Bem diferente dos cemitérios ajardinados do Morumbi, na Zona Sul, cinco das oito necrópoles da Zona Leste, a mais pobre e com maior população na capital paulista, são totalmente desprovidos de qualquer tipo de luxo. Lá não costumam ser enterrados os famosos, mas os anônimos, grande parte dos quase quatro milhões de habitantes daquele lado da cidade.
Como uma nativa suburbana do quase extremo da Zona Leste de São Paulo, eu, Rebeca, poderia contar dezenas de histórias verídicas sobre pessoas enterradas na maioria dos cemitérios da região. Com exceção do único cemitério particular (o Carmo I e II) e dos Cemitérios da Penha e Quarta Parada, os mais elitistas da Zona Leste, se me pedirem, contarei sobre a vida de pelo menos um, talvez dois ilustres desconhecidos de cada um dos outros. Não que eu seja choradeira de velório, mas minha condição de filha de pastor e cerimonialista me levou a diversos velórios, onde ouvi as mais diversas histórias sobre defuntos.
Seguem algumas em alguns dos principais cemitérios da Zona Leste.
— É o próximo ponto, filha. Dá o sinal!
Depois de descer do ônibus, há um longo caminho a ser percorrido a pé na Estrada do Lajeado Velho até o destino final, o Cemitério do Lajeado, na divisa entre o distrito de Guaianases, extremo Leste da capital, e o município de Ferraz de Vasconcelos.
A rua é silenciosa até demais para o meio-dia de uma quarta-feira. Mesmo com comércios e igrejas pelo caminho, saber que a alguns metros dali alguém que você conhece é velado, aumenta a tensão.
Pedra Meireles foi uma senhora que levou uma vida simples. Criou os filhos e netos em um pequeno apartamento na maior cidade-dormitório da América Latina e também um dos bairros mais perigosos de São Paulo, Cidade Tiradentes. Morava com seus filhos, nora e neto no pequeno espaço. Todos a conheciam naquela redondeza e ela os comprimentos quando andava pelas ruas em direção ao apartamento de sua filha, a dois quarteirões do seu.
A vida, que sempre foi sua maior riqueza, cobrou caro por um câncer no ovário, já em estado avançado. Baterias de exames e lotes de medicamentos foram capazes de lhe proporcionar mais alguns meses com a família e os amigos. “Deus vai me levar quando for a hora”, ela dizia, sempre com um sorriso invejável no rosto, tentando ignorar toda a dor que a quimioterapia causava.
Dois anos se passaram desde a descoberta do tumor. E aqui estamos, seus familiares, amigos e eu no velório dessa grande mulher.
As condições são precárias. Sinto sede após a caminhada do ponto de ônibus. Decidi esperar. Falta coragem para tocar em qualquer superfície desde local. E em breve eu veria a cena mais triste até este ponto da minha vida.
O corpo da tão amada Pedra, agora em um caixão feito com chapas de uma madeira tão parecida e tão resistente quanto papelão. As puxadeiras laterais são frágeis, com brilho inconsistente e amarelado e que, dependendo do ângulo, cintilam tons de rosa ou verde. E o sorriso que Pedra sempre carregou, agora traz um sentimento diferente. O de alívio.
***
Morrer é caro e eu não fazia ideia do preço. Peguei um copo d’água e fui pro telefone.
— Alô?
— Oi, é do Serviço Funerário de Itaquera? Eu quero saber como faço pra enterrar um ente meu…
— A pessoa já morreu?
— Não, ainda não.
— Então, a pessoa precisa vir a óbito primeiro. Depois disso você vem até aqui com os documentos e lá mesmo você fica sabendo o cemitério, que sempre vai ser o mais próximo da sua residência ou do hospital, a menos que você tenha plano preventivo em algum outro cemitério. Aqui também você escolhe o caixão, que vai de R$ 2 mil até R$ 26 mil.
A água que estava tomando quase não desce, tamanho o susto que levei quando ouvi os valores. Depois de uns dois segundos, respondi:
— Isso é mais caro que um carro. É normal as peoas comprarem desse?
— Aqui na Zona Leste é mais complicado. Geralmente ficam na faixa ente dois e cinco mil mesmo. Você tem nosso endereço?
