Os olhos da mãe

publicado na Ed_14_jan/mar.2020 por

Colocar uma criança no mundo e criá-la talvez seja uma das missões mais complexas da vida de uma pessoa. Aliás, não só de uma pessoa, mas de todo animal. Em todo o reino animal, pai e mãe têm suas atribuições para a sobrevivência da prole. Todo ser vivo, quando bebê, precisa que seus pais os alimentem, os hidratem, os higienizem e garantam sua segurança. Quando falamos de nós, seres humanos e racionais, partimos para outras esferas que preservam essa racionalidade: precisamos que nossos pais nos deem aparatos para termos uma estrutura emocional consolidada.

Nesse sentido, nosso pai e nossa mãe também têm funções específicas. De acordo com estudos de psicanálise, como mencionamos há alguns capítulos, a mãe constrói as características psíquicas do filho, que dizem respeito aos valores internos que a criança constrói com ela mesma. O pai constrói o mundo de valores externos, a relação do filho com o próximo e a importância do filho no ciclo social.

Se ter um filho é uma tarefa difícil, imagine criá-lo sem o pai para compor esse pilar tão importante para a personalidade e emoções do filho.

O pesquisador Jensen P. S. afirma em sua obra “Father absence: effects on child and maternal psychopathology” que se pode dizer que os efeitos da ausência paterna sobre a criança são mediados pela interação da mãe com o filho e pelos recursos emocionais da mãe. O mesmo se pode dizer da participação dos fatores ambientais e da família como um todo, que cercam a criança.

Ou seja, há uma sobrecarga de responsabilidades e de emoções sobre a mãe que cria o filho sem o pai.

E elas não são poucas.

O último Censo do IBGE mostra que o número de mães solo no Brasil saltou de 10,5 milhões para 11,6 milhões em dez anos (período de 2005 a 2015).

Sobre as mães solo, se você tem dúvidas sobre o que quer dizer, são aquelas que até algum tempo atrás eram conhecidas como “mães solteiras”. São as mães que não têm ajuda do pai ou outro companheiro para criar o filho, portanto, criam sozinhas.

O termo “mãe solteira” não é mais utilizado, afinal, maternidade não é estado civil.

Retomando os dados estatísticos, a mesma pesquisa do IBGE diz que 56,9% das famílias comandadas por mulheres vivem abaixo da linha da pobreza.

Em São Paulo, um levantamento feito pela Rede Nossa São Paulo[1] demonstrou que 33% das mulheres que moram na capital e que são mães cuidam sozinhas dos filhos. Isso corresponde a 1.219.438 mulheres. Isso só em uma cidade, que, por sinal, é a mais rica do país.

A epidemia do abandono paterno não afeta somente os filhos. As mães também sofrem os efeitos dessa crise social avassaladora.

Além das mães solo, temos as mães que foram deixadas pelo pai biológico do filho e que tiveram outro companheiro que exerceu o papel de pai. Mas até sobre isso há complicações, pois há toda a adaptação do filho em relação à nova pessoa que adentrou à família.

Muitas mães simplesmente se privam de viver relacionamentos afetivos para preservar os filhos, muitas vezes por medo, por vários medos.

Conversei com personagens que trouxeram a história da contribuição materna na vida dos filhos, e é sobre elas que quero dedicar este capítulo.

Leandra

Leandra Medeiros, 33 anos, é fisioterapeuta. Ela foi uma das primeiras pessoas que entrevistei para este livro.

Leandra cresceu sem o pai, sua mãe tem 68 anos de idade e é mãe solo.

O que me chamou a atenção foi o entusiasmo de Leandra ao falar sobre a sua mãe. Eu a procurei para falar sobre seu pai biológico, mas o ponto central da conversa, com muito carinho, acabou sendo sua mãe:

— Eu sempre morei com a minha mãe. Sempre tivemos uma boa relação. Minha mãe é diarista, né… Então dentro das possibilidades dela, tive uma boa infância, tive tudo o que eu precisava. De um jeito ou de outro, ela sempre dava um jeito de dar tudo o que eu precisava, tudo o que eu queria.

O pai de Leandra faleceu quando ela tinha 11 anos de idade. Ele e sua mãe tiveram uma relação muito conturbada (muito mulherengo, de acordo com Leandra). Após o nascimento de Leandra, durante uma das brigas entre o casal, a mãe de Leandra pôs um basta na relação.

