma mulher de quadris largos, que exibe, orgulhosa, seu vestido florido lilás. Há dois calendários em cima da mesa. Um deles é totalmente comum e poderia ser encontrado em qualquer outra residência. O outro, por sua vez, tem uma frase de motivação para cada dia do mês. Do meu lado direito, estão a porta e a janela. Com a portinhola aberta, consigo ver o sol brilhando no asfalto escuro. Do lado oposto à porta, há um quadro na parede e um banner que explica a missão do local de dar suporte à mulheres em situação de prostituição. Próximo ao banner, um corredor escuro leva até a cozinha, onde é servido o almoço às mulheres que participam das reuniões e debates.

A Casa abriga muitas histórias, mas se recusa a me dizer algo. A mulher, por outro lado, conta que muitas pessoas em situação de prostituição e em processo de saída da profissão são acolhidas pela Casa. Ali são feitos debates dos mais diversos assuntos. Elas podem expor suas opiniões, ideias, suas vidas e seu cotidiano. Também discutem sobre sexualidade, violência contra a mulher, espiritualidade, gênero, economia solidária e outros assuntos. Em alguns dias, depois das reuniões, almoçam juntas e depois continuam seus rituais semanais, enchendo o ambiente com conversas. Além disso, algumas oficinas, cursos profissionalizantes e acompanhamento psicológico.

Parte da rotina é composta por encontros individuais, que buscam traçar os perfis das mulheres e conhecer um pouco mais sobre suas histórias. Eles são feitos de acordo com a necessidade de cada uma delas, baseado em sua frequência na Casa, sua personalidade e seu desenvolvimento. As que “dão mais trabalho”, frequentemente são chamadas para esse procedimento. Ele consiste basicamente em um bate papo, onde são preenchidas fichas que contém informações sobre a rotina, seu passado e informações básicas de cada uma delas. O interessante, contou a mulher, é que a cada encontro uma nova história nasce. Todos os relatórios abrigam uma vida completamente diferente, mesmo sendo sobre a mesma pessoa.

— Teve uma vez que uma mulher começou a frequentar a Casa. Ela era super quietinha, boazinha, vinha para as reuniões, não dava problema nenhum. Por isso, eu só fiz o relatório dela quando chegou aqui. Depois de um tempão, não lembro muito bem quem foi, mas me perguntaram sobre ela. Disseram que só tinha uma ficha, aí resolvi chamá-la para uma conversa. Na primeira vez que conversamos, falou que tinha abortado duas vezes, porque não tinha condições de criar uma criança e que não sabia do pai. Já da outra vez, contou uma história completamente diferente. Agora, ela tinha dois filhos, uma criança e um adolescente, que moravam com os avós no Norte e que ela mandava dinheiro para eles a partir dos programas que fazia como prostituta.

A mulher diz não saber bem ao certo porque elas mentem. Talvez por medo, ou somente para escapar um pouco da realidade da vida e das memórias passadas. De toda forma, a cada relatório, contam uma versão diferente de si mesmas, reinventando-se em distorcida imagem. Algumas vezes vieram de navio, trancadas nos porões, outras vieram com promessas de trabalho que nunca se concretizaram, outras forçadas pela necessidade,  algumas sustentam a família, outras os vícios, mas todas criam histórias. Ainda assim, a mulher diz que, quando analisa-se bem os relatos, percebe-se certa congruência entre eles, como uma pintura, em que várias pinceladas formam um quadro maior, em um retrato infiel de si.

Pergunto sobre a possibilidade de conhecê-las. Procuro uma mulher que tenha mais de 50 anos. Não é possível. Não querem falar comigo. Recentemente, foram visitadas por outras pessoas. Era tarde. Um dos visitantes prometeu a divulgação do projeto. Fez sua reportagem e pediu que as mulheres assinassem autorização de imagem, ao que obedeceram inocentemente. Evidentemente, ele fora avisado de antemão que não poderia exibir a imagem delas, mas não importava, o papel o garantia quanto a isso. O outro visitante, por sua vez, teve um bate-papo super gostoso com todas. Fizeram rodas de conversas e aproveitaram bastante juntos, mas as mulheres não gostaram do que foi escrito. Afinal, elas trocavam dinheiro por sexo, é verdade, mas foram chamadas de prostitutas, coisa que não eram. Não consideravam-se assim. Bem, era tarde demais para mim. Não conversariam comigo depois das experiências anteriores.

Algum tempo se passou desde que cheguei, mas não sei quanto ao certo. A essa hora o sol que adornava o cinza do asfalto, já vestia todo o exterior da Casa e entrava pela janela sem pedir licença. Os pássaros ainda cantavam, mas o som dos carros que percorriam as ruas ao redor também faziam parte do ambiente. Eu ainda me perco um tempo lá fora antes de me obrigar a voltar para dentro.

O mural de informações atrás de mim exibe alguns avisos com a programação do mês, palestras, cursos e panfletos. Um grande cartaz chama minha atenção por suas cores vibrantes em tons de rosa. Pergunto do que se trata. É um seminário sobre o tráfico de mulheres que será realizado aquele mês. A mulher me convida para participar e me diz que muitos estudantes comparecem por causa das horas complementares que recebem para a faculdade. O tema do seminário foi decidido dado o crescente aumento do número de crianças e adolescentes em situação de prostituição. Ela conta que, certa vez, conheceu uma garota de 14 anos que se prostituia há cerca de dois anos. A menina disse vir do Norte. Os membros da família passava por dificuldades financeiras e, por vezes, não comiam e iam dormir exaustos e famintos. Um dia, um caminhoneiro apareceu com uma promessa de melhora. Ele disse conhecer uma família rica que precisava de uma garota para cuidar de suas crianças. Pagavam bem pelo serviço. A menina poderia dormir na casa em que trabalharia, não teria nenhum custo com aluguel ou contas, e todos os meses enviaria parte do que recebesse. Tirou do bolso um papel com o número da casa da família e outro com o seu. Entregou aos pais os papéis e levou consigo a criança. Chegando em São Paulo, deixou a menina em um prostíbulo e, desde então, seus caminhos nunca mais se cruzaram.