— Sim, eu tenho. Assim que o indesejado acontecer, apareço aí.
— Até mais e meus pêsames.
É bom esclarecer que o ente não está enfermo. Aliás, ele não existe.
A julgar pela qualidade do caixão que vi no velório de Pedra, com certeza o mais barato foi o que a família pôde comprar, o de R$ 2 mil. Fora os valores das documentações obituárias. Não quero nem imaginar o rombo que o preço causou no baixo orçamento dos que ficaram.
***
Cemitério da Saudade: saudade mesmo é o que a família e amigos sentem da eterna vó Cida, uma senhora que se ausentou deste mundo quando eu ainda era uma garotinha com pouco mais de dez anos.
Aparecida Baessa, semianalfabeta, veio do Paraná para São Paulo com o marido, agricultor, e as filhas — Elisabete, com sete anos, e Luciana, com quatro. Morou de favor na casa de parentes e também de aluguel durante alguns anos até conseguir um pequeno apartamento na Cohab José Bonifácio, Zona Leste. Lá, o marido as deixou e foi morar com outra mulher, 20 anos mais jovem que ele, a responsabilidade do lar ficou toda nas mãos de Cida.
As filhas cresceram, casaram e tiveram filhos. Cida, separada, foi morar com a mais velha, Elisabete, esposa de Edimar, recém-viúvo e com dois filhos pequenos. Mesmo após o nascimento da primeira filha do casal, Emily, Cida continuava a não fazer distinção entre sua neta de sangue e os filhos de Edimar. Uma boa senhora.
Quando Emilly tinha sete anos, ela e sua mãe viram Cida sofrer um grave acidente na nova Radial Leste. Elas atravessavam a avenida, quando uma Cherokee preta a atingiu em cheio, a 120 quilômetros por hora. Elisabete conta que, no momento do acidente, ficou fora do ar por uns milésimos de segundo. Só conseguia ouvir os gritos da filha pequena, que segurava sua mão.
— Quando dei por mim, minha mãe estava voando. Parecia uma folha no ar.
Continuo a conversa com a filha que testemunhou o atropelamento fatal da mãe, depois sepultada no Cemitério da Saudade:
— O motorista foi embora?
— O rapaz, Leonardo, parou o carro um pouco mais à frente. Ele estava muito abalado, até porque tinha juntado uma multidão e a polícia estava fazendo muitas perguntas. Eu apenas virei pra ele e falei ‘fica calmo, tá tudo bem’. Porque eu sabia que nada do que eu dissesse ia trazer minha mãe de volta. Só que um ano mais tarde, no julgamento, ele usou isso contra mim. Ele alegou que minha mãe tinha se jogado na frente do carro propositalmente, porque eu tinha pedido pra ele ficar calmo naquela hora.
— Como você lidou com a perda?
— Primeiro, eu não acreditei. Eu presenciei tudo, mas não acreditava que ela tinha partido. Quando minha irmã caçula chegou ao hospital o médico tinha acabado de confirmar a morte da minha mãe. Então eu, que estava inconsolável, falei pra Luciana, que sempre foi mais forte que eu: ‘Vai lá, Lu! Acorda ela! Ela tá só dormindo. Dá um beliscão pra ela acordar!’. Eu fiquei uma semana inteira sem conseguir levantar da cama. Com medo de dormir e ver a cena toda se repetir e com medo de acordar e ver que não era um pesadelo. Só consegui me libertar da imagem do acidente uns três anos depois. Mas ainda não consigo passar no lugar do acidente.
— Você que encaminhou a documentação do enterro?
— Não, eu não tive condições de lidar com toda a burocracia, porque assim, é um choque de realidade muito forte pra um momento tão delicado. Meu cunhado, meu marido e minha irmã cuidaram da parte mais difícil. Eu só estava presente na escolha do caixão e na hora de vestir minha mãe.
— O Serviço Funerário de Itaquera encaminhou sua mãe para o Cemitério da Saudade?
— Não, eles iam mandar ela pro cemitério de Itaquera, que era o mais próximo do Hospital Planalto. Meu marido que perguntou se tinha vaga aqui no Saudade, que é mais perto de casa. Então eles fizeram com que tudo ocorresse aqui no Cemitério da Saudade.
— Você, que escolheu o caixão, se surpreendeu com os valores?