Sobre o rompimento, Leandra fez um importante comentário:

— O meu relacionamento com ele acabou aí. Ele passou cinco anos sumido. Terminou com a minha mãe e comigo.

Após cinco anos, Leandra quis procurar pelo pai. A mãe de Leandra o contatou, e após mais alguns anos, ele passou a visitar a filha.

Leandra teve contato com o pai durante sete meses. Ele passou a visitá-la quando ela tinha 10 anos.

Quando o pai de Leandra decidiu registrá-la e eles estavam começando a ter uma proximidade maior, ele faleceu.

Ele sofria de hipertensão e era tabagista. Trabalhava como motorista do serviço Atende+[2] e, durante um dia em que estava trabalhando, passou mal. Estacionou o veículo e teve uma parada cardíaca, que o levou a óbito. O pai de Leandra tinha 44 anos de idade e ela, 11.

Apesar disso, Leandra se considera uma pessoa muito bem resolvida em relação ao abandono e ausência do pai. O tom de voz dela ao falar a respeito soava confiante, não havia sinais de tristeza ou rancor ao contar sua história. E o sentimento sobre sua mãe era sempre exaltado:

— Minha mãe fazia muito bem o papel de mãe e pai, então eu não tinha problema em não ter pai.

— Quando eu fiquei maior, eu quis ter esse contato com ele e fiquei feliz de, de repente, ter um pai. Claro que eu estava feliz de ter um pai, minhas amiguinhas da escola tinham pai. Eu tinha feito uma caneca, e pela primeira vez eu entreguei um presente de dia dos pais. Eu estava empolgada, estava feliz com a novidade de ter um pai. Então quando ele morreu, eu fiquei chateada, eu nunca tinha tido contato com a morte, até então. Eu fiquei triste, mas eu era criança, a minha cabeça era de criança. Aí eu fiquei triste não como uma pessoa que foi criada com o pai ficaria. Eu fiquei triste porque… ah, poxa, agora que eu ia ter pai, eu não vou ter mais pai?

Para Leandra, a morte do pai não foi devastadora porque era uma pessoa que ela estava começando a conhecer.

Leandra contou que sua mãe não ficou chateada quando ela quis se aproximar do pai:

— Ela sempre gostou dele. Minha mãe nunca falou mal dele.

Os impactos negativos na vida de Leandra em decorrência do abandono paterno foram mais financeiros que emocionais:

— Afetivamente, a minha mãe supriu tudo. O que eu senti foi quando eu comecei a fazer faculdade, tive que parar de estudar, porque não tinha grana para pagar. Eu trabalhava no telemarketing, a minha mãe era diarista. Na minha cabeça, se eu tivesse pai, talvez ele poderia ter ajudado, porque, eu acho que se ele não tivesse morrido, ele teria continuado na minha vida, e acho que teria uma relação bem próxima de pai e filha com ele.

Sobre o relacionamento com a sua mãe, Leandra relatou com muito afeto tudo o que elas viveram. Contou sobre as dificuldades vividas e a parceria entre elas. De uma forma contada com leveza, sua vida tem nuances da letra de “Negro Drama” de Racionais MCs, e o verso “família brasileira, dois contra o mundo”, quando transportado para a realidade de Leandra e de sua mãe, facilmente se torna “família brasileira, duas contra o mundo”.

Talvez o fato de ter sido criada só pela mãe tenha gerado um certo sentimento de apego emocional (em relação à Leandra pela mãe) e carência, mas Leandra não se importa:

— Eu sempre fui muito próxima a minha mãe, muito, muito próxima, desde pequenininha. Talvez eu tenha até uma dependência afetiva da minha mãe, nunca fiz terapia, mas pode ser. Eu sempre sinto que sou só eu e a minha mãe, sabe? Sentimentalmente eu me sinto muito dependente dela. Ela é bem ligada a mim também.

Leandra esbanjava sorrisos ao falar da mãe.

A mãe de Leandra viveu os pormenores das dificuldades de ser uma mulher, mãe na periferia de São Paulo e de classe menos favorecida. Mas superou. Leandra é só orgulho sobre a mãe:

— Minha mãe é uma puta mulher guerreira. Eu tenho um orgulho absurdo dela, de tudo o que ela fez, de como ela é, de como ela criou a gente. Ela teve uma vida muito sofrida, o casamento com pai da minha irmã (mais velha que Leandra) não foi fácil, o pai da minha irmã batia nela. Ela teve uma vida muito difícil, não tem estudo…. Mas eu a acho uma mulher extraordinária.