Enquanto conversamos, o telefone toca e tomo um susto. Ela pede licença para atendê-lo e me permite dar uma olhada no lugar. Dou a volta na mesa e sigo em direção a escada que leva ao segundo andar da Casa. Os degraus são todos de ladrilho amarelado, o corrimão de ferro, pintado de branco, segue meus passos até o andar superior. O cheiro do lugar é de arroz, feijão e poeira. De frente para a escada, há uma estante média, dividida em seções, como teologia, feminismo, sexualidade, saúde, drogas e educação. Em todas as paredes, há pequenos quadros com figuras em madeira, todos com frases feministas e otimistas, que estão em quase toda a extensão do lugar. Do lado direito, há uma porta que dá entrada a um pequeno cômodo, uma espécie de escritório, com duas mesas nas extremidades do local. Em cada uma, há um computador e vários papéis e documentos moderadamente organizados. Já as portas do lado esquerdo, levam ao banheiro e a outro escritório, muito parecido com o outro. Atrás de uma das mesas com computadores, uma grande janela aberta ventila o ambiente. Em uma das paredes, uma fileira de prateleiras guarda algumas caixas, que creio conter relatórios e documentos das mulheres. Na parede oposta à mesa, um quadro cheio de avisos lembra os agentes da Casa quais são seus afazeres. O andar está vazio e na solidão dele, só escuto minha respiração e lá, bem distante, a voz feminina da mulher ao telefone. A Casa não se pronuncia, mas me deixa passear mais um pouco por ela. Tento ler aquilo que não vocaliza e sei que suas paredes são sinceras em guardar mil lamentos. Os quadros nas paredes gritam para mim que somos todos iguais, sejamos homens ou mulheres, que hoje a tarefa é ser feliz e que amanhã é outro dia. Desejo boa sorte a ela, enquanto estamos sozinhas, e desço por suas escadas.

A mulher termina sua ligação e me olha curiosa. Ao ver que seguro alguns panfletos, que peguei no andar de cima, me oferece uma apostila que os agentes geralmente recebem. Ela retoma o falatório e me conta a respeito dos lugares em que visitou pessoas em situação de prostituição.

— Já fui em Casas de outras cidades que as mulheres ficam nuas nas ruas. É horrível. As daqui portam-se como pessoas normais. Você nem consegue distinguir se elas são ou não prostitutas, porque elas não aparentam. Roupa como de qualquer outra. Nada de saia, decotes muito grandes, nada disso. Elas não são vulgares, são normais. Por isso, fica difícil até saber quem é, e quem não é. Agora, nesse lugar que eu fui é degradante. As mulheres sem roupa alguma, totalmente expostas. Elas ficam paradas nas rodovias, os caminhoneiros passam e simplesmente escolhem uma.

— Elas são como objetos. — Comentei.

— Como objetos não. Elas são objetos. —  Retrucou, em um tom  indignado.

Ela conta que as mulheres adoram receber roupas. E odeiam receber interesseiros. As mais jovens, principalmente, alegram-se com as doações de vestimentas. Segundo elas, é necessário para o trabalho. Ficar bonita e ter algo novo e atraente para vestir faz parte da profissão. Recentemente, uma pessoa visitou a Casa. Trouxe algumas peças de roupa para doar. Ficaram encantadas! Espalharam tudo pelo chão e escolheram as que mais lhes agradavam. Uma a uma, vestiram as peças e fizeram um grande desfile. Eram lindas aquele dia.

— Tá vendo? Isso é uma pessoa boa. Veio aqui, trouxe roupa pra gente e não está pedindo nada. Não está pedindo entrevista, nem pra tirar foto pra postar no facebook dizendo que faz caridade. Isso sim é pessoa de bom coração.

Elas sentem-se completamente usadas, de acordo com a mulher. As pessoas surgem em suas vidas, aproveitam-se do que elas têm a oferecer e vão embora. Todo mundo quer um pedaço delas para satisfazer-se de diferentes maneiras. Muitos querem seus corpos, outros apenas desejam suas horas, ou suas vozes, que revelam acontecimentos sem fim de dias de labuta, alguns ainda tentam enquadrar sua imagem em uma tela, para exibir a todos não só um rosto, mas a história inteira de outrem. E no final de tudo isso, elas são somente instrumentos para que alguém alheio atinja um objetivo.

O que me difere dos outros? Não tenho resposta. Coro. Estou envergonhada. Não sei se deveria estar. Não, eu deveria sim. Esse peso é meu e tenho que carregá-lo. Até que ponto as palavras que escrevo são minhas? Eu sou o intruso dessas páginas e não tenho direito algum em escrevê-las. Olho para Casa enquanto me fita intrigada. Ela também escuta tudo, observa todos, mas somos muito diferentes. Ela acolhe.

Já é tarde e o relógio me apressa, como sempre. Me despeço da mulher e da Casa. Ela me acompanha e indica outra saída, que não é a mesma pela qual cheguei até o local. Diz que é mais perto do metrô e faço o percurso aconselhado, pois sinto seu olhar em minhas costas.

A verdade é que o corredor colorido da Vila é muito mais interessante. Dou a volta no quarteirão, só pra me encontrar com a passagem novamente. Ainda é linda.

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Crédito da imagem: Composição original de Guilherme Antoneli Nakashima

Capítulo do livro:Cantos de puta, de mulher e de berço

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