— Sim, muito! Sabe, a hora da morte é um comércio. Comercializam o melhor caixão, as melhores flores, a melhor maquiagem… E as coisas têm preços absurdos. Caixões custam milhares de reais que você nunca vai ter naquela hora. Graças a Deus meu marido tinha acabado de ser demitido e usou o valor do FGTS para pagar tudo. Mais tarde, meu cunhado fez o pedido do seguro DPVAT e ressarciu o Edimar.
— Sua mãe tinha algum último desejo?
— Sim. Algumas semanas antes do acidente ela estava com umas conversas sobre morte e me fez dois pedidos. O primeiro era pra que eu deixasse o apartamento da Cohab pra minha irmã, pois eu já tinha uma casa própria e minha irmã, não. Então eu falei pra ela ficar em paz que eu nunca ia mover um dedo sequer pra ficar com ele. E foi o que fiz. Segundo, ela me pediu pra que quando morresse, não abandonassem o corpo dela no cemitério. Mesmo sabendo que não adiantava nada, realizei o desejo dela e paguei um coveiro do próprio cemitério durante três anos pra cuidar do jazigo dela e a visitei todos os dias durante alguns meses, depois que consegui levantar da cama.
O Cemitério da Saudade está localizado entre os bairros de Itaquera e São Miguel, na zona Leste. A fundação do mesmo, que possui o dobro do tamanho do Cemitério do Lajeado (nossa primeira parada nesta reportagem), aconteceu em fevereiro de 1960 para que o atendimento da população do extremo leste da capital fosse mais bem amparada, já que os 57 mil metros quadrados do Lajeado não dariam conta da grande demanda. Nos dias de hoje, aproximadamente 200 sepultamentos ocorrem mensalmente apenas no Saudade.
Nele, a maioria dos túmulos são construções aparentes, para imitar os mausoléus dos cemitérios da Consolação e Quarta Parada, mas sem o glamour das obras assinadas por Brecheret, Oliani e tantos outros. Em vez disso, pequenos cômodos construídos por Josés e Antônios que nunca foram ou serão reconhecidos por seus trabalhos na arte tumular. Os outros jazigos são identificados por cruzes, flores ou placas de cimento com o nome do defunto.
São Paulo, 3 de dezembro de 2014, Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, Rua Arroio Itapevi, 118, Cidade Tiradentes.
Silvia dos Santos nunca se casou ou teve filhos. Cuidou de sua mãe, Angelita dos Santos, até seu falecimento dois anos antes. Por esses motivos e por estar sempre disponível e sempre pronta pra ouvir os desabafos e dar conselhos, era considerada “titia” de dezenas de sobrinhos adotados.
Era sorridente, divertida e não gostava de ficar parada. Muito vaidosa, raramente era vista sem estar “no salto” – exceto aos domingos de manhã, quando ficava em casa com a família. Funcionária da subprefeitura da Cidade Tiradentes, tinha muitos amigos, era amada por todos.
O corpo no caixão não combina com a mulher que conheci. Embora estivesse usando seu vestido favorito – bege, de couro, e salto alto, suas marcas registradas —, essa mulher em nada lembra a imagem alegre que ainda guardo na memória.
Do Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, igreja que Sílvia frequentava e onde ocorreu o velório, uma caravana seguiria até o Cemitério de Vila Carmosina, mais conhecido como “de Itaquera”. Caravana, sim, pois na fila contei pelo menos sete carros mais um ônibus alugado pela família para levar o restante das pessoas. Afinal, o caminho dali até o cemitério é longo.
Chegamos e a situação não é muito diferente do Lajeado ou do Saudade. Quatro pequenas e singelas salas de velório, uma na frente da outra, com um grande banco de cimento em toda a extensão do corredor, que vai dos pequenos cômodos até a administração. São 17 campos do Pacaembu em termos de metros quadrados. Não é o mais bonito, mas não é o pior que já vi. Também não é dos mais bem cuidados, embora os banheiros estivessem limpos, porém as áreas externas de espera clamavam por um jardineiro e, quem sabe, uma boa vassourada. Alguns cachorros também circulavam na área dos velórios.