Sobre essa fase de maus-tratos da vida da mãe de Leandra, houve poucos comentários, mas o que sei: Ela foi casada com outro homem muito antes de Leandra nascer, e desse relacionamento, nasceu sua irmã (17 anos mais velha que Leandra). O casamento durou alguns anos, mas acabou.

Leandra encerrou a nossa conversa falando sobre o amor que sente por sua mãe:

— Talvez, sem perceber que tivesse, eu sempre tive essa visão, desde muito nova. Eu tenho muito orgulho de quem ela é. Eu tenho certeza de que toda vez que ela errou comigo, se é que ela errou comigo, foi na intenção de acertar.

Mara

Mara Julia Ferreira de Oliveira tem 45 anos e atualmente é pintora e dona de casa.

Mara é mãe de Luis Paulo[3] e avó de Athena e Gael.

Nossa conversa teve de ser adiada, pois seu neto nasceu um dia antes da data que marquei de encontrá-la em sua casa, no município de Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. Mara foi conhecer o recém-nascido Gael em Hortolândia (cidade do interior de São Paulo, onde Luis Paulo mora com sua esposa e filhos).

Por um motivo muito nobre, nosso bate-papo ficou para a semana seguinte.

É interessante o fato de que eu decidi ouvir as mães porque sabia que elas são parte essencial para compor a história dos filhos, e que elas trariam outro ponto de vista para o que estou contando. Mara trouxe de forma genuína muitos pontos que complementam o que seu filho disse, e vários detalhes diferentes do que ele relatou. Afinal, cada um vê o que vive de um jeito, ou “cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração”, como já dizia os Titãs.

Sua infância não foi fácil. Seu pai era alcoólatra, o que tornava a relação familiar difícil. Apesar disso, não passou dificuldades no sentido financeiro.

Mara já trabalhou “em um pouco de tudo”, como ela mesma descreve. Foi auxiliar de escritório, trabalhou em casa de família e no Mc Donalds, por exemplo.

Ela conheceu o pai de Luis em uma reunião de budistas, sua mãe seguia a religião e Mara a acompanhava. Aos 14 anos, o namoro entre eles teve início.

O relacionamento deles era segredo, porque a família de Paulo era japonesa, bastante tradicional, e não aceitava que ele namorasse alguém que não fosse de origem nipônica.

Além do fator familiar ser um empecilho, Paulo já era maior de idade, tinha 21 anos, enquanto Mara era uma menina, o que também era um ponto crítico.

Ambos moravam em Embu das Artes.

Chegaram a ficar juntos durante cerca de um ano. Com aproximadamente sete meses de namoro, Mara ficou grávida.

Quando Mara ficou grávida, Paulo foi embora para São Paulo. Ele ainda não sabia que seria pai, a mudança ocorreu por pressão de seus pais.

Mara relatou como era vista por eles e como foi a sua vivência com a família do pai de seu filho:

— Eles eram super preconceituosos, me chamavam de negra (Mara tem a cor da pele branca), porque para eles eu era negra. Então eles tinham muito preconceito assim, não gostavam que eu frequentasse a casa e tudo mais. Não me tratavam mal, mas assim, não conversavam também comigo, me ignoravam, entendeu? Foram raras as vezes que eu fui na casa deles. Então como eu sofri muito esse preconceito, e eles pegaram muito no pé deles, eles fizeram com que ele fosse para outro lugar para trabalhar para sair desse namoro. Aí ele foi embora quando eu estava no comecinho da gestação. Ele sumiu. Durante três meses ele sumiu. Então depois de três meses, de tanto a minha mãe… porque eu era menor, eu não tinha 15 anos quando engravidei. Eu engravidei em março e depois de três meses eu completei 15 anos. Aí a minha mãe foi atrás dos pais dele e pediu para que eles dessem um suporte. Então ele voltou depois de três meses e durante esse período, eles queriam que eu fizesse um aborto, eles não queriam que eu tivesse o bebê. Foi bem… foi pesado… Eles não queriam de jeito nenhum que eu continuasse com a gestação, e como eles tinham muito… tem uma espécie de uns gerentes na religião também, os líderes. Aí teve uma reunião e todo mundo queria que eu fizesse esse aborto. Só que eu falei que não, que a vida é minha, que o corpo é meu e eu não quero, eu não quero, é o meu filho, eu não quero. Eu já estava em uma gestação. Aí eu não aceitei, continuei a minha vida, fui trabalhar com a minha mãe e tudo mais.

Paulo (o pai) voltou após os pedidos da mãe de Mara. Foi morar com ela durante a gravidez. Moraram juntos durante quatro meses, chegaram a casar.

Quando Luis tinha quinze dias, Paulo foi embora para a casa de sua mãe. Três meses depois, foi embora para o Japão:

— Aí depois, sumiu.

Segundo Mara, a pressão para que ela abortasse era feita pelos familiares de Paulo quando ele não estava presente, então ele não defendeu o pedido ou se opôs.

Mara passou seis anos sem notícias do ex-marido. Quando Luis tinha seis anos, Paulo voltou do Japão, o visitou uma vez e nunca mais voltou. Perderam totalmente o contato.

Em 1994, Mara conheceu Jaime. Luis tinha quatro anos de idade e Mara, 18:

— Quando o Lu fez quatro anos, eu entrei num outro relacionamento, que é a pessoa com quem eu estou até hoje. Também nunca tinha feito diferença um pai, não para o Luis, eu digo para mim. Para o Lu eu sei que sempre fez muita diferença. Eu acredito que naquele momento algo supriu essa falta.

Sobre o aparato financeiro, Mara teve que entrar com pedido judicial para que a pensão fosse paga, e os pagamentos começaram quando Luis tinha seis anos de idade.

Os avós paternos de Luis foram visitar o neto pouquíssimas vezes.

Antes do relacionamento de Mara com Jaime (pai de consideração de Luis), ela passou períodos difíceis:

— Sempre foi muito difícil, né. Tem dia que você não tem nada para fazer. Naquela época, às vezes, não tinha nada para fazer para ele (Luis) e tudo mais. Graças a Deus nunca faltou nada para ele, mas, dificuldades a gente sempre teve. Sofremos dificuldades. Mas graças à minha mãe e à minha avó também, nunca deixaram passar fome, essas coisas… nem roupa. Sempre teve uma roupa bem ajeitadinha. O Lu sempre teve muita sorte, graças a Deus, então ele ganhava muita coisa. Ele também ganhava tênis… então a gente nunca teve essa falta, graças a Deus.

Jaime sempre soube que Mara era mãe, e ele já era pai também, de gêmeos (três anos mais novos que Luis):

— O Jaime sempre fez muita coisa pelo Lu. Às vezes eu acho que ele fez mais pelo Lu que pelos filhos dele mesmo, entende? Porque nunca deixou faltar nada. Sempre querendo suprir (a ausência do pai). Nunca vai suprir… é a mesma coisa de uma mãe, eu mesma, com os meus enteados, não tenho afinidade, porque é difícil, a gente nunca vai suprir a pessoa que é de sangue. Mas a gente tenta.

Luis e Mara, e todo o amor de mãe e filho.
Foto cedida por Luis Paulo Shiniti Sato.

Sobre a personalidade do filho, Mara contou que Luis sempre foi muito genioso, mas nunca deu trabalho. Sempre foi muito educado e bom, “nunca fui chamada na escola”, comentou:

— De vez em quando ele dava uma “surtadinha”, porque acho que faz parte também da personalidade, nem tudo a gente vai aguentar na vida, né. Então, de vez em quando, ele fazia umas rebeldias assim, mas era bem raro. O Lu sempre foi muito bonzinho.

Mara sempre foi muito apegada ao filho, eles formaram uma relação de confiança bastante forte, o que possivelmente gerou em Luis um sentimento de posse (de acordo com Mara).

Para ela, houve meio que uma “disputa de território”. Isso talvez tenha sido o fator que mais dificultou o relacionamento entre filho e pai de consideração:

— Acho que a maior dificuldade de o Jaime conseguir entrar na relação com ele sempre foi essa, porque ele (Luis) sempre foi muito possessivo comigo, entende? Então, ele teve que começar a dividir a mãe dele com outra pessoa. Acho que essa foi a dificuldade maior da relação deles.

Outro ponto crítico foi quando Lylandra nasceu. Luis tinha quase dez anos, e a irmã era mais uma pessoa com quem ele teria que dividir a mãe:

— Nossa, foi terrível! O Lu ficou muito enciumado, talvez mais ainda que quando começou a minha relação com o Jaime.