Era um dia quente, mormaço do começo de dezembro. Por causa do tempo seco, meu pé encheu de terra e minhas pernas ficaram vermelhas com a poeira levantada pelo carro elétrico que transportava o caixão e pelos passos das mais de 40 pessoas que andavam à minha frente.
Ao caminhar por lá, não pude deixar de reparar na simplicidade das famílias que visitavam seus defuntos, das ruas sem nenhum tipo de pavimentação e em alguns túmulos abertos, onde recentemente ocorreram exumações, um deles ao lado de onde Sílvia estava sendo enterrada. Fiquei um pouco enjoada quando vi que as roupas e sapatos do defunto ainda estavam entre a terra que há pouco fora revirada. Percebi que todos os presentes também viram e se sentiram incomodados. Em especial, a parte mais próxima da família.
Diego, sobrinho de sangue, foi quem encontrou o corpo de Sílvia no pequeno apartamento da Cohab, onde a tia morava. Em lágrimas, ele conta que ao redor do pescoço dela estava o lençol com o qual tentou se enforcar. Ele e duas amigas de Sílvia, que passaram a noite do ocorrido no apartamento, eram os mais abalados. As meninas mal conseguiam ficar em pé, se culpando – embora ninguém ali realmente pensasse que elas tinham qualquer coisa a ver com a fatalidade.
Assim como em todas as outras necrópoles da cidade, os corpos são para lá encaminhados pelo Serviço Funerário após a liberação da certidão de óbito e pagamento de todas as taxas vigentes. No caso de Sílvia, quem arcou com as despesas de documentação, caixão e flores foi o próprio Salão do Reino. O valor ultrapassou os R$ 4 mil.
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Na Avenida Flor de Vila Formosa fica a maior necrópole da América Latina. Pelo tamanho, dezenas de vezes maior do que a maioria dos cemitérios do país, o cemitério da Vila Formosa até que é organizado em sua divisão em duas alas: Vila Formosa I e Vila Formosa II, cada um com sua própria administração.
Agregando os dois (que na verdade, são apenas um), os números são impressionantes: existem mais de 118 mil sepulturas, 104 mil ossários, 24 salas de velório e ocorrem mais de 60 enterros por dia. Existe uma quadra específica para enterro de indigentes, outra é destinada ao sepultamento de crianças e até para membros amputados existe área exclusiva. Também, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investiga crimes cometidos durante a ditadura, existem cerca de 11 presos políticos sepultados naquelas terras como indigentes – solução encontrada pelos militares para não serem responsabilizados pelos crimes.
Se você nunca visitou, talvez não tenha ideia da dimensão do local. Então, com mais alguns dados sobre o tamanho de alguns locais conhecidos e umas continhas básicas, reuni algumas informações: pois bem, em seus 783 mil metros quadrados, cabem dez cemitérios da Consolação, ou oito ginásios do Ibirapuera ou, ainda, cento e onze partidas de futebol poderiam ocorrer simultaneamente nas terras da necrópole. Ainda não deu pra entender que é imenso?
Vamos ver agora: a área do Cemitério de Vila Formosa é equivalente a aproximadamente 1.779 Vaticanos. É estimado que mais de um milhão e meio de corpos moribundos já povoaram aquelas terras desde sua fundação, em 1949.
Uma dessas almas é a de Jorge de Freitas Spinola, paulistano, filho de portugueses, motorista da Sambaíba Transportes há mais de 20 anos. Quando partiu, aos 57 anos, deixou Luciana Mantovani Spinola, viúva aos 42 anos, e duas filhas.
— Morreu de câncer no intestino, com metástase no fígado. Nem deu tempo de fazer quimioterapia. O câncer foi diagnosticado em 10 de abril e em 20 de maio ele faleceu.
Quem conta é Kelly, a filha mais velha, que perdeu o pai aos 21 anos e às vésperas das provas da faculdade.
Ele passou a páscoa em família, quando ainda estava bem de saúde, depois, começou a definhar. Quando foi internado, no Hospital Salvalus, na Móoca, não conseguia sequer comer. Kelly conta que o pai “começou a ficar amarelo, o abdômen e as pernas começaram a inchar. Ele morreu pesando quase 90 quilos”. A casa deles fica na Vila Nova Cachoeirinha. O corpo foi encaminhado ao cemitério da Vila Formosa por ser o mais próximo do hospital.