Com o passar do tempo, superado o ciúme, a relação dos irmãos se tornou muito boa.

Mara é bastante orgulhosa ao falar sobre o adulto que o filho se tornou:

— Eu vejo o Lu como um super paizão, mesmo… É uma coisa muito difícil, né? Você ter que crescer sem um pai biológico, mesmo que seja separado, mas que tenha uma presença… O Jaime sempre fez muito para que ele conseguisse suprir essa necessidade de pai mesmo, sempre se esforçou muito para isso.

Solange

Solange Milano tem 62 anos. Trabalhou durante onze anos como servidora pública (desde 2005), agente de organização escolar, mas precisou se aposentar devido a uma doença degenerativa que fez com que ela perdesse boa parte da visão.

Solange é mãe de Jéssica[4].

Solange é carinhosamente conhecida como Sol – apelido muito apropriado, não só por ser uma sigla de seu nome, mas por ter uma luz própria inconfundível -, e é assim que vou chamá-la ao longo deste capítulo.

Ela é mãe de três filhos: Ivan, Thiago e Jéssica. Também é avó de dois netos: Thór e Théo, filhos de Ivan.

Antes de começar a trabalhar na escola, Sol tinha medo de sair na rua:

— Eu morava no Taboão (da Serra), e tinha uma escola pública na esquina de casa. Eu tinha… na época, a gente não falava depressão. Falava que você tinha medos, traumas, essas coisas. Mas eu não conseguia sair na rua sozinha, e uma amiga minha me levou para a escola, a Lizete, para eu fazer um voluntariado.

Sol foi voluntária na escola durante anos, mas precisava de dinheiro para se sustentar (e sustentar os seus filhos) após o divórcio com seu ex-marido. Vendeu chocolates, fez digitação de cupons para uma empresa, mas o que ganhava não era o suficiente para pagar as contas. Tampouco recebia pensão, então precisava de outra maneira de ganhar dinheiro, e foi à luta:

— E aí a minha amiga falou: “por que você não vai ganhar dinheiro com isso que você faz? Você faz tão bem, você gosta tanto”. E foi quando eu, com 50 anos, fui prestar o meu primeiro concurso público. Tive muito sucesso. Tive medo, porque eu estava há mais de 30 sem sentar num banco de escola, mas o que me ajudou foi que eu acompanhei sempre os estudos dos meus filhos. Eu falo que eu me formei em direito duas vezes, porque eu sentava com o Ivan (advogado) e ele ia estudando, falando o que ele fazia. Participei das quatro fases, porque foram quatro fases do TCC dele, até chegar a fase final. Depois com a Jéssica (advogada). Com o Thiago foi mais informática, então eu não tinha muito contato, mas eu sempre fui de sentar e estudar com eles. Eu não estava muito perdida na área da educação. Então eu malhei. A Jéssica chegava de noite e ia ver a minha apostila. Eu encontrei erros na apostila e pensava: “será que eu estou errada ou será que é a apostila?”. Mas aquele ano que eu prestei o meu primeiro concurso, eu passei em sexto lugar no estado.

Sol conseguiu uma vaga temporária na escola da esquina da rua de sua casa, onde trabalhou durante um ano. No ano seguinte, prestou (e passou) em outro concurso para vagas efetivas, e começou a trabalhar em outra escola, que ficava a duas quadras de sua casa.

Sol e seus filhos: Ivan, Jéssica e Thiago.
Foto cedida por Jéssica Milano.

Com seu jeito acolhedor e sempre alegre, Sol acabou se tornando uma “mãezona” não só para seus filhos, mas para os alunos das escolas nas quais trabalhou.

Tomo a liberdade de abrir outros parênteses. Quando falo sobre como Sol é, posso dar um exemplo prático para elucidar: nossa entrevista foi feita via chamada de vídeo, era uma sexta-feira. Começamos a conversar por volta das 21h, e o papo se estendeu. Encerramos a chamada em torno da meia-noite, só porque eu precisava acordar cedo no dia seguinte. Caso contrário, teríamos “papeado” madrugada adentro. Iniciamos o diálogo para falar de algo delicado e pesado – eu já sabia de parte da história através de Jéssica -, mas ela conseguia trazer serenidade ao assunto. Talvez seja “coisa de mãe” contar histórias com tom de acalento, levar tranquilidade aos mares mais agitados. Passamos a falar de coisas do dia a dia, rimos. Ficamos de marcar uma cerveja para conversarmos mais.

Mas antes de chegarmos a esse tópico boêmio, quando perguntei se ela considera que a ausência do pai biológico ou a forma como os filhos foram criados interferiu na personalidade ou nas emoções deles, ela deu um depoimento poderoso:

— Eu creio que sempre mexe (com as emoções), porque, de alguma forma, é pai e mãe que sempre vão formar o caráter de vocês. Não adianta uma pessoa sozinha. Para isso, Deus pôs duas (pessoas), se não, você procriava sozinha, certo? Não precisaria de um parceiro. Eu acho que tem que ser duas pessoas. Duas pessoas para fazerem parte correta, um para apoiar, outro para brigar, nunca serem os dois aqueles que só vão cobrar. Então eu creio que eles sentiram isso, sentiram porque eu fazia as duas partes, ou tentava fazer. Não tem como você fazer, mas você tenta. Eles devem ter sentido mais porque, sei lá, você sente que na cabeça deles (Jéssica e Thiago) tem alguma coisa que fica indiferente com o Ivan, porque eles acham… acham não, eles chegaram uma vez a falar que o Ivan teve tudo o que eles não tiveram. Mas eram fases diferentes da vida. É a mesma coisa que eu falo para vocês, no transcorrer da vida, você vai ver que nunca vai estar estável eternamente. Vivemos em mudanças, total, total…

E continuou:

— Eu, no dia que eu me separei, que eu passei pela juíza e tudo, eu cheguei em casa e falei: “nunca mais lavo nenhuma cueca”. Em menos de um ano eu já estava com o Anielo. Você entende? Eu já estava com o Anielo e assim, nossa, eu conheci um outro mundo, que eu não imaginava que existisse. Só que é aquele negócio, é com o passar do tempo também que você aprende que são várias fases. Eu trabalhei, eu tive que parar de trabalhar, eu estive doente, houve momento em que eu não precisei trabalhar. Mas os filhos você sempre procura acolher. Mas, por mais que você queira fazer as duas partes, você nunca vai conseguir. Então eu creio que muito desse apego que o Thiago e a Jéssica criaram mais com o Anielo, foi porque eles encontraram no Anielo coisas que eles pediam para o Gecio (pai biológico) e o Gecio não conseguiu compreender. E o Ivan, por já ter filhos, compreendeu melhor.

Cada pessoa tem uma forma de reagir às adversidades pelas quais passa, e cada um tem total liberdade para sentir e emitir suas opiniões sobre o que viveu ou vive. De qualquer forma, é difícil não se surpreender com Sol. Ela não reclama das doenças que sofre ou fala pejorativamente de seu ex-marido.

Quando conversei com a Dra. Patrícia[5], ela mencionou algo muito interessante: “os filhos veem o pai pelos olhos da mãe”. Ou seja, a forma como o filho vai encarar o pai, depende de como a mãe fala sobre ele. Quando conversei com a Sol, ficou nítido que ela tentou não levar uma imagem negativa do pai de seus filhos a eles, mas eles vivenciaram muita coisa que não conseguem esquecer. Não foi possível amenizar com palavras as emoções criadas pela própria experiência.

— Tem muita coisa que eu falava para as crianças que era o que eu sentia, e que acho que é o que você tem que ter em mente: pai e mãe você vai sempre relevar, estejam eles juntos ou separados, sabe? É sangue do teu sangue, você tem que sempre relevar, porque sangue do teu sangue nunca vai te abandonar. Então é isso que eu penso, poderia ter sido diferente? Poderia. Mas talvez não foi por algum motivo que alguma hora a gente vai saber do porquê.


[1] Organização da sociedade civil que em parceria com instituições públicas e privadas, desenvolve projetos visando o combate à desigualdade social, a promoção pelos direitos humanos, dentre outros projetos. É responsável por iniciativas como o Mapa da Desigualdade.

[2] Serviço de Atendimento Especial da SPTrans (São Paulo Transportes). É uma modalidade de transporte gratuito, com característica “porta a porta”, destinado às pessoas com autismo, deficiência física e surdocegos.

[3] Personagem apresentado no capítulo 3.3

[4] Personagem do capítulo 3.2

[5] Apresentada no capítulo 3. Dores

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Crédito imagem da capa: Pixabay License

Capítulo do livro: Você que não me viu crescer: Os efeitos do abandono paterno na vida dos filhos adultos

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