— Mas sabe de uma coisa? Ele estando longe, não vamos visitar. Porque o fato de visitar machuca demais.
Foram os irmãos de Jorge quem arcaram com os mais de R$ 3 mil de despesas de documentação, caixão e homenagens. Os tios pagaram tudo à vista.
— Eles têm boas condições financeiras.
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— Kelly, quais foram suas impressões sobre o Vila Formosa?
— Eu me assustei com a imensidão dele, primeiramente. Ele é bem simples. Vi muitos túmulos bem perto de onde muita gente passa, acho que não deveria ser assim. A limpeza nos banheiros é ruim. Sem falar que não tem lugares confortáveis para sentarmos. O que é ruim, já que o velório foi das 18 horas até dez da manhã do dia seguinte, e fazia muito frio. Aliás, lá é muito frio, acredito que por ter muitas árvores.
— E sua irmã pequena? Ela foi ao velório?
— Ao velório, sim. Mas não a deixamos ver o enterro para não criar trauma, ela tinha apenas três anos… é muito duro ver a terra sendo jogada em cima, sabe? Até hoje ela pergunta se o papai está dormindo na caixinha. Falamos aquela história clássica: “papai virou estrelinha, está com Jesus”.
— Como você enxerga a morte depois dessa experiência?
— Eu estou começando a encarar a morte como um recomeço, uma nova história que agora vou escrever sem meu pai. Por mais que seja doloroso, faz parte da vida. De começo eu nem queria falar sobre a perda, mas, agora, lembro dos momentos, como ele era nas suas qualidades e pequenos defeitos. Tem dias que ainda choro bastante, quero ficar quieta no meu canto. Geralmente acontece quando vai fazer mais um mês sem ele. Parece que foi ontem.
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Dona Maria Pereira Simão nasceu em 1941, em Araraquara, interior de São Paulo, e passou a infância em São Carlos, também no interior. Veio para a capital paulista com 18 anos, trabalhou em uma indústria, onde conheceu Valentim Simão, que tempos depois se tornaria seu marido. Logo após o casamento, deixou de trabalhar fora para cuidar do lar e dos três filhos, Simone, Valentim Junior e Rogério. Foi uma mãe dedicada, esposa excelente, muito carinhosa e atenciosa com os cinco netos e um bisneto.
Desde que o marido faleceu, 25 anos antes de sua morte, dona Maria desenvolveu um quadro de depressão e começou a sofrer de outros problemas de saúde, como hipertensão, diabetes, doenças cardíacas e, quando a idade avançou, também foi atacada por uma artrose no joelho. Antes de falecer, chegou a ficar dois meses internada em decorrência de todos esses problemas.
Partiu no dia 9 de maio de 2015, véspera do dia das mães, em decorrência de uma parada cardiorrespiratória no Hospital Sancta Maggiore, no Paraíso.
— Depois do falecimento, nós, como filhos, queríamos realizar o último desejo dela, que era ser cremada. Só tínhamos ideia do crematório da Vila Alpina, depois ficamos sabendo de um crematório em Guarulhos. Mas por ser em São Paulo, apesar de morarmos na zona Norte, o Vila Alpina, na zona Leste, ainda era mais próximo. Ela sempre brincava que não queria que tivesse velório, pois não queria que ninguém a visse no caixão.
Foi Valentim Simão Júnior, o filho e a voz que conta a história de dona Maria, quem ficou sabendo primeiro da morte e se incumbiu da missão de avisar seus irmãos e as pessoas mais próximas. Mas foi Rogério, o mais novo, quem cuidou dos trâmites para a cremação. Júnior conta que o irmão entrou em contato com o Serviço Funerário do Município de São Paulo localizado na Liberdade – o mais próximo do hospital – que o encaminhou ao Crematório Municipal Doutor Jayme Augusto Lopes, na Vila Alpina, onde também fica o Cemitério São Pedro.
Apesar de ser um crematório do município, Valentim conta que foi uma surpresa quando souberam do valor para um corpo ser cremado.
— Minha mãe, como era desejo dela, mantinha uma poupança e falava: ‘Eu quero que esse dinheiro da poupança vocês usem para minha cremação’, mas foi realmente um susto quando ficamos sabendo os valores: R$ 383,45 foram gastos com as taxas de cremação, incluindo a urna, o carro do translado hospital-crematório, a câmara frigorífica e o véu utilizado para cobrir o corpo.
Aqui vale a abertura de parênteses na história de dona Maria para você entender o que ocorre depois de prontas as documentações e feitos os pagamentos necessários: quando o corpo chega do hospital, ele fica em uma espécie de fila de espera, pois as cerimônias ocorrem por ordem de chegada. A cerimônia é bem rápida, se comparada com os velórios normais. As pessoas que vão homenagear o falecido ficam em um auditório. O caixão desce e fica exposto, em cima de uma “cama” de mármore. Não dura mais do que 15 minutos e a família pode até escolher uma música para ser tocada no momento. Qualquer tipo de cerimônia é livre, depende da crença da família. Depois disso, o corpo é levado à câmara fria por um ou dois dias até ocorrer a cremação, que não é assistida. A família retira as cinzas do ente querido numa data pré-agendada; recebem um plástico fornecido gratuitamente pelo crematório ou numa urna comprada previamente.
A despedida de dona Maria aconteceu no domingo de dia das mães. Família e amigos mais próximos estavam presentes. A cerimônia, de acordo com a fé de dona Maria, foi realizada pelo pastor da igreja que frequentava, José Rodrigues de Oliveira. Ao som de New York, New York, de Frank Sinatra, o corpo de Maria Pereira Simão foi velado e desceu à câmara para aguardar o descanso eterno.
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Como foi escrito no começo deste capítulo, existem oito necrópoles na zona Leste. Além dos cinco que você acabou de conhecer através das histórias de pessoas comuns, há também o Cemitério do Carmo, próximo à Cohab II, em Itaquera, inaugurado em meados da década de 1980, primeiro e único (até o momento) cemitério parque (ou jardim) da região, que é, da mesma forma, o único particular.
Já na parte mais próspera, ficam os dois mais elitizados, que, redundantemente, refletem muito bem a população que os cerca. O Cemitério da Penha, localizado numa das principais avenidas da região, é o destino final dos membros das famílias ricas das adjacências. Somente as ricas, pois juntamente com os chavões Consolação, Araçá e Quarta Parada, a necrópole possui um dos metros quadrados mais caros – e disputados – da capital: R$ 3.031,87.
Feliz, ou infelizmente, não existem terrenos à venda, já que todos os seus 16.800 metros quadrados estão totalmente ocupados. Inclusive fui orientada por uma funcionária do Serviço Funerário do Município de São Paulo a acompanhar pelo Diário Oficial da União o andamento da liberação dos metros quadrados, caso não for urgência. O Cemitério da Penha é também um museu de arte a céu aberto, visto que as famílias lá sepultadas, herdeiras da elite dos séculos passados, não economizaram ao encomendar para seus queridos túmulos em granito, detalhes em bronze e grandes esculturas artísticas. Por esse motivo são frequentes as ocorrências de furtos (mais uma semelhança com o cemitério da Consolação).
O outro cemitério rico da zona Leste é o Cemitério da Quarta Parada. Ele tem esse nome porque na época de sua inauguração, a quarta parada da linha ferroviária era ali perto. Até hoje, dos trilhos da linha vermelha do metrô, é possível ver os suntuosos mausoléus que ficam lá dentro. É uma espécie de cemitério da Consolação da zona Leste, sem exagero: os valores de terrenos se igualam, e até superam os da primeira necrópole da capital; dependendo do tamanho, o valor do terreno chega a custar R$ 27 mil para concessão de 25 anos.
Talvez você esteja se perguntando o motivo de ser tão caro. São dois fatores: estar localizado no melhor ponto da zona Leste, próximo de duas estações do metrô, e de avenidas como Radial Leste, Salim Farah Maluf e também porque lá residem, eternamente agora, barões da indústria têxtil e cafeeira que, assim como os famosos do Consolação, ajudaram a constituir São Paulo como a maior capital do Brasil.
Crédito da imagem: CC0 Creative Commons
Capítulo do livro: “Desenterrando a História“
Magnifico. Parabéns. Conhecedor que sou de todos estes cemitérios citados, reconheço a poética do olhar do redator e a crueza da realidade dos fatos.